Gozar com o sotaque dos outros

Imagine um político português, nos corredores do Parlamento, rodeado de jornalistas. Imagine agora que um jornalista lhe faz uma pergunta com um carregado sotaque do Norte. Agora, imagine que o político começa a gozar com o jornalista, a dizer que não o entende — e termina, sobranceiro, a perguntar aos outros jornalistas se têm alguma pergunta «em português»...

Felizmente, esta cena é pouco provável no nosso rectângulo à beira-mar plantado. Mas, em França, aconteceu mesmo — Jean-Luc Mélenchon gozou cruelmente com o sotaque de uma jornalista do Sul. Por causa desse episódio, os franceses começaram a discutir a glotofobia, o medo da variação linguística. (Já agora, Mélenchon pediu uma espécie de desculpas pelo episódio.)

Todos nós, portugueses esclarecidos, abanamos a cabeça: nunca faríamos tal coisa. E, no entanto, mesmo que evitemos este tipo de gozo público, todos avaliamos os outros pela maneira como falam.

A pronúncia serve de GPS geográfico e social. As nossas antenas podem estar mais ou menos afinadas. Assim, quando ouvimos um sotaque de uma região que conhecemos pouco, a nossa antena dá-nos uma localização genérica («esta senhora é do Norte»). Se formos da região, talvez consigamos perceber a zona mais aproximada donde vem a pessoa («esta senhora é da zona do Porto»). Se formos da mesma cidade, é bem provável que consigamos perceber o bairro donde vem a pessoa — ou, pelo menos, a região social por onde costuma passear («esta senhora é da Foz»).

Ora, este mapa mental está associado ao prestígio social de cada zona ou origem social — pode ser feio, mas é assim.

A coisa é ainda mais complicada: todos mudamos levemente de sotaque conforme a situação (e nem nos apercebemos). Em geral, tentamos aproximar-nos do sotaque de quem gostamos e marcamos as diferenças em caso de hostilidade. Além disso, o prestígio de cada sotaque depende do local onde estamos: o sotaque urbano do Litoral Centro (a que muitos chamam lisboeta) é usado na televisão e em muitos contextos formais — e é também o sotaque que tem invadido o resto do país, apagando algumas das diferenças no falar das gerações mais novas. No entanto, esse mesmo sotaque, em certos contextos, será malvisto. Imagine-se um café numa aldeia do Minho, onde se discute um qualquer assunto importante. Entra um homem e mete-se na conversa, usando um sotaque lisboeta. O sotaque de prestígio, ali, não será — provavelmente — o do forasteiro, principalmente se vier contrariar o que se estava a dizer...

O horror ao «cumo»

Felizmente, a recusa explícita em aceitar sotaques diferentes não é assim tão comum em Portugal. O sotaque do Norte — principalmente o sotaque do Porto — não será, certamente, o mais gozado. Mas já não é difícil encontrar risos e gozo por haver quem fale à beirã ou à transmontana — ou mesmo à alentejana. (Também não será impossível encontrar quem goze com o sotaque lisboeta — o que, enfim, serve para equilibrar um pouco as coisas.)

Disse que o sotaque do Porto não será o mais gozado — no entanto, ainda é possível encontrar (como encontrei há uns tempos) quem critique um intelectual do Porto por usar, na televisão, «cumo» — ou «dezoito» com o «o» fechado. Isto para não falar de quem se ri da leitura do «v» como um «b» ou de miríadas de outras marcas linguísticas de várias regiões do país.

De vez em quando, em certos comentários, percebemos que há ainda quem acredite que os sotaques diferentes do sotaque lisboeta são formas incorrectas de falar — segundo esta teoria, o português é bem falado em determinada cidade (a localização exacta de tal centro da perfeição linguística varia de caso para caso) e é maltratado nas outras regiões.

E, no entanto, os sotaques não ganham prestígio por serem mais perfeitos ou genuínos, mas por serem usados nos centros de poder. Estivesse a capital no Norte do país e a troca do «v» pelo «b» seria obrigatória em situações formais.

Mais: o próprio sotaque da capital já mudou muito. Se ouvíssemos hoje um lisboeta do século XVI, é bem provável que pensássemos estar perante um transmontano de hoje em dia.

Os lisboetas não têm sotaque?

Os sotaques diferentes não estão errados — errada está, isso sim, a ideia de que há gente sem sotaque. Há apenas gente com sotaque mais parecido com a pronúncia considerada padrão no nosso país (uma pronúncia que não é linguisticamente melhor ou pior).

Agora, o que não podemos negar é que esse sotaque das cidades do Litoral Centro está a ganhar força. Ou seja: os portugueses andam a falar de maneira mais uniforme. Não que as pronúncias regionais estejam a desaparecer, mas estão a aproximar-se — um fenómeno que também acontece noutros países. Terá que ver com a televisão, com a rádio, com a maior mistura social, com o uso de determinada pronúncia na escola — e terá também muito que ver com a urbanização do país. As razões serão muitas, mas o fenómeno é inegável: as gerações mais novas têm sotaques mais próximos uns dos outros.

O que — digo eu — só torna mais ridículo esse medo da maneira de falar dos outros. É natural haver a tal avaliação inconsciente, tal como é natural que nos aproximemos do sotaque de prestígio em situações formais — mas já não me parece correcto considerar que um determinado sotaque é o único aceitável ou que aqueles que falam como aprenderam em casa possam ser gozados por isso...

Afinal, se Camões aterrasse na Lisboa dos dias de hoje, a sua pronúncia seria de imediato catalogada como nortenha ou transmontana. No fundo, gozar com os outros sotaques é gozar com Camões!


Marco Neves é tradutor, professor e autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras.