É sempre assim. Não há tema dito fracturante que se discuta sem que o referendo seja chamado à conversa. Agora é a eutanásia, antes tinha sido o aborto. Vá lá que o casamento homossexual escapou sem se ter levantado grande vozeria a defender que o povo devia ser consultado.

É o exercício mais puro da democracia, dizem, ouvir os cidadãos em questões que dividem a sociedade. Discordo. Quando estão em causa liberdades individuais que não interferem em direitos alheios - e é só destas que falo - “chutar” a decisão para referendo é a) uma hipocrisia dos representantes eleitos do povo, que não querem ter o onús de decidir temas polémicos e b) é dizer a cada um dos cidadãos que ele tem todo o direito não só de de opiniar como de decidir sobre a vida privada e íntima do vizinho. Reforço, para que não restem dúvidas: quando está em causa o exercício de um direito próprio, de decisão individual, que não coloca em causa nenhum outro direito de terceiros, que legitimidade temos para, colectivamente, condicionar essa decisão? A eutanásia é um desses temas.

Defendo que deve ser concedido o direito a uma morte digna a doentes terminais que a ciência médica considera inequivocamente irrecuperáveis e que esse direito deve poder ser exercido por vontade consciente e manifesta do próprio. Se esse direito vier a ser legalizado com todos os cuidados que o tema impõe ninguém, nunca, está obrigado a exercê-lo. A decisão cabe sempre ao íntimo de cada um, em decisão individual ou familiar. Mas, e a perversidade está aqui, a não legalização da eutanásia condiciona e interfere na liberdade individual dos que preferiam exercê-la nas condições extremas em que pode ser aplicada.

O que se passa sempre nestes debates sobre questões comportamentais e liberdades individuais é que a fatia importante da sociedade que tem princípios mais conservadores tenta impor esses seus princípios a todos. O conservadorismo moral e comportamental é absolutamente legítimo e cada um deve escolher e praticar o que quer para si. O que já não é legítimo é que os que o escolhem para si no uso da sua inalienável liberdade e em nome do ideal de sociedade que defendem, o queiram impor ao resto dos cidadãos.

Referendar questões destas tem a perversidade de transmitir aos cidadãos que cada um deles tem uma palavra a dizer sobre os comportamentos alheios, interferindo na sua esfera de liberdades individuais. É dar a cada eleitor uma voz que é, a meu ver, ilegítima. Eu não quero decidir se o vizinho pode ou não praticar eutanásia, colocando-se-lhe essa questão. Nem tão pouco se ele pode ou não casar com uma pessoa do mesmo sexo. É com ele. Independentemente das opções dele, as minhas ficam intactas. Ele pode decidir que sim e eu que não, com a mesma legitimidade. E se ele não pode impor-me o sim eu não devo contribuir para impor-lhe o não.

Então e 230 deputados podem fazê-lo? Podem e devem. É para isso que são eleitos. Para tomar decisões informadas, esclarecidas, sustentadas pela melhor evidência científica, quando for caso disso. E para depois serem avaliados pelos eleitores sobre as decisões que tomam.

Querem referendar coisas? Aqui vai uma lista de temas sobre a organização do país (e não da casa de cada um), sobre direitos e deveres colectivos (e não individuais que em nada interferem com o colega do lado), sobre mudanças que interferem sempre na vida de cada um: regionalização, Segurança Social, tectos máximos para impostos e despesa pública, manutenção ou saída do euro, sistema eleitoral, mudanças profundas na educação pública. Se queremos aprofundar a democracia directa temas não nos faltam. Tão fracturantes quanto os outros mas com uma enorme diferença: nestes somos todos afectados directa ou indirectamente e estamos sempre a decidir sobre os nossos direitos e deveres. É muito mais saudável do que querer decidir sobre o que o vizinho pode ou não fazer quando nada disso interfere na nossa vida.

Outras leituras

  • O smartphone mais barato do Mundo custa seis euros e é indiano. Porque a democratização da tecnologia é também um factor de combate à exclusão e as comunicações deixaram de ser um luxo e passaram a ser um bem essencial.

  • Nem tudo na Europa está feito e moldado à vontade alemã. O Banco Central Europeu é a prova disso.