Num mundo com 193 a 196 países (o número é contestado), é difícil prestar atenção a todos, até porque alguns têm pouca massa crítica (produção, população, agressividade) ou uma importância muito relativa no xadrez das nações. Mas há peões que, embora modestos, têm uma localização no tabuleiro geoestratégico que os pode tornar importantes para as jogadas das rainhas, bispos, torres e cavalos. É o caso da Geórgia. Não o Estado americano, que aparece logo em qualquer pesquisa, mas a República da Geórgia, uma área próxima das dimensões de Portugal, com uma população de pouco mais de três milhões de habitantes.
Esta Geórgia, que não existia como país antes de 1991, fica a Sul da Rússia, ao lado do Mar Negro, e faz fronteira com a Turquia, a Arménia e o Azerbaijão. Está, portanto, na encruzilhada do Oriente com o Ocidente, e tudo o que lá se passa faz arquear as sobrancelhas das capitais europeias e algumas asiáticas.
Depois de uma breve independência da Rússia entre 1917 e 1921, a Geórgia foi incorporada na União Soviética em 1922, mesmo a tempo de dar à União das Repúblicas Socialistas um dos seus mais famigerados líderes, Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, nascido em Gori em 1878, e mais conhecido pelo seu nome de guerra, Joseph Staline.
No contexto da União Soviética, a Geórgia não tinha nada de interessante, mas quando começaram os planos quinquenais, em 1928, foi escolhida para a produção extensiva de algodão. A coletivização eliminou os intelectuais e todas as iniciativas que atrasassem as metas dos planos; no processo, a população só não diminuiu porque muitos trabalhadores de etnia russa foram transportados para a região. Estas migrações haveriam de estar na origem dos problemas da Geórgia contemporânea, como se verá.
Em 1991, no contexto do desmantelamento da União Soviética, formou-se um Conselho Supremo no país e promoveu-se um referendo que deu origem à independência. Mas duas regiões, a Abkazia e a Ossétia do Sul, em que a etnia russa era maioritária, votaram contra a secessão e o resultado foi uma década de guerra civil. O primeiro presidente foi deposto e seguiu-se uma série de golpes e contragolpes. De um lado, os nacionalistas georgianos, apoiados sub-repticiamente pelos países ocidentais; do outro, os nacionalistas russos, apoiados mais abertamente pela nova Rússia, que inclusivamente enviou tropas. Finalmente, em 1995 chegou-se a um acordo periclitante, em que as duas regiões de maioria russa ficaram praticamente isoladas do restante do país. Até hoje, o exército georgiano não pode entrar na Abkazia e na Ossétia do Sul, defendidas por tropas russas, mas as duas províncias também não pertencem oficialmente à Federação Russa; estão numa espécie de limbo geopolítico.
Em 1992, o georgiano Eduard Shevardnadze, que tinha sido Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética entre 1985 e 1991, constatando que, mesmo sendo uma personalidade internacionalmente conhecida, não tinha espaço na nova Rússia, resolveu voltar para casa. Organizou um triunvirato com dois políticos envolvidos nas disputas locais e esse Conselho de Estado governou o país até à chamada “Revolução das rosas”, em 2003.
Basicamente, a população estava farta da corrupção patrocinada por Shevardnadze e da sua política de aproximação à Federação Russa. Foi para a rua durante vinte dias (3 a 23 de Novembro) com rosas na mão e cânticos patrióticos, apoiada por diversas organizações e pelo nascente Movimento Nacional. O novo dirigente, Mikheil Saakashvili, que era Ministro da Justiça do Governo deposto, iniciou uma política de aproximação aberta à Europa e à NATO, achando que a Aliança o protegeria em caso de um ataque russo. Mas o Ocidente não estava interessado em começar uma guerra por causa da Geórgia e os georgianos tiveram de lutar sozinhos contra a invasão russa que se seguiu. Os apoios que recebeu, tanto de organizações como de indivíduos como George Soros, foram passados sob a forma de fundos e equipamento. Saakashvili, um protagonista extrovertido e dado a rasgos de populismo, dividiu as opiniões mundiais, momentaneamente interessadas no que se passava na região. Na verdade, foi um dos primeiros testes internacionais da força de Putin. A guerra com a Rússia, iniciada em 2008, prossegue até hoje, sem movimentações militares de monta, mas também sem tréguas. Atualmente está estabilizada com provocações esporádicas de parte a parte.
Em 2004, tropas georgianas participaram na invasão da NATO no Afeganistão e o país pediu formalmente para entrar na organização em 2005. Em 2008, um referendo nacional teve 77% de votos a favor da adesão à NATO e também uma simbólica absorção da Abkhazia e Ossétia do Sul.
Entretanto os países ocidentais, com os americanos à cabeça, incentivaram abertamente os sentimentos anti-russos dos georgianos. Também se configurou a hipótese de alguns negócios. Por exemplo, Donald Trump esteve em Tbilisi em 2012, em conversações com capitalistas locais para construir um dos seus hotéis.
Saakashvili começou por limitar a corrupção e fazer uma limpeza no funcionalismo público; mas quando começou a desastrosa guerra com a Rússia mudou de objectivos e a organização Transparência Internacional revelaram que a luta anti-corrupção se tinha diluído e os ricos e poderosos do país é que dominavam os contratos de obras públicas e tinham tratamento preferencial da Justiça e na administração. O resultado foi que o investimento estrangeiro desapareceu – o Hotel Trump nunca saiu dos planos – e a popularidade de Saakashvili entrou em decadência. Houve ainda uma tentativa de transformar Batumi, que fora uma estância de praia muito procurada durante o regime soviético, numa espécie de “Riviera do Mar Negro”, mas a cidade ficava na região de Adjara, que também queria ser independente de Tbilisi e clima tenso não atrai turistas.
A Geórgia é oficialmente uma república democrática, com eleições presidenciais e legislativas. A 18 de dezembro do ano passado decorreram as presidenciais, com dois candidatos principais: Salome Zurabishvili pela oposição e Grigol Vashadze pelo partido no poder. O partido de Zurabishvili, financiado pelo homem mais rico do país, o banqueiro Bidzina Ivanishvili, conseguiu eleger a sua candidata, com 59% contra 40%.
Não deixa de ser interessante que um país de religião maioritariamente ortodoxa e muito conservador tenha elegido uma mulher para o mais alto cargo. Salome Zurabishvili também tem uma carreira original, que de certo modo reflete as voltas e contravoltas da vida da República. Nasceu em 1952 em Paris, depois dos seus pais terem fugido da entrada do país na União Soviética. Formada em Ciência Política na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, entrou para o serviço diplomático francês. Em 2003 foi nomeada embaixadora da França em Tbilisi. Demitiu-se no ano seguinte para se tornar ministra dos Negócios Estrangeiros de Saakashvili. Mas quando foram marcadas as eleições de 2018 resolveu virar-se contra o seu chefe. Segundo disse à revista “Monocle”, o seu objetivo é de mudar as mentalidades e levar o país para o século XXI. “Para uma mulher presidente, como para qualquer presidente europeu, a tarefa é um grande desafio, que tem mais a ver com as expectativas da sociedade do que com a consolidação do sistema democrático.”
Zurabishvili tem até 2024 para conseguir os seus objetivos. A constituição recentemente modificada dá-lhe poderes mais simbólicos do que práticos, mas é evidente que poderá fazer muito para trazer a Geórgia para a modernidade, de caminho alinhando com a Europa e afastando-se da Rússia. É esse percurso que se afigura difícil; mesmo não duvidando das suas boas intenções, e tendo como certo o apoio ocidental, Putin tudo fará para recuperar o país para a sua esfera – é essa aliás a sua política em relação a todos os ex-membros da URSS.
Tal como a Ucrânia, a Geórgia tem uma posição estratégica que não pode ser negligenciada. Um caso a seguir, com inevitáveis peripécias pela frente.
(Artigo corrigido às 22h48: corrige a data de nascimento de Salome Zurabishvili)
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