Ter filhos sai caro, toda a gente sabe. Fraldas, infantário, roupa, estudos, sustentá-los até saírem de casa o que, hoje, acontece quando eles já começam a ter cabelos brancos. Depois, há quem tenha o azar de ter um filho com problemas de saúde e ter de gastar ainda mais, ou, se tiver muito azar, ter um filho com uma doença rara e precisar de dois milhões para o salvar.

O que aconteceu foi bonito. As pessoas uniram-se em torno de uma causa e angariaram os dois milhões necessários para o tratamento que pode salvar a Matilde. No entanto, e como eu gosto de distorcer as coisas bonitas, deixo um dilema moral: dois milhões para salvar um bebé ou dois milhões para salvar milhares de bebés.

Por exemplo, para salvar uma criança em África, através da Against Malaria Foundation, são precisos 2960€, ou seja, com dois milhões seria possível salvar 675 crianças. Há estudos que dizem que 10€ chegam para salvar uma vida, seja a fornecer vacinas, água potável ou outros bens essenciais que escasseiam em alguns países subdesenvolvidos. Coloquei esse dilema no Twitter e houve pessoas indignadas, inclusivamente familiares da Matilde. Compreendo e é por isso que a única resposta honesta que podemos dar a esse dilema é: depende da criança. Se a criança for nossa filha – ou muito próxima – optaremos pela primeira hipótese, caso contrário, a segunda opção parece a mais racional.

O dilema terá paralelismo com um utilizado nos carros que conduzem sozinhos: sacrificar o ocupante do veículo para salvar cinco crianças ou atropelar as cinco para salvar o ocupante? Se o ocupante formos nós, a nossa visão será diferente. Se os carros autónomos tiverem os dois modos, o meu estará sempre no modo “Atropelar as crianças e velhas que for preciso para me salvar”.

Não tenho filhos, nem pretendo, pois vi bem o trabalho que os meus pais tiveram, com o meu irmão, claro, mas ao contrário da besta que aparento ser, possuo alguma empatia e consigo perceber que ver um filho a sofrer e morrer deve ser o maior sofrimento que um ser humano pode experienciar. Pior ainda se houver uma cura e apenas não houver dinheiro para a obter. Por isso, o objectivo do dilema nunca seria fazer qualquer juízo de valor sobre os pais que tentam salvar a filha. Acho que é óbvio, mas há muita gente burra e é preciso esclarecer. O dilema só serve para mostrar como a nossa empatia é selectiva e como isso faz de nós hipócritas. Todos nós. Se as pessoas vêem uma pergunta e ficam ofendidas é porque não gostaram da resposta que elas próprias deram na sua cabeça.

Hipócritas em contribuir para a causa de nobre de salvar uma bebé? Sim, mas é uma hipocrisia que ainda bem que existiu. Reparem, a maioria de nós não contribui para salvar qualquer tipo de crianças, muito menos as que estão a morrer lá longe, porque é que tanta gente se uniu para salvar esta em específico? Alguém respondeu a esse dilema que coloquei no Twitter assim: “Pá o máximo possível, mas como indivíduo eu tendo a sentir que tenho mais impacto a salvar 1 do que milhares.” Isto toca no cerne da questão, a meu ver. Salvar alguém tem uma grande fatia de narcisismo, especialmente se pudermos tratar a pessoa salvada por tu “Estás a ver aquela bebé que se salvou? Eu contribui para isso!”. A empatia tem sempre este lado egoísta.

Paul Bloom, um psicólogo de Yale, tem a teoria de que a empatia nos torna imorais porque esta tende a fazer-nos focar naquilo que nos é próximo – como a raça, por exemplo – “It zooms us in on the one rather than the many. And so it distorts our priorities.”, diz o senhor Paul. Podemos até especular que seja imoral usar dois milhões para salvar apenas uma criança. Se nos saísse uma raspadinha com dois milhões de euros cujo dinheiro só poderíamos utilizar para salvar crianças, tentaríamos maximizar o salvamento e dar vida ao máximo de crianças. Se alguém usasse esse dinheiro para salvar apenas uma criança, ou era sua familiar próxima, ou era imoral, mas não tanto como morrer gente com uma doença para a qual existe a cura apenas porque não tem dinheiro para o tratamento, o que nos leva a outro ponto: é imoral um medicamento custar dois milhões? Talvez. Não sei qual a margem de lucro e quanto foi gasto a desenvolvê-lo, mas o que sei é que as farmacêuticas não existem para salvar pessoas e, muito menos, para fazer caridade. Existem para dar lucro e misturar lucro com saúde, se por um lado permite o investimento de milhões para encontrar curas, tem o lado negro de as vidas virem em segundo lugar, deixando o dinheiro na pole position. Por isso, resta sermos nós a contribuir, seja como foi com a Matilde, seja através de impostos que permitem termos um serviço nacional de saúde que, com todos os defeitos, salva vidas usando o mesmo método de angariação a que muitos chamarão socialismo.

Eu contribuo todos os meses para a educação de crianças em países subdesenvolvidos porque mais crianças a ler e inteligentes é mais público que posso ter no futuro se decidir internacionalizar o meu trabalho para a Serra Leoa – só penso em mim – fora os espectáculos solidários que faço anualmente que angariam alguns milhares de euros para diversas causas. Podia fazer mais? Claro, acho que só quem deixa tudo e vai fazer voluntariado para países desses é que não podia fazer mais, de resto todos podemos, mas fazemos apenas quando temos algo a ganhar com isso, seja aquele sentimento de satisfação na barriga ou aquela palmadinha que damos a nós mesmos nas costas por sermos tão boas pessoas.

Resumindo, fico feliz por a Matilde estar a salvo. Fico ainda mais feliz por o Estado ir comportar os custos, fazendo com que o dinheiro angariado possa ser usado para outras crianças que precisem. Foi bonito. É hipócrita, mas é bonito. Por último, gostava de saber se toda a gente que é contra o aborto contribuiu para a causa ou se só lhes interessa salvar fetos.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

Para ouvir: Bernardo Sassetti e Carlos do Carmo

Para ver: When they see us, na Netflix.

Para ir: Roast ao José Castelo Branco, no Campo Pequeno, dia 19 de Julho.

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