Na sequência da invasão da Rússia à Ucrânia e da brutalidade ali exercida pelo regime de Putin contra o povo ucraniano, o Ocidente – poder político e opinião pública – uniu-se num admirável esforço de solidariedade entre povos e de aplicação de pesadas sanções económicas como reação àquelas grosseiras violações de direitos humanos.

A FIFA – essa entidade verdadeiramente paraestatal – também participou da aplicação de sanções, banindo a Rússia do Mundial de 2022 no Catar.

Ora, considerando as identificadas violações de direitos humanos na própria ordem jurídica interna do Catar e nas práticas implementadas para montar toda a infraestrutura do Mundial de 2022, banir uma qualquer seleção nacional desta competição não deveria ser considerado como sanção para qualquer defensor dos mais básicos direitos humanos, mas como um enorme favor.

A organização do Mundial de 2022 no Catar foi anunciada em 2010 com surpresa e estranheza, a que se seguiram suspeitas de corrupção por parte da FIFA, o que, não sendo caso único, também não augurava bom presságio.

Para preparar a receção da competição, foram contratados milhares de trabalhadores, em grande parte estrangeiros, com base no sistema kafala, em vigor no Catar e noutros países da região.

O sistema kafala assenta numa lógica de patrocínio, em que o empregador, ao invés do Estado, controla o direito de residência do trabalhador, tendo o poder de renovar ou revogar a sua autorização, a troco (supostamente) do pagamento das despesas de deslocação e de acomodação.

Neste esquema, a lei laboral local não se aplica ao trabalhador estrangeiro, isto é, o trabalhador não tem acesso a direitos laborais básicos, como, por exemplo, acesso aos tribunais para disputas laborais ou o direito de se juntar a um sindicato.

Em consequência, os trabalhadores migrantes ficam numa situação de extrema vulnerabilidade, enquanto os empregadores são livres de exercer cruéis abusos, com total impunidade, sob estas pessoas, na sua maioria pobres e estrangeiras, sem direitos, a trabalhar no seu país, cuja autorização de residência é inteiramente controlada por si.

Vários especialistas em direitos humanos têm descrito este sistema como uma forma de escravatura moderna, devido, por exemplo, às restrições de movimento e comunicações (é preciso autorização do patrocinador para sair do país e é comum o confisque de telemóveis e passaportes), às dívidas ilegais (o empregador transfere para o trabalhador as despesas de recrutamento que devia assegurar, pagas através da redução de salários), ao tráfico de visas (em que um empregador vende a outro o patrocínio de um trabalhador, que aplica salários ainda mais baixos e piores condições de trabalho) e ao trabalho forçado ou coagido (através da assinatura de múltiplos contratos redigidos em língua que o trabalhador não compreende).

Recorde-se, entretanto, que o Catar é uma das nações mais ricas do mundo.

Mas não é só.

Um relatório das Nações Unidas de Julho de 2020 denuncia tratamentos especialmente desumanos a trabalhadores do sul asiático e africanos, que, independentemente das suas qualificações e do seu nível de rendimentos no seu país de origem, são adstritos a postos de trabalho com pessoas do mesmo tom de pele ou etnia, com parcas remunerações e péssimas condições de trabalho. Por outras palavras, o racismo é uma das principais características do sistema kafala.

No que respeita ao trabalho doméstico, maioritariamente prestado por mulheres, o mesmo relatório da ONU identifica vários abusos físicos, entre eles, a violência sexual. Porém, não existe qualquer incentivo à denúncia nem proteção das vítimas, que arriscam serem condenadas à pena de prisão, pelo crime de sexo fora do casamento, mesmo sendo vítimas de violação, como já aconteceu no Catar.

Por último, cabe uma menção às leis anti-LGBTQIA+ em vigor no Catar, que preveem uma pena de prisão até dez anos “a quem se envolva numa relação sexual com pessoa maior de dezasseis anos, fora do casamento, o que é aplicável também a relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo, relações entre mulheres, homens ou parceiros heterossexuais.”

Adicionalmente, é punido com pena de prisão de um a três anos “qualquer homem que “instigue” ou “atraia” outro homem a “cometer um ato de sodomia ou imoralidade”.

Em 2021, o jornal The Guardian noticiava que pelo menos 6.500 trabalhadores migrantes já tinham falecido no Catar em consequência destas violações de direitos humanos e abusos laborais, sendo certo que se estima que o número real seja bastante superior, em virtude da falta de transparência.

Aqui chegados, resta perguntar: qual é a bitola que justifica sanções económicas à Rússia (bem impostas) e, simultaneamente, negócios com o Catar? Vamos nós, portugueses, alegremente dar canal (dinheiro) ao Mundial de 2022, construído à custa de milhares de vidas e do sofrimento dos trabalhadores migrantes no Catar, sem pestanejar?

Estará a nossa empatia reservada aos povos europeus ou é o futebol que está acima dos nossos valores humanos?