O primeiro desafio que aponto nesta carta ao Pai Natal tem que ver com a maneira inconfidente como a redijo. Para todos os efeitos (e se me estão a ler, vão comprová-lo) isto é o que se designa por “carta aberta”. Ora, não consigo recordar-me de uma única carta aberta que eu tenha feito, ou pelo menos considerado fazer, que não estivesse impregnada de irritação, desagrado, fel, veneno até. Aos meus elogios públicos nunca chamei carta aberta, possivelmente porque associo carta e ferida, ambas abertas. Escancara-se a porta para todos verem os males que o acusado, travestido de destinatário, nos anda a causar. Como colocar o Pai Natal neste banco de réus, sobretudo quando ele padece dessa patologia comum às pessoas inexistentes, que é não ser responsável por nada?

O segundo desafio em torno do Pai Natal prende-se com desprendimento. A minha experiência com o personagem é indelével e ténue ao mesmo tempo – nunca lhe liguei muito, mas lembro-me muito bem de sempre pouco lhe ligar. Estou a assumir-me estranho, não especial: enquanto a maioria das pessoas tem memórias infantis da descoberta que o Pai Natal não existe, a minha recordação mais forte foi descobrir com espanto que havia quem nele cresse. É verdade que crescer numa família protestante podia ter-me precavido qualquer devoção ao católico São Nicolau mas, por outro lado, o velhote vestido de vermelho a quem me vou dirigir é um dos grandes símbolos do Capitalismo, esse sistema que Max Weber afirma ser filho dos protestantes.

Mais do que uma recomendação familiar, a minha descrença no Pai Natal deve-se à convivência estreita com os universos fantásticos da ficção; não fui criança a achar que os sonhos se concretizavam, porque isso ia roubar lugar às histórias. Histórias que eram - ao contrário das próprias crianças (perdoe-me Pessoa) - o melhor do mundo. Para além da lealdade, da coragem ou do altruísmo, a característica essencial dos meus heróis de infância era o facto de não estarem entre nós, de serem fruto da imaginação e sementes da mesma.  As grandes desilusões que me foram chegando com a idade, afinal, não foram as fantasias que ficaram por se materializar, antes a incapacidade, falta de tempo e talento, para eu contar todas as histórias que queria. Desejava ser um construtor, um condutor e um veículo de relatos fantásticos porque neles viajei desde pequeno. Tinha o combustível de Verne, Hergé, Stevenson, DC e Marvel, Goscinny, Dumas, Maurício de Sousa e tantos outros. Com estes roteiros, é natural que uma viagem anual no trenó das renas voadoras não parecesse a coisa mais excitante do mundo.

Mesmo assim, eu não era um puto tão pouco entregue a credulidades. Lembro-me de ter uns 3 anos e dar com o meu pai a ligar um qualquer electrodoméstico ao “transformador”, aparelho que trazia novidade no nome, e depois decepção na aplicação -  isto porque o meu pai se recusava a usá-lo para me “transformar” nas coisas que eu lhe pedia: príncipe, cowboy, Mr. Spock. Não era, portanto, nem o mais esperto nem o mais céptico dos miúdos, mas ainda assim faltava-me encontrar interesse suficiente no Pai Natal, fosse para acreditar na sua existência, fosse para que a sua inexistência me inspirasse. Outra coisa que não ajudou: aquela consoada em que a minha tia Manuela decidiu vestir o kispo grená com carapuço do meu avô Armelim, enfiando depois uns pedações de algodão na gola como se fossem uma barba branca a cair-lhe do queixo. Era o mais mal engendrado Papai Noel de todos os tempos, e que não me acrescentou crédito ou apreço pelo personagem, apenas pela minha tia Manuela – a menos mal engendrada tia de todos os tempos.

Hoje o objectivo proposto era escrever uma carta a um personagem rechonchudo, bonacheirão, com um alto cargo de influência simbólica, cheio de poderes fictícios, amigo das criancinhas, etc. Tenho de confessar que, a partir daqui, uma brincadeira muito foleira me tentou: quase descaí para actualidade fingindo interesse no Pai Natal para, num patético twist, revelar que era o novo Secretário Geral da ONU o meu verdadeiro destinatário. Para ser sincero, só esta curta descrição desses planos meu deu a volta ao estômago. O caminho certo é ficar-me pela carta aberta (sem fel) e escrever (sem desinteresse) a alguém que nunca por aí além me interessou.

Querido Pai Natal

Andava convicto que tu, por não existires, eras incapaz de dar presentes a quem quer que fosse. Afinal reconheço o meu engano porque tu, mesmo tu, acabaste de me oferecer uma coisa que eu muito queria e nem sequer precisei de pedir. Deste-me a prenda de poder desabafar sobre as minhas desconfianças. Deixaste-me escrever sobre a maneira fajuta como me projecto no outro antes que ele me responda, sobre a minha cobardia que guarda o mau feitio para as cartas abertas, sobre as minhas frustrações enquanto contador de histórias, sobre cepticismos e escapismos, sobre a preguiça dos imaginativos que não é audácia dos sonhadores – pode ser que existam por aí mais pessoas que preferiram ler a Alice no País das Maravilhas do que querer ser a Alice no País das Maravilhas, pode ser que isto as ajude a sair do armário (esta expressão faria o pleno se tivesse usado Nárnia em vez da Alice).

Meu caro, muita gente não nos vai entender. Vai olhar para isto a achar que eu estive a encher chouriços, mas só porque não percebe que és tu a encher-me o sapatinho, e com os meus próprios desabafos.

Não sei como agradecer-te, ainda para mais depois do que a minha tia Manuela te fez. 

Um forte abraço

Samuel Úria

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

A Vera Marmelo vai ser ainda mais aquilo que já é: um nome incontornável tanto na história da música como na história da fotografia em Portugal. Tem site novo.

Continuando com a Vera, recomendo ainda o seu longevo V-Miopia, a completar agora uma década. Daqui a uns anos, certamente vai-se falar ao detalhe dos movimentos, famílias e tendências na música portuguesa do início do séc. XXI, e são estas fotos da Vera que o vão ilustrar.

Finalmente, animais surpreendentes. Não são renas que voam, são lobos que mudam rios