Talvez pouca gente compre esta ideia de que a vida é melhor durante a competição rainha da FIFA. A minha teoria do “ar mais respirável de 4 em 4 anos” é mesmo uma subjectividade difícil de encarar quando, por exemplo, se tem de engolir o monóxido de carbono da Av. da Liberdade em dia de jogo. Admito ainda que a tese de que se vive um “clima de armistício” durante o Mundial enfrenta novas dificuldades, e esta recente final entre a França e a Croácia bem o provou – nas redes sociais foi a politização do costume (às vezes boa, mas geralmente perversa); depois a intervenção do VAR parece ter desumanizado a justiça e a injustiça. Não é fácil falar de “armistício” quando a tecnologia nos oferece uma infalibilidade opressiva – purga o erro como uma bactéria nos purga as entranhas, e passamos da justiça salomónica para a justiça salmonélica.
Não alinho em revisionismos históricos, nem em negacionismos. Alguém que desminta a existência do Holocausto, por exemplo, não é bem-vinda a minha casa. Mas nisto do futebol encontro um regime de excepção. Sou um revisionista dos Mundiais, e digo que foram sempre os melhores independentemente de o terem sido ou não. Mesmo admitindo que nem todas as edições da competição contribuíram para uma existência melhor, forço-me a dizer que sim, que contribuíram. Não se trata tanto de analisar o passado, mas de disciplinar o futuro.
Mesmo que um honroso embate entre selecções seja insuficiente para tornar o mundo melhor, porque não haveríamos nós (o mundo) de aproveitar esse pretexto para nos melhorarmos? É por isso que o meu revisionismo não se resume à vontade de ver os Campeonatos com bons olhos; é mais a vontade de aguardá-los com bons corações. Se os Mundiais fossem o meu Museu dos Descobrimentos, não havia cá colonialismos sangrentos, nem culpas esclavagistas – retinha o bem para melhor fazer (mas, repito para que não haja equívocos, tenho no futebol um regime de excepção).
E assim de rajada, vou concluir o meu périplo pelos Campeonatos do Mundo dos últimos 30 e tal anos. 2006, 2010 e 2014 são, respectivamente, a melhor edição de sempre, a melhor edição de sempre e a melhor edição de sempre. Em cada um destes Verões, o ar estava mais respirável e vivia-se um clima de armistício.
Na Copa de 2006, o melhor futebolista duma geração acabou a carreira enquanto enterrava violentamente a careca no peito do melhor sarrafeiro duma geração – o primeiro foi expulso, o segundo foi campeão do mundo. Cristiano Ronaldo perdeu a corrida para Melhor Jovem Jogador da competição por ser considerado “batoteiro”. A partida entre Portugal e a Holanda bateu o record de cartões vermelhos num só jogo de Mundial, e igualou o record de cartões amarelos. O jogo que opôs Suíça e Ucrânia pode muito bem ter contido os 120 e tal minutos mais aborrecidos do séc. XXI. Então estamos a falar do pior Campeonato do Mundo de sempre, certo? Errado.
A Copa de 2006, decorrida na Alemanha, foi mesmo a melhor de sempre. Para já, tornou-se palco de justiça poética, e justiça com poesia de Pavese, Dante, Boccaccio, Petrarca ou Ariosto (pseudónimos de Buffon, Cannavaro, Gattuso, Zambrotta ou Pirlo). Mesmo que o futebol italiano não fosse o melhor (e mau não era de certeza - basta ver os nomes que acabei de recordar), a Squadra Azzurra merecia esta título nem que fosse pelos infortúnios e injustiças passadas: a tragédia de Roberto Baggio em 94 e a roubalheira frente à República da Coreia em 2002. O Campeonato do Mundo da Alemanha é recordado também pela mescla de gerações dentro das grandes potências - as que desvaneciam e as que se estabeleciam - apurando assim os paradigmas futebolísticos dos últimos 10 anos. Foi ainda um dos mundiais mais competitivos de que tenho memória, no sentido em que eram muitos, e muito fortes, os candidatos ao título (e talvez tenha esta noção vincada porque Portugal tinha um pé neste lote).
Já a edição do Campeonato de 2010 decorreu de forma diferente, embora neste ponto convergisse com as anteriores: será recordada como a melhor de sempre. E, acreditem, para um evento infestado de vuvuzelas ser o melhor de sempre é preciso ter muito a seu favor. Para começar, estamos a falar do primeiro mundial realizado no Continente Africano, mais propriamente na África do Sul. A localização do evento não é apenas o primeiro motivo que invoco, é mesmo o mote fulcral para termos uma boa memória do campeonato. É que, apesar dos grandes jogos e grandes jogadores que desfilaram nos relvados, e apesar de Maradona ter regressado a um Mundial, desta feita no comando técnico da Argentina (numa versão irrequieta de treinador, a lembrar um Paco Fortes da alta roda), apesar de todos estes factos, é no próprio país de Mandela que está a grande virtude da competição.
O que se passou na África do Sul em 2010 corrobora inteiramente os penosos, mas benfazejos, primeiros parágrafos desta crónica. O país com uma das mais aterradoras taxas de criminalidade, com cidades onde a violência extrema impera, foi o mesmo país que quis superar-se por intermédio do futebol. Respirou-se o ar melhor, viveu-se o armistício, e pouca importa se foi o espírito do Mundial quem levou a paz, ou se foi a paz quem se chegou à frente para acolhê-lo. Saudemos tal ideia: os mundiais favorecem o melhor do planeta, e o melhor do planeta favorece os mundiais. Esta cultura do “ser-se melhor” deu inolvidáveis frutos na África do Sul, e ainda melhores sementes plantou.
Vou fermentar por 4 anos a minha vontade de falar acerca do Rússia 2018, acerca de Modric, Coutinho e Hazard. Assim sendo, a última abordagem desta série recairá sobre o Campeonato do Mundo do Brasil em 2014 - aquele que, como devem suspeitar, foi o melhor de sempre. Tratou-se tanto duma competição quanto dum axioma, uma vez que valeu sempre o “11 contra 11 e no fim ganha a Alemanha”.
Há vários motivos celebráveis sobre este Brasil 2014, mas estou (com alguma mesquinhez, admito) tão apegado a só um deles que vou despromover os restantes para depois. Ora, toda a gente gosta de ver um charlatão desmascarado, e para mim foi isso que aconteceu no jogo em que o Brasil concedeu 7 golos à Alemanha. Lição dura para a canarinha, mas é o preço a pagar quando nos deixamos deslumbrar pelo carisma casmurro de Scolari. Felizmente, a tareia revelou-se pedagógica, e neste Mundial de 2018 os brasileiros já levaram para a competição um treinador a sério.
Não tenho embirração desmesurada com o Felipão. Nem tampouco é pessoal. O embuste Scolari até me parece ser mais fruto do desleixo e da credulidade em torno dele que das fracas qualidades técnicas do próprio. É que, por exemplo, enquanto cá andávamos a acenar bandeiras e a endeusar o sargentão por nos ter conduzido a uma final, quase ignorámos que a selecção derrotada tinha Figo, Ronaldo, Rui Costa, Deco e Ricardo Carvalho. Perdemos. Em casa. Contra a Grécia. Pode ter sido só um dia mau, mas foi mau o suficiente para justificar desconfiança eterna, e para não nos hipnotizarmos pelo encanto supersticioso e tacanho do Gene Hackman brasileiro.
Scolari tem, obviamente, os seus méritos. O mérito de transformar seleccções em plantéis herméticos, vedando as equipas a experimentações desnecessárias (mas também vendando as equipas a craques com quem foi embirrando). O mérito de tornar o nosso país numa claque (ou melhor, numa torcida). O mérito de, nem ele, ter conseguido estragar a canarinha de 2002 – Ronaldo Nazário, Ronaldinho Gaúcho, Roberto Carlos ou Rivaldo transformaram o Brasil numa equipa de rainhas, e não era preciso ser-se um Garry Kasparov para movimentar razoavelmente tais peças.
Há mais méritos a reconhecer a Scolari, e mais justiças a serem-lhe feitas. Ainda assim, é impossível conter certa indignação quando um treinador destes – mediano, tecnicamente atamancado - granjeia estatuto e currículo que ultrapassam as suas reais capacidades. Já que passámos mais de uma década a bater continência ao sargentão, e a ser encandeados por aparições da Nossa Senhora do Carvaggio, estávamos mesmo a precisar de 7 golos alemães para abrir a pestana. É que tínhamos ignorado outros sinais: Felipão foi campeão do mundo no mesmo ano em que morreu Michael Young, o inventor do termo “meritocracia”.
Talvez esteja a acabar esta série com uma nota mesquinha. Que seja. O ar anda menos respirável e enfraqueceu-se o clima de armistício. O Mundial acabou há uns dias.
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