Marta, 30 anos

Hoje foi um dia importante para mim. Importante não significa necessariamente bom e eu já sei disso há alguns anos, mas hoje, mais uma vez, tive a sensação de ficar sem chão. Hoje quase que menti sobre o meu passado e não devia. Hoje quase que omiti ser sobrevivente de cancro pediátrico. E não devia.

No início do ano, ainda sem covid-19, o meu trigésimo aniversário foi celebrado com uma festa surpresa organizada pela minha família e amigos. Foi a minha segunda festa surpresa. A primeira foi quando terminei os tratamentos de quimioterapia, há dez anos, tinha eu vinte. Nessa festa houve risos e lágrimas. Tal como há dez anos, não faltou amor, carinho, comida e bebida, claro! Este ano, brindei a mais um ano de vida e a uma das decisões mais importantes para mim: vou comprar a MINHA casa. Ainda não me habituei à ideia, parece distante e impossível de concretizar, mas vou fazê-lo e com o meu noivo.

Fui hoje ao banco pedir o empréstimo para comprar a casa. Já com a máscara e depois de alguma espera, entrei para as duas horas que viriam a ser das mais longas de que tenho memória. Tal e qual como se tivesse feito uma PET (Tomografia por Emissão de Positrões): para além de ter demorado mais ou menos o mesmo tempo, viram todas as partes da minha vida, de vários ângulos, e repetiram várias vezes algumas perguntas “porque não consegui perceber bem na sua resposta o que queria dizer”. Resultado: para fazer um empréstimo para comprar a casa tenho de fazer um seguro de vida. E agora a notícia que me fez perder o norte: o seguro é caríssimo por ter sobrevivido a um cancro que já não tenho há dez anos. Dez anos. Vou pagar por ter sobrevivido, vão-me cobrar a minha vida, como se ela tivesse preço sequer. Tive vontade de mentir sobre o meu cancro. Eu tenho orgulho em ser sobrevivente. Isto não pode estar a acontecer. Não pode. 

Inês, 28 anos

Na última ida ao IPO de Lisboa, onde anualmente vou às consultas de acompanhamento de sobreviventes (DUROS – Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso), expus a dúvida que me assombrava há algum tempo: posso engravidar? 

Desde os meus 22 anos que ando a tentar perceber, por pesquisa minha, o que posso fazer, porque suspeitava que os tratamentos podiam ter-me roubado o sonho de ser mãe. Poderia ter tido a opção de congelar os óvulos, por exemplo, mas nunca fui informada por ninguém. 

Pela médica dos DUROS fui encaminhada, pela primeira vez, para consultas de fertilidade. Novos médicos, novas alas de hospital, novas incertezas e velhas emoções. A constatação de um dos meus maiores medos chegou: sou infértil. Como consequência dos tratamentos que fiz há treze anos.

Olhando para trás, percebi que tive sorte. Sorte porque a minha dúvida foi escutada e porque a médica que me acompanha sabe qual a melhor forma de me dar notícias, boas e más. Sorte porque fui encaminhada com alguma facilidade para uma consulta de fertilidade. Sorte porque nem todos os sobreviventes têm uma consulta adaptada às necessidades de um sobrevivente de cancro. Que sorte a minha...

Gonçalo, 35 anos

Há dois anos mudei-me para Roma. Na semana passada, tive que ir ao médico aqui em Itália. Foi a primeira vez desde que me mudei. Andava com dores de cabeça e dores ao fundo das costas um bocado estranhas e fui a uma consulta que já andava a adiar. Lá fui, com máscara e luvas. Cheio de medo por causa da covid-19.  Ao médico expliquei os sintomas e também o facto de ser sobrevivente de cancro pediátrico.

De repente, fui inundado com perguntas sobre o meu cancro: que tipo de quimioterapia fiz, recomendações de follow up, outras que tais. Entrei imediatamente em modo automático: acenava com a cabeça e encolhia os ombros a quase tudo. A minha confusão foi tão grande, que o médico apressou-se a perguntar, para simplificar, pelo meu Passaporte de Sobrevivente. E aí fiquei parado. Já tinha ouvido falar neste passaporte, mas em Portugal ainda não há. Percebi bem a sua necessidade e importância. Fiz uma bateria de exames para descartar tudo o que podemos imaginar e ainda fiquei internado uma noite.  Saí de lá no dia seguinte com um diagnóstico de stress e a recomendação para baixar os níveis de ansiedade. 

O médico que me atendeu foi impecável e partilhou comigo alguma documentação sobre o passaporte e como isso ajuda os sobreviventes de cancro. 

Na semana passada percebi que ser sobrevivente de cancro pediátrico significa diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes países. 

Estes são apenas alguns dos testemunhos de jovens que fazem parte do grupo de sobreviventes da Acreditar. Ser sobrevivente de cancro pediátrico em Portugal é diferente de o ser em outros países da Europa. No entanto, as questões da sobrevivência são as mesmas, as necessidades são semelhantes, as preocupações parecidas e as dificuldades partilhadas. 

A Acreditar promove o encontro entre sobreviventes portugueses e também a participação destes em redes internacionais como é o caso do CCI (Childhood Cancer Internacional). Juntos, partilham necessidades e constroem a mudança para que os sobreviventes de hoje e os de amanhã tenham um futuro melhor, fazendo valer as suas propostas junto das entidades responsáveis de cada país e também da Comissão Europeia.

As questões do Direito ao Esquecimento, das Consultas de Acompanhamento e do Passaporte do Sobrevivente são transversais a diferentes países europeus. Com este grupo, a Acreditar tudo faz para que um sobrevivente tenha direito a:

  1. não ter de referir que teve um cancro aos 20 anos num pedido de seguro de vida, sabendo que se o fizer o valor de apólice vai aumentar e omitir não deveria ser uma opção;
  2. consultas de acompanhamento de acordo com as suas necessidades, dois terços dos sobreviventes revelam sequelas provocadas pelos tratamentos;
  3. tratamento adequado em todos os hospitais onde os médicos possam aceder rapidamente ao historial clínico.

Defendemos que um sobrevivente de cancro pediátrico é acima de tudo um indivíduo, independentemente da sua profissão, cor política, futebolística ou qualquer outra escolha individual ou características que possa ter. É ser ele mesmo e, só depois, se assim quiser, ser o sobrevivente. É ser a Marta, a Inês e o Gonçalo.

“Sobrevivente de cancro pediátrico” não deve nunca ser um entrave ao acesso igualitário a uma cidadania plena.

Joana Silvestre é Coordenadora Nacional dos Barnabés*

*nome que a Acreditar (Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro) dá aos doentes e sobreviventes de cancro pediátrico

A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.