O reino de Sutocai teve o seu primeiro contacto com o Ocidente através duma breve missão diplomática portuguesa, século XVI. Mas a sua história de habituais guerras foi com os vizinhos, acabando por se consolidar no século XVIII, com o nome de Sião e a capital em Banguecoque.
Cinéfilos mais antigos lembrar-se-ão com certeza do filme musical “O Rei e Eu”, de 1956, em que a inglesa pespineta Deborah Kerr é contratada como perceptora dos 60 filhos de Sua Majestade (Yul Brynner, um sucesso, com a cabeça raspada e olhar imperioso). Há um outro filme de 1946, também inspirado no livro esquecido da americana Margaret Landon. Parece que em 1999 a história voltou aos ecrãs, com Jodie Foster, mas não "pegou" como as outras versões, certamente porque, entretanto, os nossos padrões de apreciação do comportamento das personagens mudou consideravelmente. É que a história original relata uma disputa permanente e bem-humorada entre os valores anglicanos da perceptora e a arrogância medieval do soberano. Uma narrativa que hoje em dia seria considerada politicamente incorrecta em todas as frentes — imperialismo, machismo, etc. — mas que é a única referência visual que temos sobre cultura do país.
Essa cultura sempre rejeitou influências externas. Apesar de fazer fronteira com países que atravessaram todas as vicissitudes da História, como o Vietename e o Laos, e tiveram de se modernizar a bem ou a mal, o Sião mudou o menos possível. Passou a chamar-se Tailândia em 1939, sete anos depois se ter declarado uma monarquia constitucional. Durante a II Guerra Mundial conseguiu um hábil equilíbrio entre os beligerantes, aliando-se ao Japão quando lhe foi imposto e aos Estados Unidos quando lhe deu jeito. Teve incontáveis governos de todas as cores políticas e golpes militares até ao último, em 2014, que se mantém firmemente no poder com o modus operandi habitual.
O que não é habitual é a filosofia em que se baseia este arranjo, um misto de tradição milenar, pompa imperial, budismo e astrologia. Ou seja: a clique militar usa, como desculpa para se manter no poder, a função de guardião da divindade do rei. E o povo acredita realmente que Maha Vajiralongkorn Bodindradebayavarangkun (Rei Rama X, para simplificar) é um semi-deus, um aspirante a Buda. Todos os minutos dum Rei do Sião obedecem a um protocolo riquíssimo e complicadíssimo que faria a corte de Luís VX parecer modesta. Por exemplo, os reis e rainhas só saem da sua privacidade sob a protecção duma sombrinha cujas cores seguem preceitos astrológicos. Cada planeta é associado a uma cor e um dia da semana, e assim os monarcas têm uma sombrinha diferente para cada dia das suas vidas, usada uma única vez. As instalações reais têm as dimensões que reservamos aos recintos desportivos, decoradas com uma profusão de dourados, adamascados e símbolos, que fazem o palácio de Buckingham parecer uma palhota.
O rei dá a graça de se mostrar num cerimonial excruciante, com muitas genuflexões de rosto no chão, passes coreografados pela situação astral e um protocolo das mil e uma noites. Qualquer comentário sobre Sua Majestade que não seja de espanto pela luz que a sua pessoa emite é crime de lesa-majestade, punido com 15 anos de prisão.
Esta riqueza ensurdecedora não impediu a modernização urbana de Banguecoque, entre arranha-céus e bairros da lata – o povo é pobre – a industrialização e a modernização espectacular da economia. A Tailândia cresceu 12,4% ao ano entre 1985 e 1996 e é a segunda maior economia do Sudeste Asiático, atrás da Indonésia. O PIB per capita de Banguecoque é de cerca de 13 mil euros.
Esta modernização, que enriqueceu os próceres do país, também criou uma classe muito numerosa e moderna de estudantes — já lá vamos.
O lado mais superlativo do presente Rei é o seu estilo de vida. Rama X, nascido em 1952 e coroado em 2019, já casou quatro vezes, em cerimónias sempre espectaculares que duraram vários dias, mas mesmo assim achou a vida em Banguecoque bastante entediante e mudou-se, de bagagens e concubinas (vinte, dizem), para um hotel na Alemanha, que alugou inteiro e de onde se desloca no seu Boing 737.
A desfaçatez com que Sua Majestade ostenta o desprezo pelo vulgo, e mesmo pelo país que o sustenta olimpicamente, acabou por ter consequências; não há bem que sempre dure.
No princípio deste ano, quando despontou a pandemia de Covid-19, a população percebeu que o Deus vivo não estava entre eles, nem no Céu, mas antes na Baviera, em recolhimento por tempo indefinido. Uma série de escândalos governativos — de corrupção entre os militares, para variar — levou os estudantes para a rua. Rapidamente, a amplitude das queixas passou das reformas económicas e sociais que tardam, para o impensável: questionar a vida do rei e, por inerência, o estatuto obsceno da monarquia.
Tal como em Hong-Kong, em Minsk ou em Minneapollis, o atrevimento dos estudantes tornou-se numa agitação permanente, que envolve grande parte da população. Correrias para cá, gases lacrimogéneos e balas de borracha para lá. E, tal como nos outros casos, a brutalidade inicial da polícia, habituada a agir impunemente, não tem sido suficiente para abrandar a agitação.
Já não é a abdicação de Rama X que se exige, é também o fim da monarquia e dos privilégios da classe dirigente. Exigências fortes e, como sabemos, muito difíceis de satisfazer. Até que ponto os militares conseguirão manter o status quo, é difícil de prever. Por enquanto só falam em mudanças cosméticas, mas essas já não convencem ninguém.
Nestas situações, gostaríamos de acreditar que os oprimidos eventualmente terão algum sucesso, mas a fé é a única esperança que resta. Está aí o fim da independência de Hong-Kong, a continuação da violência policial em Minsk e no Minnesota, e outras tantas situações, para mostrar que, astrologicamente, o alinhamento dos planetas não está a favor da persistência popular.
Quanto a Maha Vajiralongkorn Bodindradebayavarangkun, está muito bem nos Alpes, onde a temperatura é mais fresca e não se ouve gritaria nas ruas. Se vai descer à (sua) terra, só o alinhamento dos planetas poderá dizer.
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