As que perceberam a ironia e gostaram da crónica – perceberam o alvo do texto, compreenderam o seu objectivo e acharam que estava bem escrita e provida de uma ironia que chamava à atenção de algo grave, atacando as políticas do governo através da utilização do absurdo e, apontando o dedo aos que dizem “E as crianças na Síria?” sempre que alguém mostra empatia ou quer ajudar uma causa que, no entender desses, é menor.

As que perceberam a ironia e não gostaram da crónica – perceberam o alvo, mas acharam que o texto estava mal construído e não acharam nem piada nem reconheceram criatividade ou subtileza no discurso utilizado. Dirão que seria melhor uma comparação com algo mais fútil – e não com outra tragédia grave – e que isso faria com que a ironia funcionasse melhor e passasse melhor a mensagem ao expor, dessa forma, a gravidade de ter crianças nos corredores do IPO.

As que não perceberam a ironia e gostaram da crónica – pessoas que caem na categoria de bestas e que acharam que realmente os pais de crianças com cancro não deviam refilar porque há coisa piores na Síria. Acredito terem sido uma minoria, mas vi alguns comentários de pessoas que, além da fraca capacidade para compreender figuras de estilo, ainda juntam a virtude de serem execráveis.

As que não perceberam a ironia e não gostaram da crónica – a maioria das pessoas, pelo que vi. Não percebendo a ironia, pensaram que o alvo da crónica era menosprezar o sofrimento das crianças e seus pais, tomando o texto como um gozo descarado a um tema sensível com o qual dizem “não se deve brincar”. Podemos discutir se a ironia é que estava defeituosa ou se as pessoas é que são pouco perspicazes. Podemos discutir se foi do imediatismo das redes sociais, da psicologia de massas ou da falta de empatia destas pessoas para com o autor do texto.

O primeiro e segundo grupo são perfeitamente legítimos e dependerá do gosto e exigência de cada um. O terceiro grupo é de gente palerma. O quarto grupo, sendo legítimo, podemos discutir se a melhor ironia é aquela que não é entendida por muita gente, sendo subtil, ou é aquela que é explícita e chega a mais pessoas, mesmo as de fraca capacidade para a entender. Por último, temos um grupo do qual temos a certeza que deve algo à inteligência que é o que afirma “Percebi a ironia, mas não se deve gozar com crianças com cancro”. Lamento, mas isso é impossível. Percebendo a ironia, perceberiam que não há ali qualquer ataque ao sofrimento das crianças. Achando que o há, é porque não perceberam a ironia. É uma demonstração matemática simples. São mutuamente exclusivas com um conjunto igual a zero da sua intersecção. Não dá para ser os dois ao mesmo tempo sem se ser burro, lamento.

Em suma:
A crónica é boa? Depende dos gostos e – não é que a minha opinião interesse para alguma coisa – a meu ver não é grande coisa.
A intenção era atacar crianças com cancro? Acho que é facilmente percetível que não.
Continuam crianças a fazer quimioterapia nos corredores do IPO? Sim.
Continuam crianças a morrer na Síria? Sim.
As pessoas manifestaram-se mais contra o senhor da MultiOpticas do que contra os dois factos acima? Sim.
Eu escrevi uma crónica sobre este assunto em vez de sobre crianças em sofrimento? Sim.

Moral da história: somos todos meio burros e hipócritas, mas isso já sabíamos.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

O livro “As Figuras de Estilo da Língua Portuguesa” de José Manuel Castro Pinto.

Podem ver como ajudar e fazer donativos para o IPO de Lisboa e do Porto nos respectivos links.

Palestra TEDx sobre os limites do humor neste link.