As crises de governo são uma rotina na vida italiana. Nos 76 anos decorridos desde 1946 a Itália já vai no 67º governo diferente. Mas o atual primeiro-ministro, Mario Draghi, para além de símbolo europeu de liderança forte e eficaz (quando presidiu ao BCE, com aquele famoso «whatever it takes» foi o salvador do Euro), nos 17 meses que leva como chefe do governo de Roma deu segurança aos italianos: fez avançar a recuperação económica, instalou o diálogo social, impôs a credibilidade que ele representa e que recolocou a Itália no topo da influência político-diplomática na Europa. Por isso, Draghi, Super Mario como ficou celebrizado, tem forte apoio das principais instituições italianas, das confederações empresariais aos sindicatos passando pela igreja católica.

Draghi foi convidado em fevereiro do ano passado, pelo também muito respeitado presidente Sergio Mattarella, para salvar Itália como primeiro-ministro capaz de pôr ordem na economia e conduzir as reformas necessárias.

Depois de se reunir com todos os principais partidos políticos, Draghi conseguiu o milagre de um governo de unidade nacional. O gabinete empossado em 13 de fevereiro de 2021 tem quatro independentes com perfil técnico de reconhecida competência em pastas chave e integra representantes de todos os sete principais partidos italianos. Estão os partidos tradicionais do sistema político italiano, da esquerda tradicional (liderada pelo Partido Democrática) à direita (encabeçada pela Forza Italia de Berlusconi), incluindo os novos movimentos populistas como a muito direitista Liga (de Salvini o amigo de Le Pen, Órban e Putin) e o híbrido Movimento 5 Estrelas criado pelo cómico Beppe Grillo.

De fora da maioria de unidade nacional ficou o partido nacionalista populista Fratelli d’ Italia da carismática Giorgia Meloni, que neste último ano e meio tem monopolizado a oposição italiana.

A maioria de unidade nacional formada por Draghi tem um problema desde o primeiro dia: um dos parceiros, o 5 Estrelasb(M5S), que nasceu como movimento populista a cavalgar o descontentamento popular, vive em instabilidade permanente, ora a virar-se para a direita, ora a virar-se para a esquerda. O M5S instalou-se sem liderança definida e, mesmo assim, nas últimas eleições gerais, em 2018, recebeu 11 milhões de votos (32%) e 227 dos 630 deputados.

Os constantes ziguezagues políticos lançaram o M5S num processo de decomposição. Mais de 60 dos deputados eleitos pelo M5S já deixaram o movimento para fundar um outro partido. Um dos dissidentes é um dos ex-líderes, Luigi di Maio, atual ministro dos Negócios Estrangeiros.

Draghi foi chamado a formar governo quando caiu o governo chefiado por Giuseppe Conte, o jurista que o M5S tinha indicado para primeiro-ministro. 

Conte não gostou de ter sido afastado. Conquistou a liderança do cada vez mais minguado M5S e, apesar de fazer parte da maioria governamental, esteve sempre com um pé de fora.

Na passada quinta-feira, o governo italiano levou a votos no parlamento um decreto com medidas contra a inflação. Os pressupostos daquele decreto configuravam uma moção de confiança. O decreto foi aprovado mas os deputados do M5S de Conte saíram da sala no momento da votação. Draghi considerou que aquela posição era um gesto de desconfiança e representava a gota de água que transbordava o copo. Seguiu imediatamente para o palácio residencial do Quirinale para apresentar a demissão.

O experiente presidente Mattarella – os presidentes em Itália costumam ser bons exemplos de sabedoria política, viu-se isso com Pertini ou Napolitano – recusou a demissão. Convidou Draghi a esperar pelo debate parlamentar desta quarta-feira. A saída de Draghi ficou temporariamente congelada. De facto, Mattarella quis ganhar cinco dias para que a Itália sensata levasse Draghi a reconsiderar e continuar no comando do governo, o que parecia missão quase impossível dada a determinação de Draghi a declarar que a unidade dos partidos em torno do governo é condição para chefiar o governo.

Disparou o cenário de séria crise política, apontando para eleições em outubro. A queda do governo implicaria meses de paralisia política num tempo de urgência para o combate à inflação e à escassez energética. Sobressalto geral não só em Itália, também na Europa. Draghi, pelo prestígio que tem, tinha feito o duo franco-alemão de comando político da União Europeia passar a trio, incluindo a Itália.

Dentro do M5S, que precipitou a crise, sucedem-se reuniões tumultuosas com ameaça de mais cisões por parte de deputados pró-governamentais.

O movimento pró-Draghi cresceu de forma imparável nestes dias: mais de mil presidentes de câmara municipal – entre eles os de Roma, Milão, Florença e Veneza – assinaram um manifesto a reclamar a Draghi que continue porque “a Itália precisa que ele continue o plano de recuperação do país”. Os sindicatos ou ordens de médicos, professores e economistas repetem o apelo. Há quem pague anúncios nos jornais a requerer que Draghi continue a salvar Itália. Os reitores das universidades juntam-se ao apelo.

Draghi não pode deixar de estar comovido, mas o gabinete do primeiro-ministro informa que ele não mudou de posição, exige mudança do clima político e coesão dos partidos em torno do programa de governo.

Tudo vai ficar decidido nesta quarta-feira: as duas câmaras, parlamento e senado, vão reunir-se para discutir a crise. O primeiro-ministro demissionário, Draghi, vai expor a visão dele, escutará a seguir a réplica dos partidos e verificará se existe a unidade que reclama. A votação, primeiro no senado, depois no parlamento, permitirá mostrar numericamente o apoio que Draghi tem.

Esta quarta-feira é assim o dia decisivo. Draghi vai provavelmente sair mais reforçado para liderar.