1. Quando morre uma pessoa com quem partilhamos tudo e nada, há um tempo em que a pessoa já não está cá mas uma parte de nós ainda se esquece, e pensa coisas como, tenho de falar à Teresa disto, ou a Teresa ainda não viu aquilo. É aí que estou, menos de uma semana depois de a Teresa ter morrido, no absurdo de estar a escrever porque ela morreu, quando parte de mim ainda pensa que vamos falar disto e daquilo. Por exemplo a morte dela. Que bom era se quem a ama, e somos tantos, pudesse falar com ela sobre o assunto, para ela tornar tudo mais fácil. Nos tornar melhores, a sua especialidade. Risos, escrevia nas mensagens.

Mas ainda não se achou essa maneira de quem morre nos consolar de já não estar cá. Vamos ter de aguentar sozinhos sem a Teresa. Ela também nos preparou para isso. Preparou muita coisa. Bastava estar perto, vê-la, ouvi-la. E como, além de ser uma das pessoas queridas da minha vida (e de tantas outras), foi importante na cultura portuguesa de uma forma rara, não convencionada, quero escrever sobre ela, só posso escrever sobre ela.

2. Maria Teresa Carriço Marques nasceu a 2 de Agosto de 1943, em Vila do Conde, terra de mar bravo e pescadores mas também de conventos, o que implica doces. Calhou assim crescer no calor do Doce de Santa Clara, a pastelaria dos pais, famosa na região (utensílios, receitas, histórias no livro “Olívia e Joaquim”, de Duarte Belo, Assírio & Alvim, 2007).

Os inefáveis pães-de-ló que a Teresa fazia para levar aos amigos, sempre enlaçados por grandes papéis coloridos, eram só uma das suas heranças de doceira, sem prejuízo dos salgados. Adorava cozinhar, e cozinhava muito, ainda que a cozinha dos últimos anos fosse mínima, mas toda aberta para a sala de jantar, e pensada de modo a tudo caber. Comer, beber, estar à mesa era parte da conversa interminável com as pessoas de quem a Teresa gostava, que sempre foram muitas, e que gostava de apresentar umas às outras. E o mais provável, quando alguém ligava, era que ela tivesse acabado de fazer um bolo, ou se preparasse para isso, porque parecia haver sempre pretexto: um aniversário, um regresso, um lançamento.

Imagino o rodopio que seria na Vila do Conde de 1950-1960 o sorriso daquela rapariga, pura matéria solar. Mas até vir para a Faculdade de Letras de Lisboa, aos 18 anos, Teresa nunca namorara. Queria ter toda a liberdade, dizia. Portanto, aquele rapaz, na verdade quase onze anos mais velho, já com o cabelo ralo, já doutorado em Direito Canónico, já às voltas com cisões e colisões espirituais, esse já grande poeta chamado Ruy Belo, que inusitadamente se increvera em Letras e portanto era seu colega, veio a ser o seu primeiro namorado.

No depoimento que gravou para o documentário “Ruy Belo, Era uma Vez” (Nuno Costa Santos e Fernando Centeio, 2015), Teresa tenta, entre risadas, dar uma ideia do que Ruy terá visto nela. Diziam-na muito alegre. Mas sobretudo, diz, Ruy percebeu que ela ficaria com ele até ao fim.

Percebeu bem: Teresa ficou com ele até ao fim, apesar da montanha-russa emocional que foi acompanhá-lo. Em muitas circunstâncias, literalmente, salvá-lo.

O começo desse namoro pode ser evocado a partir de uma história que a Teresa gostava de contar. Uma vez, iam a conversar num autocarro, ele junto à janela, ela ao lado dele, até que ela lhe chamou a atenção para a paisagem; sempre voltado para ela, ele respondeu: a paisagem está aqui.

Ruy estava a recuperar do corte com a Opus Dei, onde chegara a fazer votos. Também ele nunca namorara. Naquele que veio a ser um dos seus grandes poemas, o “Elogio de Maria Teresa”, olha para trás, para esse encontro do riso claro, que era Teresa, com aquele “poeta pobre velho e feio”, que era ele. “Estás presente em mim como ninguém / e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres / além de ti além de minha mãe / Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste / a tua alegre vida irrequieta / no único infeliz dos teus negócios”.

Maria Teresa Carriço Marques passou a ser também Moura Belo em 1966, no casamento em Vila do Conde. No filme que há, a graça de Teresa, rindo de branco, rouba toda a cena. Professor dos noivos, Luís Filipe Lindley Cintra foi padrinho, não apenas de casamento como até morrer. O seu filho Luís Miguel Cintra considera Teresa uma espécie de irmã até hoje. Ela acompanhou Luís Miguel nas estreias, nos filmes, nas gravações (ninguém disse a poesia de Ruy Belo como ele), nas esperas, nas angústias, no fim do Teatro da Cornucópia. Sempre que nos ligávamos, a Teresa falava de vários próximos com quem acabara de estar ou ia estar, de quem invariavelmente cuidava, frequentemente Luís Miguel. Tinham a mesma idade, mais ano, menos ano. Como outros colegas de Letras que se tornaram amigos para a vida, Gastão Cruz, Leonor Xavier, Helena Abreu (que inspirou a Ruy, por exemplo, o poema “To Helena”).

Logo após o casamento, nasceu Diogo e um ano depois Duarte. Nesses primeiros tempos moravam no Cacém, linha suburbana de Sintra já bem avançada, porque era mais barato (Helena Abreu lembra-se de chamarem a Ruy, na brincadeira, “poeta do Cacém”, mas ele ia para Lisboa sempre que podia, filmes, exposições, concertos, muito do que se pode ler nos poemas, também).

Em 1971, buscaram apartamento para comprar. Havia a hipótese de um no bairro lisboeta de Alvalade, bem mais burguês, só que os livros de Ruy não caberiam. Optaram então por outro maior, no Monte Abraão (Queluz), mesma linha suburbana, não tão longe, e numa nova urbanização, com um par de amigos por perto. O crédito também seria mais vantajoso. Mas o elemento decisivo foi mesmo a biblioteca, diz Duarte. Ou seja, o Monte Abraão (onde hoje continua todo o espólio de Ruy Belo), entrou para a história da literatura portuguesa porque numa família de quatro, com dois filhos pequenos, os livros é que decidiram. Bate certo com os Belo, pais, filhos e netos, até hoje. Leitores compulsivos.

Com a sua bagagem de direito, incluindo o canónico, Ruy chegou a advogar passageiramente no escritório de Salgado Zenha, resolvendo imbróglios de casamentos católicos. Ganhou dinheiro com isso, mas não seria de todo o que queria, aliás, precisava absolutamente de fazer. As finanças da família foram quase sempre apertadas, e com o nascimento de Catarina, em 1974, passaram a ser cinco.

Isto, para dar algo do contexto em que a Teresa se desmultiplicou. É difícil ter o alcance da fibra dela sem alguns detalhes. Nas elites que tendiam a marcar o meio intelectual português, o dinheiro podia não ser um assunto, luxo de quem pode. Mas o dinheiro foi um assunto na vida da Teresa. No sentido em que se desmultiplicou a trabalhar; mas também por ter vivido na pele, desde que casou com Ruy, como a remuneração do trabalho criativo é a primeira forma de o respeitar/incentivar, ou não. Isto, num país muito inclinado a assobiar para o ar quando se trata de dinheiro na cultura. A Teresa era uma mulher de grande sentido prático, tão simpática quanto sensata, óptima avaliadora e negociadora. Não lhe comiam as papas na cabeça. Mesmo assim, nunca foi fácil, começou a ser difícil ainda em vida de Ruy Belo, quando a instabilidade dele se acentuou, e tornou-se duro depois da sua morte, em 1978. Sozinha com três crianças num apartamento suburbano, Teresa acumulava trabalhos e isso não bastava para chegar ao fim do mês. Os pais ajudaram regularmente, desde Vila do Conde.

E se esses trabalhos existiam, estavam lá, foi porque ela optara por ficar a viver em Portugal quando Ruy se mudou para Madrid nos anos pré-revolução, como leitor de português. Estando Ruy tão entregue aos seus cumes e abismos (incluindo quase morrer afogado, muitas noites em claro, barbitúricos, tudo isso que ele pôs nos poemas), Teresa manter-se em Lisboa era assegurar chão firme à família, e a liberdade total do poeta. Para que nenhum verso ficasse por escrever, como ela dizia.

Teresa começara por dar explicações, tornou-se professora efectiva do liceu de Queluz, foi formadora de professores muito tempo, entretanto também professora de francês e de literatura na UAL durante 19 anos. Pelo meio, concebeu exames, programas, orientou estágios, fez traduções, e, com a sua amiga Maria Jorge, um livro de análise de textos literários sucessivamente reeditado. Ao todo, 40 anos dedicados ao ensino, sempre festejada por alunos e professores.

No começo da década de 2000, trabalhou um par de anos no Ministério da Cultura (segundo governo Guterres, entre os ministros Sasportes e Santos Silva), primeiro como chefe de gabinete do secretário de estado, depois como assessora. Não convivi com ela então, mas quem a acompanhou recorda-se da vantagem que era Teresa no diálogo com os artistas. Como não? Diálogo era com ela, artistas também. Não só casou com um, e foi essencial para que Ruy escrevesse (sem Teresa, ele não teria escrito metade, crê Duarte Belo), como viveu rodeada de artistas, fazendo acontecer tudo e mais alguma coisa, informalmente. Pena ter estado de forma tão limitada no Ministério da Cultura. Teria sido incrível vê-la a fazer acontecer tudo e mais alguma coisa oficialmente.

3. E aí estamos no cerne de como a Teresa foi importante na cultura portuguesa do último meio século de uma forma rara e não convencionada. Rara, porque não sei de muitas pessoas que dêem ânimo, força e meios a tanta gente para fazer coisas, além de tudo o que ela mesma fez ou ajudou a fazer, sem créditos: colóquios, filmes, peças, teses, exposições, incontáveis edições. Não convencionada porque este tipo de acção não parece caber nas gavetas da “cultura” (veja-se o quase silêncio dos media formais sobre a morte da Teresa). Nem me vou alongar na especulação de se isto seria possível com um homem. Se algum homem em Portugal, nestas décadas, nestas circunstâncias, seguraria as laranjas que a Teresa segurou no ar, enchendo a nossa vida de alegria e beleza, tornando este país tão melhor.

Essa acção rara resulta de uma visão rara, talvez mesmo única entre as pessoas que conheço. A Teresa, que tranquilamente não se considerava uma criadora, batalhou com unhas e dentes por Ruy Belo, mas também por muitos outros artistas ao longo de décadas, digamos até à semana passada, porque via a necessidade que existia neles como vital.

Uma das primeiras perguntas que fazia ao telefone era sempre, e o teu livro, como vai o teu livro?, fosse um publicado ou em curso. Não é comum as pessoas fazerem isso. Os livros podem vir à conversa, esporadicamente, mas para a Teresa estavam sempre no centro, como para outras pessoas os filhos, a família, o emprego. Ela sabia que se tomam decisões de vida por causa dos livros. Digo livros, porque era o universo mais próximo dela, que estudou e ensinou literatura, casou com um poeta, tem dois filhos que também fazem livros, manteve o apartamento do Monte Abraão com a biblioteca original e a casa lisboeta para onde se mudou há dez anos cheia de livros, até ao que ela chamava o “aquário” no jardim, onde podíamos dormir rodeados de algum Flaubert anotado por ela, algum Camus.

Mas se era com um actor que falava (e acompanhou tantos, tão jovens, até hoje), ou um artista plástico, ou um músico, simplesmente variava o meio: e a tua peça, a tua exposição, o teu filme? Tratava toda a gente por tu, a Teresa, e fazia pontes, abria portas, começando pelas da própria casa, ou casas. Ia a tudo dos amigos, agenda sempre repleta, cheia de sobreposições. Estava lá no bom e no mau. Onde os descasos incitavam a desistir, contrariava isso. De certa forma, contrariava este país no seu mais terrível, este tempo que nunca deixou de ser detergente. Fazia as pessoas maiores porque com ela, de facto, ficavam maiores.

Ruy Belo morreu há 40 anos. Teresa passou muito mais tempo sem ele do que com ele. Neste país tantas vezes faz-de-conta, há uma demonização das “viúvas” de artistas, uma demonização tão misógina quanto “o meio cultural” consegue ser, que é bastante. As “viúvas” dão jeito para acesso a manuscritos, inéditos e tal. Quando não dão, são umas chatas. Umas “viúvas”, no mínimo. A Teresa escapou bastante disso, por ser tão generosa, tão claramente do bem, mas não escapou totalmente. Haverá sempre quem ache de mau tom que uma pessoa, leia-se uma mulher, lute por aquilo que viu nascer, em muitos casos ajudou a nascer, e em que acredita totalmente. Do ponto de vista dos cínicos, de resto, nunca foi de bom tom demasiado entusiasmo, demasiado esforço. Não é novo, não acabará aqui. Não que a Teresa falasse disso, tinha mais do que fazer.

Mas a alegria dela não era ingénua, ela sabia bem onde rondavam as patifarias. E tinha uma intuição sagaz, cortante, do tempo mínimo a dispender com isso. Tal como a alegria dela era a de quem conhece a angústia. Uma alegria que parecia ter visto tudo, portanto nada a derrubava.

4. Não derrubou, até ao fim, como sabe quem a acompanhou, um pouco ou muito, nos últimos anos, ao longo de cirurgia, re-cirurgia, quatro quimioterapias, radioterapias, tratamentos experimentais, desde que lhe detectaram o cancro. O bicharoco. O bandido. Esse filho da puta que a Teresa estava absolutamente decidida a vencer.

Nunca me vou esquecer do riso dela, dos lenços coloridos dela, da peruca vermelha dela, naqueles corredores, naquelas salas cheias de tubos e aparelhos digitais. De como era ela que dava força aos amigos, às amigas sempre presentes (como Laurinda Bom ou Helena Abreu, mas várias outras), à filha Catarina, arabista que há anos mora no Cairo e nestes últimos meses tirou licença sem vencimento para estar com a Teresa, ou ao Duarte, incansável motorista, humorista negro, companheiro em sessões de cinema à saída das quimios, companheiro da mãe em tudo.

A Teresa conhecia o fundo. E voltava-se para o sol, como faz a vida.

5. Já aqui vai um estendal e ainda falta tanto. As cores da Teresa num país de cinzas, da “hena” vermelha aos sapatos, passando pelos óculos. Os lenços que trazia quando viajava e as viagens (várias ao Médio Oriente). As loiças, o artesanato, de que o Ruy também era coleccionador. As mil e uma plantas naquele jardim lá de casa que parecia tropical. Essa presença constante da beleza.

Como a Teresa mostrava os desenhos da neta Maria, única menina dos quatro netos (mas falava sempre de todos, o Pedro e o Afonso, filhos do Duarte, o Rafael, filho do Diogo, tal como a Maria). Ou falava das leituras vorazes do Diogo e dos imigrantes que ele ajudava, como advogado. Ou de tantos, que por serem tantos vão faltar aqui, de Vila Conde às últimas décadas (Mafalda Ivo Cruz, Anabela Mota Ribeiro, Manaíra Aires Athayde, António Carlos Cortez, Alexandra Mesquita, Teresa Correia, Nuno Costa Santos e Fernando Centeio, a Isa e o Frederico, a Regina…).

A Teresa tinha amigos de todas as gerações, mesmo. E em parte isso tinha a ver com aquela liberdade radical que era a sua. Eu não diria que a Teresa era crente de um deus, acho que era crente de todos e nenhum. Não parecia haver nela sombra de preconceito de idade, género, raça, credo, preferência sexual. A Teresa respeitava verdadeiramente toda a forma de vida voluntária, com uma ausência singular de puritanismo. Tinha 74 anos, era a minha amiga mais velha, e não me lembro de não ser possível falar com ela sobre fosse o que fosse.

6. A morte, a falta de quem nos é querido, vem por ondas, até tomar conta da memória de todo o corpo, o que não quer dizer que não continue a ser estranho. Mas ajuda tudo o que por causa da Teresa existe, aconteceu, é real. De certa forma, a juventude definitiva de que Ruy Belo falou é ela. No próximo Agosto não rirá no seu 75º aniversário, nem se pirará para um mergulho na Costa da Caparica, como fazia, mesmo doente, menina do mar. Mas tudo isso é a herança dela, voltarmos a cabeça para o sol. E, de cada vez que o meu comboio parar no Monte Abarão, pensarei naquela mesa grande da sala, onde a Teresa abriu bilhetes, cartas, guardanapos rabiscados, mal acabava de me conhecer.

Domingo passado, no pequeno cemitério branco de São João da Ribeira, Luís Miguel Cintra leu o “Elogio de Maria Teresa”, antes de o caixão ser enterrado por cima do de Ruy. Pareceu a melhor despedida, e que a Primavera acabava de chegar, tal o azul, o verde.

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