1. Fazer listas de mão no ar
Vamos começar pelo mais simples: há pequenos truques de escrita e certas inclinações quase invisíveis que nos ajudam a chamar a atenção quando discursamos ou escrevemos.
Por exemplo, fazer uma lista (como este texto) ajuda a chegar aos leitores. Por essa razão, é tão habitual vermos listas nas partilhas do Facebook...
O truque não é recente. Basta pensar num político qualquer, de voz retumbante, que põe os dedos no ar e começa a enumerar todas as razões por que temos de ter mão nisto! Os olhos ficam suspensos nos dedos do orador e os ouvidos querem saber qual é a próxima razão — ou, no caso deste texto, em que temos apenas um cronista a falar da língua, o que queremos saber é qual será o próximo truque...
2. Usar palavras sedutoras
Em certas situações, usar palavras pouco claras ou vagas pode ser a melhor forma de conseguir a simpatia de quem nos ouve, para lá de qualquer razão. Por exemplo, há discursos que se baseiam no regresso ao natural para vender charlatanices. Outros assumem como valor a pureza — escondendo intuitos um pouco mais cruéis do que essa pequena palavra faz crer. Há ainda aqueles que apostam no “isto é assim e mais nada!” — palavras cheias de certeza e, por dentro, cheias de nada ou, quase sempre, de muita preguiça de pensar.
O vocabulário sedutor é variado: temos desde as palavras simples e directas que escondem mais do que mostram (há políticos que dizem “somos fortes!” para esconder fraquezas) até às palavras obscuras que são atiradas à nossa cara como areia, sem que, muitas vezes, nós, que estamos a ouvir, tenhamos a coragem de dizer “não estou a perceber”.
Na verdade, muito deste vocabulário manipulador engana até quem o usa — e é tão difícil resistir à sedução de certas palavras, é tão difícil resistir à bebedeira de certos discursos...
Então se as palavras foram assumidas com bom ritmo, com confiança, com um sorriso e um corpo seguro — pouco podemos fazer para lhes resistir. (Mas podemos tentar.)
3. Falar da nossa tribo
O mais potente truque do discurso humano é mesmo o tribalismo.
Quando discursamos ou escrevemos um texto (que, no fundo, é uma forma de discursar), a melhor maneira de prender os corações de quem temos à frente é apelar ao clube, à tribo, à nação...
Pois imaginem um presidente dum clube, numa assembleia geral, a apontar, emocionado, para os valores do clube, para a história daquelas cores — e, claro, a lembrar também as malfeitorias dos outros clubes no domingo passado. E estamos a falar de desporto, de gente unida por um emblema pouco mais que aleatório. Imagine-se a força do mesmo tipo de discurso quando falamos da nação, da religião ou de outro dos muitos grupos em que nos dividimos sem sossego.
O ser humano é tribal por natureza. Ficamos com o coração aos saltos quando alguém apela à nossa tribo e divide claramente quem são os nossos e quem são os outros.
E, reparem, isto não acontece apenas nos discursos mais nacionalistas ou clubistas. Até eu, neste pequeno texto, fui subtilmente tribalista: enfiei no título a língua portuguesa. Ora, estes truques são próprios do discurso humano de todas as línguas, não só da nossa. No entanto, sei que todos nós, quando ouvimos falar da nossa língua e quando vemos o nome da nossa tribo no título — ah, ligamos muito mais. Foi um pequeno truque para chamar a atenção para estes truques...
Como se revela este tribalismo? De muitas maneiras. Desculpamos qualquer erro dos nossos; empolamos até ao enjoo qualquer erro ou frase mais ambígua do outro lado; não dialogamos — entramos em batalha cerrada em que tudo vale, até as distracções de português do outro lado...
E queremos ser os mais puros dos puros, não toleramos desvios, descaímos para os extremos e recusamos qualquer análise ou moderação. Quando entramos na lógica tribal, o que conta é a guerra e a língua é apenas um instrumento nessa guerra — ou forma de detectar traidores, de perceber quem não está aqui para ser o mais puro dos puros.
Diga-se que é mais fácil escrever bem — de forma interessante e entusiasmante — se estivermos imersos nessa lógica tribal. É mais fácil escrever ou falar para os nossos do que dizer “se calhar, temos razão, mas há aqui um pormenor em que podemos, talvez, estar enganados”. Imaginem um discurso desse tipo durante uma campanha eleitoral: seria o fim do artista, que é como quem diz, do candidato...
A língua portuguesa, nas mãos de quem sabe dividir o mundo sem tempo para dúvidas, é perigosíssima. E, sim, é verdade: este tribalismo aparece em todas as culturas e em todas as línguas. Mas convém perceber que não estamos imunes a este vírus, a estas seduções, a estes perigos que se escondem no rufar de tambores dum discurso empolado.
Marco Neves | Autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol (Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.
Comentários