Beirute, Hong Kong e Santiago do Chile são situações que pareciam sob controle (controles muito diferentes, mas isso são outras histórias) que de repente se descontrolaram e o povo saiu à rua para protestar violentamente. Fora estas situações pontuais explosivas, há evidentemente os contínuos psico-dramas vividos pelos Estados Unidos e o Reino Unido, e mais as grandes e pequenas baralhadas no Oriente Próximo, de cujo número de vítimas e de brutalidades já se perdeu a contagem. No meio de tantas preocupações – estamos a omitir muitas outras, como Bolsonaro no Brasil, Duterte, os rohingyas... a lista é de endoidecer — ninguém fala no Haiti, oficialmente o país mais pobre do hemisfério ocidental. Depois de, no século XVIII, a ilha de Hispaniola produzir 60% do café e 40% do açúcar consumidos pela Europa – uma riqueza colossal.
O que se passa no Haiti é de um desconsolo total. E não ocorre há semanas ou meses; conforme queiramos olhar mais para trás, chegamos facilmente a 1791-1804, o ano em que se tornou independente. 1791 é três anos depois da Revolução Francesa, que aboliu a escravatura. A notícia chegou às colónias caribenhas francesas, onde a tal riqueza colossal era partilhada por dezenas de senhores imperiais que faziam trabalhar de sol a sol centenas de milhares de escravos. Os enviados de França foram escorraçados, sovados, até assassinados pelos senhores. Mas a notícia também chegou aos escravos. Percebendo que a Metrópole não protegeria os seus senhores, revoltaram-se. Noutras ilhas, como na outra metade da ilha de Hispaniola, colónia espanhola e actual República Dominicana, as lutas correram de modos diferentes, e o poder colonial manteve-se, pelo menos provisoriamente, com algumas mudanças cosméticas. Mas no Haiti, os escravos ganharam, aberta e claramente, contra os senhores, que executaram, e contra as tropas enviadas de França, que venceram. Os espanhóis e os ingleses também tentaram cometer as suas forças, atraídos por tanto café e açúcar, mas tiveram de desistir. A febre-amarela dizimava qualquer força que não tivesse nascido naquele clima equatorial.
Não haverá espaço para contar toda a história da meia-ilha entre 1802 e 2019, mas pode fazer-se um resumo. Em 1802, o herói nacional Toussaint L’Ouverture foi enganado e morto pelos franceses. Agora quem mandava em França era Napoleão, pouco inclinado a brincadeiras e sem problemas quanto à escravatura. O seu general, Visconde de Rochambeau, chegou a importar 15.000 cães da Jamaica, especialmente treinados para caçar e matar negros. Voltou temporariamente a escravatura, mas a revolta continuou e Jean-Jacques Dessalines declarou a independência em 1804. (Os nomes dos haitianos são sempre uma mistura de francês e crioulo.) Uma República mesmo. Governada pelos mestiços (“gens de couleur”) que se tornaram a burguesia local, enquanto os escravos eram promovidos a povo em geral. Houve mais guerras com os europeus, mas, entretanto a escravatura começou a ser universalmente criticada e acabaram por deixar o Haiti entregue à sua sorte. (A Republica Dominicana, que ocupa a maior parte da ilha, só se tornou independente em 1822, seguiu uma história diferente e hoje em dia é uma democracia parlamentar decente e um resort turístico.)
Destruída pela guerra e arruinada com o pagamento de 150 milhões de francos de ouro à França, a sociedade haitiana nunca se desenvolveu e manteve a estratificação dos tempos coloniais, agora com os mestiços como casta superior. Para se ter uma ideia da situação, só em 1947 acabou de pagar a dívida exigida pelos franceses de 1825, como compensação pela destruição dos seus colonos – a troco de poder viver em paz e ser reconhecida como país.
Os americanos receavam que a vitória dos escravos numa meia ilha das Caraíbas influenciasse a revolta dos seus próprios escravos, e só em 1862, já a Guerra Civil deflagrada, Washington reconheceu a sua independência. A ilha tinha interesse estratégico para os Estados Unidos, como base nas Caraíbas, e o Presidente Andrew Jackson chegou a sugerir anexá-la, mas acabaram por exercer o poder indirectamente, com uma guarnição militar permanente e intervindo nas lutas internas ao sabor dos seus interesses. A marinha norte-americana interveio 19 vezes, entre 1857 e 1913, para “proteger a vida e a propriedade dos americanos”. Finalmente ocupou o Haiti entre 1915 e 1934. A Doutrina Monroe (“A America para os americanos”) na versão mais colonial.
Nesse ano os norte-americanos mudaram o sistema de exploração e deixaram a ocupação oficial, passando a fazê-lo através do poder político local e duma força policial organizada, os Gardes. A ilha não tendo nem laranjas nem petróleo, ficou-se por um vago desenvolvimento turístico, logo estiolado, enquanto os poderes locais funcionavam com uma mistura de brutalidade e bruxaria – os famigerados zombies, mortos-vivos envenenados pelos feiticeiros com tetrodotoxina do peixe balão. (O mesmo peixe que os japoneses comem em doses controladas como delícia alucinogénica.)
A partir de 1957, assustados com a revolução cubana tão perto, os norte-americanos mantiveram no poder a ditadura violenta e fortemente anti-comunista dos Duvalier, pai e filho. Em 1986 o Presidente Reagan resolveu abandonar a ilha que nada produzia e cuja população era analfabeta de mais para ter ideias políticas. Ordenou um corte de ajuda económica e material – exceptuando suprimentos “humanitários” – que depois, em 1991, o Presidente Clinton decretou mesmo um bloqueio económico.
Mas o imperialismo não foi a única desgraça do país. Em 2010, um terramoto de 7,0 na escala Richter (Lisboa, 1755, foi de 8.5) arrasou praticamente tudo o que estava de pé, destruiu as poucas infra-estruturas e matou 200.000 pessoas (o número certo nunca se soube).
Apesar da ajuda internacional, inclusive dos Estados Unidos, o país nunca recuperou, nem económica nem politicamente. O turismo desapareceu. Os presidentes saídos de eleições mais do que duvidosas ficaram com o dinheiro da ajuda. As tropas das Nações Unidas (brasileiras) e as equipas de voluntários internacionais não ficaram tempo suficiente para criar uma estrutura operacional e recuperar os edifícios públicos e milhares de habitações destruídas.
Dois milhões de haitianos vivem nos Estados Unidos, 60% já lá nascidos. Quatro quintos dos que têm estudos secundários estão no estrangeiro. Numa sondagem feita em 2006, 67% dos que ficaram disseram que se iriam embora se pudessem.
Nas eleições de 2010 – um pouco atrasadas por causa do terramoto —, foi eleito Michel Martelly, deposto em 2016 por corrupção. Foi temporariamente substituído por Jocelerme Privert e novas eleições escolheram Jovenel Möise em 2017. Desde o ano passado que tem vindo a crescer o descontentamento com a corrupção no aparelho de Estado e a falta de iniciativas que melhorem a vida da população. Em Agosto deste ano a situação piorou, com motins cada vez mais frequentes.
O Presidente recusa-se a negociar com a oposição ou a demitir-se. Como governo e oposição fazem parte dos 5% de mestiços que sempre governaram o país, é pouco provável que a sua demissão provocasse alguma mudança significativa. Mas os haitianos chegaram ao desespero e os motins e saques das poucas lojas chegaram a um ponto em que praticamente não há actividade económica. As pessoas das cidades sobrevivem com produtos agrícolas enviados pelos familiares nos campos. Na semana passada o hospital principal de Port-au-Prince, dirigido por padres estrangeiros, tinha oxigénio para 24 horas. Não há medicamentos e os efémeros transportes colectivos pararam, porque os funcionários não recebem e as ruas estão bloqueadas por carros incendiados. A missão das Nações Unidas instalada em 2004 abandonou o país, deixando a sensação de que tinha conseguido fazer muito pouco, mas aumentando a sensação de abandono daqueles que dela dependiam.
Uma reportagem da Rede Globo mostra o caos nas ruas e a destruição, e refere uma contagem de mortos que não pára de crescer. Na reportagem também se vê Jovenel Möise, impávido e muito bem ataviado, a dizer que tem um programa para tirar o país da miséria e do caos. Que programa, não se sabe.
O Presidente Trump incluiu o Haiti na lista dos países “buracos de esgoto” donde não quer receber imigrantes. Especificamente, disse que os haitianos ainda são piores porque têm HIV. Como resultado das repercussões locais, a embaixada foi fechada em Janeiro. Das Nações Unidas e de outros países ouvem-se palavras de pesar e preocupação pela situação dos haitianos. Mas eles não estão a ouvir.
Sobretudo, não estão a receber ajuda de ninguém e não se conseguem ajudar a si próprios.
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