O que é extraordinário é o facto de Zelenskiy, que não tem qualquer experiência política, ser conhecido apenas por fazer o papel de Presidente numa série humorística de televisão. Concorreu contra políticos veteranos, como Poroshenko e Yulia Tymoshenko – a mediática ex-primeira ministra - e fez uma campanha de feirante, com apresentações em palcos por todo o país que mais pareciam espectáculos daqueles promovidos pelos canais no verão, com música e variedades.
Não é a primeira vez que numa república a eleição é ganha por uma figura do espectáculo; para não ir mais longe, há os casos de Ronald Reagan, em 1981, nos Estados Unidos, e de Joseph Estrada, em 1998, nas Filipinas. O primeiro acabou por ser um político icónico, enquanto o segundo foi impedido por corrupção. Na própria Ucrânia, em 2007, chegou a surgir um candidato, Svyatoslav Vakarchuk, que tinha como credenciais ser campeão de críquete e “a estrela de rock mais famosa” do país. Foi eleito deputado e esperava-se que concorresse à presidência, mas entretanto demitiu-se, alegando que não tinha nervos para disputas políticas, e saiu de cena.
Há que ter em conta o contexto da Ucrânia, pois está no centro do furacão das relações entre a Rússia e a Europa. Há anos que vive em estado de guerra, ora permanente, ora latente, e desde 2014 tem uma região dissidente, pró-russa, que não reconhece a autoridade de Kiev. Dos 35,5 milhões que poderiam ter votado nesta eleição, cerca de 12% não compareceram por estarem na zona de controlo russo. Além dos problemas internacionais, devido à sua posição geográfica estratégica e história violenta, o país tem problemas internos graves: radicalismo de extrema-direita, corrupção, nepotismo, golpes baixos (inclusive um envenenamento) e interferências de poderes económicos supra-nacionais. Resumindo, os conflitos de interesses na Ucrânia não são um jogo pueril para amadores.
Não é preciso recuar muito para constatar que a Ucrânia é uma nação mártir. Ocupada por russos, austríacos, polacos e alemães, teve independência breve em 1917, durante a qual sofreu uma guerra civil entre anarquistas, comunistas e nacionalistas, para logo ser absorvida pela União Soviética. Em 1921, uma parte pertencia à Polónia, outra à Roménia, outra ainda à Checoslováquia, e o restante – a parte maior – passou a ser uma República Socialista Soviética, mesmo a tempo de participar na escassez brutal que afectou toda a URSS. Os ucranianos foram sistematicamente massacrados e mortos à fome durante a colectivização das décadas de 1920-30, que teve o seu apogeu na Grande Fome (“Holodomor”) de 1932-33. Calcula-se que morreram de inanição entre sete e 12 milhões de camponeses. Seguiu-se a “Grande Purga” de Estaline, com mais assassinatos indiscriminados, em 1937-38. A seguir veio a invasão alemã, em 1941, com incontáveis massacres e maus tratos. Só na batalha de Kiev morreram 600 mil do lado soviético, entre russos e ucranianos. Mas muitos ucranianos juntaram-se aos alemães, que viam como libertadores do comunismo, e as ideias nazis ainda hoje estão presentes abertamente na cena política.
Depois da guerra seguiu-se uma limpeza étnica que eliminou milhares de ucranianos, 450 mil alemães étnicos e 200 mil tártaros – uma etnia turca que tinha uma forte presença no país.
Em 1953, com a morte de Estaline, subiu ao poder Nikita Khrushchev. Como foi Primeiro Secretário do Partido Comunista da Ucrânia tinha uma grande simpatia pelo país, que conheceu então um período mais humano e respeitável. Em 1954 Khrushchev transferiu a Crimeia para a Ucrânia (segundo Putin, num ataque de bebedeira) dando-lhe assim o único porto russo com acesso ao Mediterrâneo. Na altura não fazia diferença, uma vez que era tudo URSS, mas posteriormente veio a revelar-se um espinho para o país independente. Durante este período a indústria desenvolveu-se muito e a elite ucraniana tinha um bom estatuto, que culminou com a subida ao poder de Leonid Brezhnev, nascido em Kamianske. Mas foi entre 1982 e 1986 que se deu o maior acidente nuclear da História, em Chernobyl, uma área até hoje isolada e donde foram deslocadas milhares de pessoas.
Em 1990, com o colapso da União Soviética, a Ucrânia tornou-se um país independente, num referendo aprovado por mais de 90% da população. Mas a separação do bloco económico socialista levou a uma perda do Produto Interno Bruto de 60% e uma inflação de cinco dígitos entre 1991 e 1999. A partir de 1996 o país conseguiu uma certa estabilidade política, sob um regime semi-presidencialista – com os habituais indícios de fraude eleitoral e corrupção.
Contudo, os atritos entre a minoria russa (20%) e os ucranianos eram uma constante fonte de problemas, sobretudo desde 2000, quando Putin subiu ao poder com o nítido objectivo de reconstituir o antigo território da União Soviética. O Kremlin considera a Ucrânia independente uma aberração e tem feito tudo para menorizar e desorganizar o país.
Nas presidenciais de 2004, o pró-russo Viktor Yanukóvytch venceu o nacionalista Viktor Yushchenko, numas eleições consideradas completamente manipuladas, que levaram a um levantamento popular. Logo a seguir descobriu-se que Yushchenko estava a ser envenenado pelos russos, e o levantamento transformou-se na chamada Revolução Laranja, que o colocou no poder, juntamente com a mulher, Yulia.
Nos anos seguintes o país foi palco duma disputa entre os russos e os países ocidentais, dirigidos pelos Estados Unidos, o que levou a sucessivos governos dos Yushchenko e de Yanukovych, muita agitação e diversos incidentes violentos. (Data deste período a associação entre a gangue de Yanukovych e Paul Manafort, o lobista norte-americano que foi recentemente apanhado nas malhas da justiça, incluindo conluio com russos ligados a Putin.) Numa das reviravoltas de poder, Yanukovych conseguiu que Yulia Yushenko fosse condenada por corrupção e presa – para ser depois solta e ilibada quando Yushenko foi afastado.
Em 2014, numa altura em que Yanukovych estava a abandonar os russos e a aproximar-se dos americanos, Putin provocou um levantamento da minoria russa. Seguiu-se uma guerra civil de baixa intensidade, constituída por actos violentos dos neo-fascistas, nacionalistas e pró-ocidentais por um lado, e os neo-comunistas e pró-russos pelo outro. Em Kiev foi finalmente eleito – ou escolhido por forças várias – um presidente pró-ocidental, Petro Poroshenko, enquanto Putin anexava a Crimeia, tirando partido da maioria étnica russa na região. Calcula-se que nestes incidentes tenham morrido nove mil pessoas.
Em 2016 a situação estabilizou-se, ficando a Federação Russa de retirar as suas tropas (não assumidas) da Crimeia, a troco de Kiev não intervir na região. Poroshenko, apoiado pelos ocidentais, teve de aceitar esta situação, uma vez que nenhum dos lados está interessado numa guerra aberta às portas da Europa. Começou negociações para entrar para a EU, mas não parece que o equilíbrio entre potências o permita. Aliás a Ucrânia não obedece a nenhum dos critérios necessários para se candidatar, desde as liberdades democráticas ao mercado aberto.
É neste clima que surge a candidatura de de Volodymyr Zelensky, protagonista da série “Servidor do Povo”, uma crítica ao posto de Presidente vagamente na linha do “Sim Sr. Ministro” inglês de 1980-84.
Os observadores consideram que os eleitores, fartos das questiúnculas e da corrupção dos políticos, estão a precisar de ar fresco. O cépticos afirmam que se trata de mais um efeito perverso da excessiva popularidade das estrelas televisivas. Os cínicos não deixam de lembrar que o canal de tv onde Zelensky brilha é propriedade de Ihor Kolomoisky, um oligarca bastante sinistro que vive em Israel. O seu banco PrivatBank foi recentemente intervencionado, o que custou ao país cerca de seis mil milhões de euros, e os seus bens congelados no Reino Unido. Aliás Zelensky também é judeu, o que ainda torna a sua popularidade mais estranha, num país historicamente anti-semita.
Outra teoria é que teria sido o próprio Poroshenko a promover o comediante para combater a popularidade do rocker Svyatoslav Vakarchuk, na altura em que este ainda era uma probabilidade.
Os interesses são tantos que fica difícil saber quem apoia quem, e porquê. Só um exemplo: o ex-Presidente da Geórgia, Saakashvili, disse numa entrevista que “a derrota de Poroshenko e dos seus sabujos é uma chance incrível para a Ucrânia.” Mas quem é Saakashvili? Deposto e acusado de corrupção no seu país, fugiu para a Ucrânia e foi nomeado governador do porto de Odessa pelo mesmo Poroshencko que mais tarde o mandou prender por traição. Portanto, personagens duvidosas é o que não falta nesta saga.
Põe-se a questão de saber qual é a posição de Putin quanto a Zelensky, ou qual é o peão em que aposta, uma vez que Poroshenko já provou não ser confiável. O que se sabe é que os russos têm usado a Ucrânia como laboratório para experimentar os seus métodos de guerra cibernética. Quando Zelensky criou a sua página na Internet, em menos de cinco minutos foi abaixo com cinco milhões de acessos vindos da Federação Russa – uma técnica conhecida como “denial-of-service”, ou DOS. Desde 2014, os russos têm atacado a rede eléctrica e criaram o caos em grandes empresas. Em 2015 e 2026 um código russo conhecido como Sandworm infiltrou as produtoras de electricidade, provocando apagões em centenas de milhares de habitações.
Em Fevereiro, o volume dos ataques subiu 30% em relação a Janeiro. Semanalmente, desde Dezembro, foram detectados oito mil emails de “phishing”, uma técnica que permite obter os dados do recipiente. No mês passado o centro eleitoral ucraniano recebeu 25 mil ataques do tipo que pesquisa as combinações de nome e password para poder entrar numa rede. Mais 30 mil ataques procuravam informações de valor. E houve 50 ataques de DOS, semelhantes ao que a página de Zelensky sofreu.
Os russos já nem se preocupam em esconder as suas actividades. O que lhes interessa é provocar medo e confusão. Não parece que queiram favorecer um candidato em particular, uma vez que nenhum deles tem uma posição abertamente pró-russa; o que pretendem é sabotar o processo democrático e semear o caos.
Paradoxalmente, esta sofisticação de guerra cibernética favoreceu Zelensky, que baseou a sua campanha em apresentações públicas e contactos pessoais. Poderá desfavorecê-lo na contagem electrónica de votos, mas é imprevisível a favor de quem.
Finalmente, há mais uma incógnita: não se sabe realmente o que Zelensky pretende fazer quando for eleito. Não tem um programa, para lá das habituais e sempre vazias promessas de acabar com a corrupção e incentivar a economia.
Para os ucranianos, fartos de tanta violência durante todas as suas vidas, esta superficialidade é um alívio. Zelensky fá-los rir, e a alegria talvez seja o melhor remédio.
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