ACASO. Como cheguei até este casal num sôfrego beijo? Não sei bem, mas foi através de uma qualquer pesquisa que me pus a fazer sobre a Itália — e assim encontrei este quadro famosíssimo: Il bacio, de Francesco Hayes (1859). Dizem-me os especialistas que este é um dos símbolos do Risorgimento, o movimento nacionalista que levou à unificação de Itália no século XIX. O que tem um beijo medieval a ver com a política oitocentista? Já lá vamos.

SURPRESA. Aquilo que vi no primeiro segundo em que olhei para este quadro foi uma surpresa: um homem a fugir pelas ruas duma cidade italiana, um homem que pode perder a vida a qualquer momento, e nesse sobressalto encontra uma bela mulher. Ela pára, olha para ele e acabam num beijo inesperado. Ele beija-a já com o pé nas escadas, pronto para fugir — fugir de quem? Talvez da própria moça que se viu assim importunada por um beijo não autorizado. Enfim, isto são delírios meus: por alguma razão, as mãos levam-me a crer que tanto ele como ela estavam de corpo e alma naquele beijo.

COR. Mas que tem este quadro a ver com a criação da Itália moderna? Pus-me à procura da explicação: pelos vistos, as cores dos vestidos representam a Coroa da Sardenha e a França, que neste beijo selam uma aliança importante para o futuro da unificação italiana. Ah, então é isso… Os dois amantes representam a aliança de dois países? Mas alguém fica com o coração a bater com diplomacia em forma de cor da roupa? Ah, uma coisa são as explicações de guia turístico, que até podem ser verdadeiras; outra coisa são as próprias obras a entrarem-nos pelos olhos adentro. E, olhando para o quadro, vejo as emboscadas, as lutas, as conspirações, a felicidade sangrenta de quem luta para criar um país. Diga-se que tudo isto é fruto da imaginação um pouco delirante do Romantismo. Mas essa imaginação lá continua a gritar neste quadro.

ESCADA. Olhemos com mais atenção: há a espada entre os dois corpos (que daria para parágrafos certamente censuráveis pelos apertados critérios do Facebook), há as escadas à espera da pressa do homem, depois deste beijo que tanto pode ser uma despedida como o primeiro encontro entre dois desconhecidos. Fico a imaginar enredos: talvez o homem tenha deixado na mão da mulher alguma mensagem, talvez tenha sussurrado um qualquer segredo com a língua por entre os lábios. Talvez tenha sido ela, sem ninguém suspeitar, que levou, nesse dia, a água ao moinho dos revoltosos.

SOMBRA. Ali no canto inferior esquerdo aparecem as sombras do medo e do que há-de vir. Entretanto, os dois beijam-se, o coração a bater, os lábios a deixar o cérebro aos saltos e o corpo com vontade de continuar naquele beijo e no que vem depois. Olhando bem, o quadro peca por estar demasiado afinado, demasiado composto, quando um beijo nunca é composto, pelo menos um beijo destes, com as mãos assim, no meio do turbilhão dos dias. Não faz mal: imaginamos nós o reboliço que vai naquela rua e no corpo dos dois amantes. Sim, amantes. Afinal, dizem que a boca é o único órgão sexual que exibimos sem pudor mesmo quando estamos no meio da rua, no meio duma aventura.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.

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