A culpa não foi minha: andava a passar os dedos por livros e reparei num título, talvez por causa da capa ou porque já conhecia o autor e tinha gostado do que lera. O livro era Messy, de Tim Harford, que prometia explicar como a balbúrdia do mundo até pode ser uma coisa muito boa.

Começo a ler, ali mesmo, e fico a saber a história de Vera Brandes, uma alemã de 17 anos que organizou um concerto de Keith Jarrett em Colónia.

Estávamos em Janeiro de 1975 («estávamos» é como quem diz: eu ainda não existia). Não sei quem se lembrou de deixar uma adolescente com um concerto entre mãos — o certo é que as coisas não correram bem: houve umas confusões, o piano que estava no palco não era o certo e o músico não quis actuar. Manias de vedeta? Nem por isso: o piano parecia desafinado, os pedais não funcionavam bem, nem se ouviam as notas nas filas de trás. Jarrett disse que assim não tocava.

Já era tarde, ninguém podia ajudar a pobre Vera, não havia telemóveis para as emergências — a rapariga ficou com o seu concerto preso por um fio. Com o músico já no carro, pronto para ir para o hotel, Vera implorou: toque, por favor! Daqui a pouco começa a chegar o público. Por favor...

Vera estava à chuva, na rua, Keith Jarrett dentro do carro, de porta aberta. Hesitou, mas lá disse que sim — só por ser para ela.

Já passava das onze da noite quando, perante 1400 pessoas, o músico atacou o piano avariado e, improvisando, fez o concerto da sua vida. A gravação (The Köln Concert) vendeu mais de 3,5 milhões de discos vendidos: o concerto de piano mais vendido de sempre...

Avançamos umas décadas. Ali estou eu, de livro na mão, a ler a história. O concerto é famosíssimo, mas eu nunca o tinha ouvido. Precisava mesmo de ouvir aquelas notas — e naquele momento! No meio de tanta gente, liguei o telemóvel, procurei o concerto e pus-me a ouvir — e foi ali, no meio de Lisboa, que Keith Jarrett atacou o piano estragado numa noite de Colónia, batendo nas teclas com a força necessária para que todos o ouvissem, arrancando àquele instrumento de segunda categoria a sua obra-prima.

Também eu estava lá, em 1975, ali parado entre gente que passa numa livraria de Lisboa. Tudo por causa dum economista que conta o episódio como introdução a um livro sobre a balbúrdia das nossas vidas.

Tivesse eu folheado um livro de música e não teria tido aquela reacção. Mas encontrar sem estar à espera a história dum piano solitário num palco de Colónia, imaginar a rapariga a suplicar a um músico que não a abandonasse e ouvir depois o resultado dessa história no meio dos lisboetas que passam — foi um daqueles momentos em que a balbúrdia do mundo sabe bem, sabe mesmo muito bem.


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.