Línguas e outras barreiras
As línguas separam-nos? Um pouco, é verdade. Nem sempre é fácil conversar com quem não fala a nossa língua — o inglês simplificado ajuda, mas não faz milagres (bem, às vezes faz, se acompanhado com algum bom vinho da terra). Mas, enfim, tenho para mim que não separam tanto como se diz — torço sempre o nariz quando oiço aqueles delírios quase místicos de quem defende que uma língua é um universo separado e ninguém consegue, na verdade, traduzir o que quer que seja.
Eu, que trabalho em tradução, acho que é, de facto, difícil traduzir — mas impossível não será. Mais: as línguas, mesmo as distantes, separam-nos, sim, mas não tanto como outras barreiras mais cá de casa. Por exemplo, a barreira do clube. Pôr um húngaro a conversar com um irlandês não é impossível. Agora pôr um sportinguista a conversar sobre futebol com um benfiquista é missão a que não me atrevo. Junte-se a essa barreira as barreiras do partido, da religião, do sotaque, da marca do carro, do Yanny que afinal é Laurel — e percebemos como as línguas são o menor dos nossos problemas.
Foi esta descoberta que deixou tanta gente embasbacada quando se aventurou no Facebook: a rede social revelou a muitos aquilo que já existia, mas nem todos conheciam. O quê? O simples facto de todos vivermos em mundos diferentes. Não, as línguas não são universos diferentes — já as nossas cabeças são uma constelação de estrelas distantes.
O livro de Bourdain
Vem isto a propósito de Anthony Bourdain. Depois da morte do apresentador, encontrei amigos um pouco baralhados: não conheciam o homem e ficaram genuinamente surpreendidos com o alarido. Também já me aconteceu o mesmo — mas, neste caso, calhou saber quem era.
Sabia quem era, já tinha visto alguns programas. Mas, mesmo assim, os obituários reservavam-me uma surpresa: não sabia que Bourdain tinha ficado conhecido não por ser chef, mas por ter escrito um livro chamado Kitchen Confidential. Aliás, não será bem essa a verdade: Bourdain ficou conhecido por causa do livro lá pelos E.U.A. e foi, por isso, convidado para fazer um programa de televisão — e foi a televisão que acabou por espalhar o seu nome pelo mundo.
É perfeitamente possível imaginar duas pessoas a viver na mesma casa — uma delas delicia-se com os programas de Bourdain, outra não sabe quem é e até se irrita com a importância que estão a dar ao homem.
Bem, aquilo que separa quem conhecia o chef-escritor-apresentador e quem não fazia ideia de quem ele era é muito pouco. Há coisas mais importantes na vida, não é? Foi apenas um exemplo. Mas deste exemplo parto para a tal terra portuguesa...
Uma terra portuguesa nos Estados Unidos
Como lá cheguei? A culpa é de Bourdain e do seu livro. Fiquei com vontade de começar a ler o tal Kitchen Confidential — e foi o que fiz. Não me arrependi. O livro é apetitoso de várias maneiras: apetece comer bem depois de ler aquelas páginas — apetece até, vejam lá, cozinhar. Bourdain escrevia muito bem — e apresenta-nos um mundo diferente, negro, aventuroso, onde a cozinha é habitada por piratas e os dias nunca são iguais. É um mundo, desculpem-me o cliché demasiado a propósito, só para estômagos fortes. Vale a pena.
E a aldeia portuguesa na costa dos E.U.A.? — pergunta o leitor já desesperado com uma crónica que se aproxima do fim e ainda não cumpriu a promessa do título...
Explico então: Bourdain conta no início do livro como a sua primeira experiência numa cozinha foi em Provincetown, Cape Cod, em Massachusetts. O autor diz então que Provincetown «era (e é), basicamente, uma pequena aldeia piscatória portuguesa» — e, durante a primeira parte do livro, refere várias vezes a cozinha portuguesa como fazendo parte das tradições da zona e ainda descreve a maneira de falar da zona como tendo muito de português.
Não fazia ideia que há, nos E.U.A., uma terra inteira que um autor norte-americano não se importa de descrever como portuguesa.
Continuei a ler. Não acabei ainda (estou à espera de terminar a crónica para continuar), mas é um prazer ler este homem a ferver de vida. Viajo no espaço e no tempo e fico a conhecer os truques, segredos e pecados duma vida tão diferente da minha. Sim, vivemos em bolhas, longe dos outros, mas os livros ajudam a rebentar, nem que seja por uns minutos, essas bolhas. Elas voltam a formar-se, eu sei, mas é uma delícia rebentá-las durante uns momentos.
Ah, e os livros são uma delícia também por isto: levam-nos a descobertas inesperadas, deixam-nos a sonhar com festas na praia em Cape Cod — e dão-nos uma vontade perigosa de viajar, nem que seja para conhecer a terra portuguesa que fica ali para os lados de Boston.
Bem, vou continuar a ler.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
Comentários