Já que estou em crónica alheia, convém dizer que me chamo Rita e fui com o meu novo namorado passar um fim-de-semana de Natal para outras paragens que não a consoada e prendas e putos e outros cansaços.

Sim, sou assim, o que querem? Os meus pais não se importam e eu muito menos. Já o Daniel, coitado, teve de suar muito para justificar aos pais a ausência na mesa de Natal, mas também sei que não ia perder a oportunidade de passar três dias comigo numa casa perdida lá no meio da Serra da Estrela. Uma cama, uma banheira no quarto e muita neve a impedir-nos de sair de lá. Namoramos há menos de três meses: não há quem resista.

Ora, chegámos, estacionámos, percorremos os poucos metros do carro à casa com as malas na mão, a neve a atrapalhar-nos os movimentos, o cansaço da viagem de cinco horas no corpo. Abrimos a porta, ficámos de boca aberta: era o que queríamos, só que melhor ainda. Nem despimos o casaco e já estávamos embrulhados na cama a rir e depois o que se sabe. Uma bela consoada antecipada — ainda eram seis da tarde.

Bem, pouco depois — a lareira acesa, a neve a cair lá fora, dois copos de champanhe na mão, os lençóis espalhados e nós nus a conversar — começou a dar-nos uma moleza natalícia e o Daniel pôs-se a ler o Facebook. Decidi levantar-me para ir buscar qualquer coisa para ler a sério.

— Raios, esqueci-me do livro…

— Qual livro?

— O livro que estou a ler: O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Como é Natal…

Era uma piada. Não das melhores, é certo, mas uma piada. Pois ele não se riu, nem sequer sorriu, e tive aí o primeiro pressentimento de que alguma coisa podia correr mal. O que ele fez foi puxar-me para ele e dizer, bem-disposto, que nunca lera o Saramago e também não era agora que ia começar — porquê? Porque se recusava a ler escritores que não usam bem a pontuação.

Eu travei de imediato, a meio caminho do colo dele.

— Explica lá isso melhor…

Não me digas, pensei eu para comigo, que este mânfio é daqueles que acha que o Saramago não usava pontuação.

— Então, é o que todos sabemos: o Saramago não usava vírgulas. E elas estão lá para ser usadas! Nunca gostei dessa ideia de os escritores mandarem às malvas as regras do português…

Fiquei em choque e comecei a vestir-me de imediato. Fui dizendo enquanto abotoava a camisa:

— Tu achas mesmo que Saramago não usava vírgulas?

Ele riu-se:

— Claro! Toda a gente sabe! Ele é conhecido por isso mesmo! Mas estás a vestir-te porquê?

— Não, não é conhecido por isso mesmo. É conhecido por ter sido um dos melhores escritores do século passado. Vou repetir devagarinho… — disse eu enquanto vestia as calças. —Saramago não usava vírgulas?

— Claro que não!

— Mas tu já abriste algum livro dele?

— Sim, na escola, o Memorial do Convento ou lá o que era… Não havia lá vírgulas, pelo menos na minha edição.

— Olha, posso dizer-te que já li os livros todos dele e sempre encontrei muitas vírgulas e muitos pontos…

— Não inventes! Queres agora convencer-me de que o Saramago usava vírgulas? É que toda a gente sabe…

— Lá estás tu e o «toda a gente». Então tu abriste o Memorial durante dois minutos na Secundária e achas que eu, que estou neste momento a ler um livro do homem, não reparei que ele não usa vírgulas? É isso?

— Pois não sei, se calhar não viste bem. É que toda a gente sabe que ele não usa vírgulas!

— Toda a gente sabe o car****!

Ele ficou embatucado. Tentou aproximar-se, amaciar-me com palavras com muitas reticências, mas eu não estava para aí virada. Comecei à procura da chave do carro.

— Aonde vais, amor?

— Vou a casa buscar o livro para te mostrar as vírgulas do Saramago.

— A tua casa? Em Évora?

— Sim, claro, é onde está o livro.

— E eu?

— Podes ficar à espera, se quiseres. Diverte-te muito, tens aí a banheira, a cama, a lareira…

— Vais estragar o Natal por causa duma vírgula?

— Sim — e abri a porta onde se via muita neve e muito frio.

— Ouve, tudo bem, se tu dizes que há vírgulas nos livros de Saramago, eu acredito!

Olhei para ele e olhei para a neve. Apetecia-me muito dar-lhe uma lição. Mas também me apetecia muito estar à lareira. Suspirei, virei-me para ele, e disse:

— Muito bem, mas então faz o seguinte: compra aí um livro de Saramago para o iPhone para eu te espetar a vírgula na cara, pode ser?

— Ficas cá se eu fizer isso?

— Sim.

O rapaz correu para o telemóvel e desatou à procura. Encontrou e descarregou, enquanto murmurava «só me faltava passar o Natal a comprar livros de Saramago». Eu fiz-lhe olhos maus, peguei no telemóvel, abri na primeira página e enfiei-lhe o ecrã nos olhos:

Crónica Marco Neves 1
créditos: DR

— Estás a ver as vírgulas ou não?

— Sim, estou. Mas se calhar é desta edição. Puseram as vírgulas depois.

— Mau, queres que eu vá mesmo a Évora e ficas a chuchar no dedo?

— Não, não… Mas deixa lá ver outro.

Descarregou O Ano da Morte de Ricardo Reis, folheou o ecrã e a certa altura encontrou uma coisa que lhe deixou um sorriso na cara:

Crónica Marco Neves 2
créditos: DR

— Estás a ver: que história é esta de maiúscula a seguir a uma vírgula?

— Ora, meu caro, isso são questões de estilo. É só uma pequena adaptação das convenções ortográficas para sublinhar a oralidade do relato…

— Estilo? Estilo? É por estas e por outras que odeio o Saramago…

— Odeias o Saramago? Mas porquê? Por causa das maiúsculas a seguir às vírgulas?

— Não: por não respeitar as regras do português, por exemplo.

Eu abri muito os olhos:

— Ora, pedir para os escritores seguirem estas convenções do diálogo é o mesmo que obrigar o Picasso a ir à Câmara Municipal perguntar quais são os tipos de tinta autorizados para os seus quadros…

— Mau! Mas então achas que as regras da língua são como as regras camarárias?

— E tu achas mesmo que isso são as regras de português que realmente importam? Saramago sabia muito bem as regras da língua e podia dar-lhes a volta exactamente porque as conhecia de trás para a frente.

— Conversa da treta. Irrita-me essa mania dos escritores de fazerem o que querem com a língua!

— Pois, isso é verdade: os escritores fazem o que querem com a língua. Pelo menos os bons.

Calámo-nos então e fizemos, o resto da noite, o que quisemos.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Assim ou Assado: 100 perguntas sobre a língua portuguesa.

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