O que há, pois, na liberdade?
O que é que há, pois, num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem.
O trecho foi escrito talvez pelo mais icónico dos escritores britânicos: William Shakespeare. Nesta passagem de ‘Romeu e Julieta’, o dramaturgo navega pela ginástica que nos faz atribuir uma certa combinação de sons a um determinado conceito/ideia/objeto, de modo arbitrário.
O que há, pois, na liberdade? Em tempo de pandemia, onde andam os limites da liberdade? Se é que existem?
Estava numa esplanada, sob a humidade da serra de Sintra, quando um militar da GNR sai do pequeno café, depois de alertar os proprietários para o ruído dos seus clientes. Vai a caminho do carro, mas antes faz uma pausa diante dos jovens nas duas pequenas mesas da esplanada: “não se devem esquecer de que a vossa liberdade termina quando começa a liberdade dos outros”.
Foi o meu primeiro encontro com este sermão. Devia andar ainda a caminho dos 12 anos naquela noite de verão hoje já longe — muito distante da pandemia e das suas regras e ditames.
Voltei a vê-lo já na faculdade.
Para além de estar por trás do “teorema da mãezinha” que continua a desafiar alunos de jornalismo em várias faculdades portuguesas, Oscar Mascarenhas reescreveu a velha ideia de que a nossa liberdade termina quando começa a liberdade dos outros.
Explicava ele: a minha liberdade é finita porque o meu bom senso a limita. Ou seja, os limites à liberdade individual são autoimpostos pela empatia e solidariedade de cada um.
Serve esta história para pensar no que é esse dia (hoje) da liberdade ("Freedom Day") no Reino Unido: o dia em que caem as restrições postas em vigor para enfrentar a covid-19.
Inglaterra levantou esta segunda-feira quase todas as restrições impostas para conter a propagação do novo coronavírus, incluindo o uso obrigatório de máscara, apenas recomendado nas lojas e transportes, e o distanciamento social.
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, justifica a decisão com o êxito da vacinação — dois terços dos adultos têm as duas doses —, que reduziu a doença grave, as hospitalizações e as mortes, afastando o risco de sobrecarga do sistema de saúde.
O teletrabalho deixa de ser a norma, espetáculos e estádios desportivos funcionam com a capacidade total, discotecas reabrem, ‘pubs’ voltam a ter serviço ao balcão e o número de pessoas que se juntam deixa de ser limitado.
A medida é contestada como imprudente pela oposição trabalhista, dado o aumento de infeções pela variante Delta, e o próprio ministro da Saúde, Sajid David, que sábado anunciou ter sido contaminado, admite que o número de casos diários atinja os 100.000 em poucas semanas.
Influentes cientistas de todo o mundo lançaram também um apelo ao Governo britânico para não avançar para o já chamado “dia da liberdade” e não pôr em causa os esforços, britânicos e internacionais, para controlar a propagação do SARS-CoV-2.
Boris Johnson pediu domingo aos britânicos que, doravante, "por favor", sejam "cautelosos", numa altura em que, no país mais afetado da Europa, o número de casos diários de infeção ultrapassa os 50.000 e os números totais elevam-se a 128.600 mortos e mais de 585.000 novos casos desde 1 de julho.
Pouco há a dizer sobre os efeitos que as medidas ou o seu levantamento terão. Não sou eu um vidente, tampouco um cientista capaz de antever as consequências destas causas.
Sei, porém, que, praticamente desde o início deste mundo novo que nos inventaram, vivemos o limbo das liberdades mútuas — de que a máscara é maior símbolo.
A máscara não serve de muito na proteção individual. Pelo contrário: a máscara é a parte pessoal de um contrato coletivo: serve para proteger o outro. É o nosso pequeno autolimite para garantir a liberdade alheia.
Ser livre é poder escolher não o ser. E isto nunca vai deixar de ser estranho.
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