O público é uma matéria prima principal para o espetáculo. Nestes Jogos, os atletas vão, na parada inaugural como depois nas competições e nos pódios, sorrir para o vazio de um estádio silencioso. Ou a olhar para as câmaras que estarão a levar ao mundo este espetáculo envolvido por uma sensação fantasmagórica.
Nada no universo desportivo planetário supera a dimensão colossal dos Jogos Olímpicos em assombro, mística, solenidade e competição total, com sucessão de momentos épicos.
A organização japonesa quis que estes jogos marquem uma nova era na relação com o ambiente e o desenvolvimento sustentável. Estão decididos gestos simbólicos: as medalhas são feitas a partir de material reciclado de velhos telemóveis, os pódios são montados com plástico recolhido nos oceanos, os uniformes são feitos com poliéster reciclado.
Tudo foi pensado para que estes jogos pudessem ser um trampolim para um grande êxito. O Japão, terceira economia do mundo, apostou na organização dos Jogos para relançar a economia. O primeiro-ministro Yoshihide Suga pensou que os Jogos poderiam catapultá-lo para o triunfo nas eleições gerais japonesas no próximo outono.
Mas tudo está em questão por causa da Covid.
Tóquio voltou ao estado de emergência sanitária. A organização destes Jogos está tomada pelo pesadelo de o evento se tornar um foco de supercontágio. Para tentar evitar essa ameaça, o Japão fechou a fronteira aos adeptos estrangeiros e está a fechar atletas e todas as delegações estrangeiras em reclusão na aldeia olímpica.
Em vez de festa dos Jogos estes são os Jogos do isolamento e do medo. A maior parte dos participantes já está em Tóquio, mas sem poder sentir o coração da cidade nos bairros de Shibuya e Shinjuku nem experimentar os sofisticados restaurantes de Ginza, visitar os templos, explorar os lugares mágicos de manga e divertir-se nas noites de músicas em Shimokitazawa, o bairro boémio. Tudo está barrado aos estrangeiros pelo medo do contágio.
Há um dado que suscita estranheza num país organizado como é o Japão: apenas 20% da população japonesa, de 120 milhões de pessoas, está vacinada com as duas doses. A lentidão no processo de vacinação está associada a escassez de doses disponíveis. Algo funcionou mal na compra de vacinas e as consequências passam pelo grande medo geral de contágios.
Sucessivas sondagens mostram que, com a pandemia ainda por dominar, a população japonesa está contra a realização destes Jogos Olímpicos em Tóquio. As sondagens colocam a rejeição em valores muito altos, entre 70 e 85% da população rejeita os Jogos.
O comité local que em Tóquio organiza os Jogos já anunciou que, sem receitas de bilheteira, após o investimento feito vai ter prejuízo de cerca de 900 milhões de dólares. Há quem tenha defendido novo adiamento ou mesmo desistência da organização. Mas o Comité Olímpico Internacional (COI) pressionou sempre, de modo intenso, para que haja Jogos como quer que seja.
Para o COI a organização destes Jogos significa receber mais de 3.000 milhões de dólares dos patrocinadores e pelos direitos de transmissão.
Vamos ver grandes feitos, grandes triunfos, recordes a serem batidos, também tantas decepções, mas tudo em ambiente supostamente asséptico, com o contexto de pandemia sempre a sobrepor-se à notícia dos acontecimentos desportivos.
É razoável questionar: faz sentido que, com tantas ameaças e restrições, estes jogos se realizem? Os Jogos Olímpicos são um sonho maior para tantos atletas que se preparam há tanto tempo para esta competição. Desistir desta edição seria grande frustração para esses atletas. As restrições preventivas poderão travar o risco e proporcionar bom espetáculo com a competição reservada para ser vista nos ecrãs? É difícil chegar à boa resposta.
Este exemplo japonês de cautelas e restrições faz-nos pensar na pressão de alguns em Portugal para que o público volte às bancadas dos estádios e para que a Covid deixe de ser considerada como problema sanitário.
Todos constatamos que a emergência absoluta já passou, mas continuamos a ter boletins diários que nos reportam mortes por Covid. Não é uma vida perdida, o que já nos obrigaria a prudência, são vários óbitos em cada dia. A ameaça do vírus não desapareceu porque ele continua a propagar-se e muda a configuração para continuar a ser ameaçador.
Tantos comerciantes desesperam para que todos regressemos plenamente ao espaço público e eles possam recuperar o mercado que tem estado sufocado.
A vacina e o modo como o processo de vacinação tem corrido bem é a nossa confiança de segurança. Mas ainda há muita gente sem a vacinação completa. Há, portanto, que não desarmar a cautela.
A liberdade é bem supremo, fundamental, da nossa civilização.
Somos livres não apenas por podermos exercer os nossos direitos, mas porque o fazemos em respeito pelo bem comum da sociedade em geral.
Sermos livres implica não nos libertarmos do compromisso equitativo de responsabilidade cívica com os outros.
A exigência de um certificado de vacinação para podermos aceder a espaços fechados onde o contágio tem terreno favorável para se propagar é um gesto de liberdade.
Tal como é uma conquista de liberdade promover que ninguém fique por vacinar. Porque assim poderemos conquistar a liberdade da vida em comum para todos.
Então, já poderemos voltar, sem reservas, às bancadas dos estádios e de todos os espetáculos.
Entretanto, é claro que perturba que ao mesmo tempo que a França impõe novas restrições, o Reino Unido decrete que a vida é para ser vivida como se já não houvesse pandemia. A estranheza é tanto maior quanto este dia a que alguns britânicos estão a definir como o da “liberdade”, coincida com a entrada do primeiro-ministro Boris Johnson em isolamento e com o número de contágios a disparar: 54.674 novos casos só neste último sábado. E mais 41 mortes por Covid, na antevéspera do dito Freedom Day.
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