O trabalho “silencioso” de Guterres está a dar frutos

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Escrevi por aqui há um par de semanas que a ida de António Guterres a Moscovo e a Kiev podia ser um momento de viragem na guerra, apesar da muita contestação — tanto pela ordem da ida, como pela aparente inação até então. E também nutri algum saudável ceticismo quanto aos ganhos dessa "digressão".

Os resultados, porém, começam a ver-se. Depois de um interminável impasse quanto à saída dos civis sitiados na siderúrgica de Azovstal, na arrasada cidade de Mariupol, começaram a sair caravanas de pessoas há semanas aí presas em direção a território controlado pelos ucranianos, em operações dirigidas pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Se ontem foram retirados mais de 340 civis de Mariupol em direção a Zaporijia, hoje as Nações Unidas confirmaram que se encaminha mais um comboio humanitário rumo a Azovstal para retirar mais pessoas largadas à fome, à sede e ao risco de morte.

Hoje, perante o Conselho de Segurança da ONU, António Guterres defendeu que a "diplomacia silenciosa" produziu resultados na retirada de civis da cidade ucraniana de Mariupol. “É bom saber que, mesmo nestes tempos de hipercomunicação, a diplomacia silenciosa ainda é possível e às vezes é a única maneira eficaz de produzir resultados”, acrescentou o secretário-geral.

No entanto, também Guterres sabe que não só este sucesso é menor — dadas as proporções sanguinárias da guerra — como pode ser revertido se a situação no terreno se agudizar. “Uma terceira operação está em andamento — mas é nossa política não fornecer detalhes sobre qualquer uma delas antes de serem concluídas, para evitar minar possíveis sucessos”, adiantou.

Guterres disse ainda esperar que a coordenação contínua com Moscovo e Kiev leve a mais pausas humanitárias para permitir aos civis uma passagem segura para longe dos combates. “Devemos continuar a fazer tudo o que pudermos para tirar as pessoas desses cenários infernais”, acrescentou.

Não obstante a retirada de quase 500 civis da siderúrgica, a Rússia continua a querer limpar a Azovstal dos combatentes nacionalistas do Batalhão Azov. É que se ontem a diplomacia russa declarou um cessar-fogo unilateral a partir de hoje, o exército ucraniano anunciou que os combates continuam em Azovstal, acusando a Rússia de querer "aniquilar" os últimos defensores deste local.

"Os russos violaram a sua promessa de trégua e não permitem a retirada dos civis" que continuam refugiados com os combatentes na parte subterrânea do complexo industrial, disse Sviatoslav Palamar, subcomandante do Batalhão Azov, num vídeo publicado no Telegram.

À medida que se aproxima o 9 de maio — o chamado Dia da Vitória, que assinala a derrota do regime nazi na Segunda Guerra Mundial e que se teme que possa ser celebrado pelos russos em Mariupol —, é de temer que os combates escalem até lá, para que a Rússia possa garantir uma narrativa vitoriosa.

Condene-se ou apoie-se a posição belicista de Zelensky de defesa do território — pedindo mais por armas que por diálogo —, o que os factos têm provado é que a Rússia joga sempre mais baixo. Disso é exemplo o facto de apesar das visitas de Guterres se registarem como um sucesso, Kiev foi bombardeada durante a sua visita à capital ucraniana.

Por isso mesmo, o ato foi alvo de condenação hoje no Conselho de Segurança da ONU por vários intervenientes internacionais.

“O secretário-geral da ONU foi recebido em Moscovo para discussões incómodas com as autoridades. Ele também visitou Kiev. Por mais chocante e vergonhoso que seja, Kiev foi bombardeada durante a sua visita e enquanto falava”, disse o embaixador da Albânia junto das Nações Unidas, Ferit Hoxha. “Raramente testemunhamos tanto descaso pela ONU e seu secretário-geral, tanto desprezo pela Organização e todo o pessoal da ONU. Não sei como os russos explicam isso”, acrescentou.

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