Não se pode falar do futuro das empresas sem endereçar o futuro do trabalho — especialmente depois das mudanças que a covid-19 impôs a líderes, gestores e funcionários. Estas alterações afetaram sobretudo o universo das atividades que habitualmente seriam desenvolvidas num ambiente de escritório. Por isso, a Web Summit dedicou um palco e várias sessões a este tema.
"O trabalho remoto veio para ficar". Este é o novo ponto de partida para líderes e gestores, pelo que o foco está em reduzir ineficiências e aproveitar as potencialidades desta realidade.
"Antes da pandemia já havia pessoas que trabalhavam remotamente, agora há mais, e daqui a cinco anos haverá muitas mais. Não vai toda a gente trabalhar remotamente a toda a hora, mas haverá uma maior percentagem da população a trabalhar sem ir ao escritório regularmente", diz Jeff Maggioncalda, CEO da Coursera (na foto).
Mada Seghete, fundadora da Marketing Branch, assume mesmo que "não haverá um regresso ao normal. (...) Já não é possível tornar a presença física no escritório obrigatória, porque acho que as empresas que fizerem isso vão perder funcionários". "Sim, haverá mais empresas em modo totalmente remoto, porque há tecnologia para o suportar, mas ganha-se muito em estar presencialmente no escritório uma ou duas vezes por semana e também não acho que isso vá desaparecer. O futuro será híbrido", antecipa.
Para outras empresas, como a Deel, de Alex Bouaziz, com 400 pessoas em 55 países, o trabalho remoto é condição de partida. Nasceram preparadas para isso, têm os processos desenhados para o suportar e não equacionam outro cenário. "O trabalho remoto veio para ficar. Sentir-me geograficamente limitado quando quero ir ao mercado contratar não me faz qualquer sentido", diz o seu fundador e CEO.
Mas esta nova realidade, à qual muitas empresas tiveram de se adaptar em tempo recorde em 2020, levanta várias questões — a primeira das quais tem que ver com produtividade.
"Não acredito que o trabalho presencial seja requisito obrigatório para garantir produtividade", diz Vanessa Stock, cofundadora da People Pitch, diferenciando entre a dimensão individual e coletiva da produtividade. "Os empresários devem questionar-se é sobre se estão organizados para ter sucesso nas funções que têm de desempenhar", defende.
Para uma empresa desenhada de raiz para trabalhar remotamente, a presença física pode mesmo ter um impacto negativo: "adquirimos recentemente um escritório, num dos países em que estamos presentes, e quando lá vou não consigo praticamente despachar trabalho, porque estou à procura daquela conexão humana. Em termos de produtividade, eu e a minha equipa trabalhamos melhor remotamente", diz Alex Bouaziz, CEO da Deel.
Mada Seghete discorda: "a produtividade individual aumenta quando não tens de ir ao escritório, mas a produtividade das equipas aumenta quando estão no mesmo espaço, porque há menos falhas de comunicação". Assim, defende, "quando tens de escrever um artigo ou programar código, há maior produtividade no trabalho remoto. Mas quando tens de trabalhar em equipa ganhas em ter as pessoas juntas. Aliás, ao fim de uma ou duas semanas a trabalhar em projetos conjuntos, eu vejo as barreiras entre as pessoas a diminuir e a produtividade a aumentar significativamente. Já quando as pessoas voltam a ficar separadas, essas barreiras voltam visivelmente a colocar-se", descreve.
Jim Edwards, editor-chefe na Insider, dá um exemplo: "nós integrámos pessoas novas na equipa durante a pandemia e as questões que elas tinham podiam ser muitas vezes respondidas em 30 segundos por um colega se estivéssemos num formato presencial".
Ineficiências como as descritas, para Alex Bouaziz, só podem ser ultrapassadas com "os processos certos", pensados de raiz para suportar o trabalho remoto ou híbrido.
Para Joe Atkinson, CTO da PwC, uma coisa parece certa: "a forma com medimos o valor que criamos está a mudar" e fará cada vez menos sentido associar produtividade "ao número de horas que um funcionário passa no escritório". E isso é válido também para uma gigante como a consultora, que tem atualmente 5000 funcionários nos EUA e mais de 300 mil em todo o mundo, e que sempre definiu produtividade como "o número de horas que passamos a servir os nossos clientes".
Depois, quando as equipas não estão 100% no escritório ou em formato remoto, os desafios avolumam-se. "Numa reunião, por exemplo, quando tens parte da equipa presencialmente e parte fora, procuramos que toda a gente participe através de um ecrã, para nivelar a experiência de todos os participantes", relata Jeff Maggioncalda.
Na People Pitch, mesmo que parte da equipa esteja no escritório, "o dia a dia é gerido online e não presencialmente", com o objetivo de contornar desigualdades de acesso e de conetividade que o modelo híbrido pode gerar, diz Vanessa Stock.
Para muitos trabalhadores, refere Mada Seghete, "voltar ao escritório tem sido muito difícil. Acho que a maioria das pessoas mudou, um ano e meio é muito tempo quando se criam novos hábitos e esses hábitos ficam contigo. Acordar às 08h00, fazer a primeira reunião de pijama... Agora tenho de aguentar uma hora nos transportes para ir ao escritório?"
Daí que, na sua opinião, "dizer simplesmente às pessoas para voltar ao escritório não resolve o problema". No caso da sua empresa, a Marketing Branch, contrataram "uma pessoa cujo principal trabalho é criar experiências e ajudar as equipas a juntarem-se de forma divertida". O objetivo é "ter um conjunto alargado de incentivos para reunir as pessoas presencialmente", acrescenta.
Já a PwC optou por perguntar "às pessoas como queriam trabalhar. Nos EUA, cerca de 33% das escolheram trabalhar remotamente e isso significa que vão as escritório entre 0 a 3 vezes por mês. A maioria decidiu que o modelo flexível era o melhor, e nesse modelo há três dias da semana presenciais e nos outros dois trabalham remotamente. Depois, cerca de 10 a 15% dos trabalhadores, devido à natureza do seu trabalho, consideraram que estar fisicamente no escritório era fundamental", diz Joe Atkinson.
Neste contexto híbrido, cabe aos líderes e gestores trabalhar em novas formas de criar relações de confiança e de proximidade com a equipa. "É preciso investir na empatia. Os líderes podem estar mais presentes num ambiente remoto, graças às ferramentas digitais, mas os gestores têm de conseguir manter-se próximos das equipas", diz Jeff Maggioncalda.
"Quando estou presencialmente com uma pessoa, fico a conhecê-la, e é com base nisso que crio confiança para gerir as minhas equipas", exemplifica Mada Seghete.
Vanessa Stock considera que "a confiança tem de existir por defeito. Se não existe é porque há algo de errado com o sistema montado. Depois, acho que se lidera muito pelo exemplo, pela forma como a equipa de gestão está a lidar com o trabalho remoto. E se as pessoas não sabem trabalhar remotamente, ensinem-nas e capacitem-nas para tomar decisões. Caso contrário, eles não conseguirão dar o seu melhor".
"Quando pegas em 300 mil pessoas e as colocas em casa, se pensas que vais fazer microgestão do seu dia a dia... Tens de empoderar os funcionários, capacitando-os para identificar o trabalho que tem de ser feito, como tem de ser feito e quem precisa de estar envolvido", defende Joe Atkinson.
Já sobre o desafio de criar e manter a cultura da empresa num contexto remoto ou híbrido, Alex Bouaziz salienta a importância de "contratar pessoas cuja maneira de pensar está de acordo com a cultura da empresa". Mas é igualmente importante ajudar os funcionários a perceber claramente "quem precisam de conhecer e que informação precisam de ter" para fazerem o seu trabalho, o que antes acontecia de forma espontânea, nota Jeff Maggioncalda. "Nós, na Coursera, passámos a ter playbooks, um género de guias que garantem que existe uma forma comum de trabalhar".
Cabe igualmente à empresa encontrar novos valores partilhados na forma como desenha as rotinas das equipas. "Tivemos uma fase, no início da pandemia, em que as pessoas não gozavam feriados e incentivar que isso acontecesse passou a ser uma prioridade para nós, porque tens de manter a equipa saudável", disse Vanessa Stock, quando questionada sobre a prevalência de casos de burnout relacionados com o trabalho remoto.
"Os gestores com maior performance não são bons a limitar as suas equipas, há muito a cultura do 'vamos só garantir que isto fica feito'. Na PwC, em determinada altura, nós demos incentivos financeiros às pessoas para marcarem férias durante a pandemia, numa altura em que ninguém o queria fazer porque não se podia viajar", conta Joe Atkinson.
Nesta nova era do trabalho híbrido, defende, "há valores que as equipas vão ter de trabalhar em conjunto".
"Quando saíamos do escritório e entrávamos no carro para ir para casa havia uma barreira natural que separava a vida privada da profissional. Agora, no trabalho remoto, estamos sempre online e de alguma forma sempre acessíveis. Temos de criar novas barreiras uns para os outros e aprender a respeitá-las", conclui.
No contexto nacional, as regras do teletrabalho têm estado em discussão e são várias as propostas — que pode ficar a conhecer aqui — em cima da mesa.
Uma das vantagens do trabalho remoto ou de modelos híbridos é permitir às empresas tirar partido "de uma pool global de talento", salienta Jeff Maggioncalda. O que, a prazo, "vai resultar num aumento generalizado de salários", antecipa Mada Seghete. A pressão sobre mercados onde há muito talento — como Londres, exemplifica — vai conduzir a um aumento do nível de salários daquele local. Mas "ainda não estamos numa fase em que todos ganham o mesmo na empresa em determinada função, independentemente de onde estão geograficamente", nota.
Na Coursera, por exemplo, "há engenheiros que escolheram ficar a trabalhar nas suas terras [no pós-confinamento] e isso significou um ligeiro recuo nesses salários, dependendo, claro, dos standards praticados nessa zona".
Todavia, a adoção generalizada de modelos híbridos pode contribuir para aumentar a competitividade no mercado laboral e criar novas áreas de concentração de talento, onde se verificará, pelo contrário, um aumento dos salários de referência.
Neste sentido, diz Jeff Maggioncalda, "todas as empresas que não decidirem entrar no mercado global de trabalho vão pagar um preço por competirem nos mercados mais competitivos e não vão ter os benefícios de poder contratar em áreas menos competitivas, onde é mais barato".
Então, "as empresas que queiram contratar o melhor talento têm de ser optimizadas para sustentar um modelo remoto (ou híbrido)", defende Vanessa Stock. "Todos nós, líderes e gestores, temos de nos questionar sobre como criar um ambiente em que o trabalho remoto é possível e é acarinhado. Não vejo isso a voltar atrás", reforça.
E, para Joe Atkinson, parte dessa mudança de mentalidade começa na linguagem, incentivando as empresas a deixarem de se referir aos funcionários que estão fora do escritório como "trabalhadores remotos" e passarem a falar em "trabalhadores conectados", para que "todos compreendam que fazem parte da equipa".
A oportunidade que o trabalho remoto pode representar para empresas e trabalhadores não é, todavia, transversal. Primeiro, nem todo o mundo está ligado à Internet e, em segundo lugar, estar online não significa necessariamente ter uma ligação com qualidade suficiente para poder trabalhar remotamente, lembra Sónia Jorge, diretora-executiva da World Wide Web Foundation.
A covid-19 veio acentuar o fosso entre as nações e, quando se exclui parte do mundo de uma ligação com qualidade à Internet, há custos efetivos, na ordem dos mil milhões e biliões, refere. Na mesma ordem de grandeza, ressalva, “custaria 438 mil milhões de dólares colocar a maior parte da população mundial online até 2030 — a mesma quantia que gastamos em refrigerantes todos os anos. É só disto que precisamos para verdadeiramente ligar o mundo”.
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