“Com grande poder vem grande responsabilidade”. A frase tem origem algures no século XVIII, mas foi sendo usada por grandes figuras ao longo da história: Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt, Ben Parker (o tio do Homem-Aranha, Peter Parker)...

Há uma razão para este aforismo perdurar no tempo, mudando na forma mas mantendo o conteúdo: é que pode parecer um cliché, mas tem um fundo de verdade inegável e um prazo de validade indefinido.

É, então, mais pertinente que nunca invocá-la numa era em que a tecnologia assume um protagonismo inédito nas nossas vidas (crescendo a um ritmo tão acelerado que esta frase já estará obsoleta quando for lida), impactando as situações mais casuais do nosso dia a dia, até ao mais íntimo dos nossos domínios.

E se, por um lado, há uma clara necessidade de ter a “tal conversa” com a Internet, mais especificamente com os gigantes do setor, para que assumam o ónus das suas ações e construam de novo laços de confiança connosco, isso não implica que nós, consumidores-utilizadores-cobaias, nos furtemos de ser vigilantes quanto à parafernália tecnológica que nos rodeia. Aqui, estar atualizado não é ser o orgulhoso portador do mais recente gadget, mas antes estar ciente das implicações de não ler as letrinhas pequeninas, de não medir as tais grandes responsabilidades que advém de usar grandes poderes.

Se tem havido irresponsabilidade ou, na pior das hipóteses, dolo, por parte das grandes empresas tecnológicas na forma como têm utilizado os dados dos seus utilizadores e na forma como têm sido usadas como ferramentas de manipulação, Garry Kasparov considera que o público também merece ser responsabilizado.

O antigo campeão mundial de Xadrez, e atual embaixador da empresa produtora de software de cibersegurança Avast, considera que é uma “contradição” ver as pessoas queixarem-se de que ”os seus dados não estão protegidos” face ao abusos das empresas e dos estados, quando ao mesmo tempo os cedem, “quando compram uma Alexa e descarregam aplicações de reconhecimento facial”, sem pensar nas consequências.

Kasparov lembrou que, tal como os preceitos de higiene básica nos salvam de grande parte das ameaças de saúde, o conceito de "higiene digital" tem o mesmo princípio e é algo que devia ser "tão natural quanto lavar as mãos e os dentes". O problema, diz, é que “quando se trata de informação digital, as pessoas não prestam atenção. Não há almoços grátis. As pessoas pagam numa nova moeda: privacidade”. Algo que, para o famoso opositor de Vladimir Putin, é particularmente grave, pois considera que o presidente russo se tem servido da tecnologia para encetar “uma guerra low cost [barata]” através de uma “indústria massiva de fake news [notícias falsas]” contra as democracias ocidentais.

Mas a retórica talvez não chegue para explicar o grau de risco a que estamos expostos, e a que nos auto expomos. Foi por isso que a equipa da Avast fez uma aterradora demonstração no palco Binate.io que não destoaria num episódio da série “Black Mirror”, mostrando o quão fácil é para um hacker experiente entrar numa Smart House, um domicílio onde há vários aparelhos inteligentes ligados à mesma rede.

A máxima da empresa é de que “uma casa é tão segura quanto o seu aparelho mais vulnerável” e para prová-lo fez uma apresentação onde mostrou como, ao hackear uma câmara IP instalada com definições de segurança defeituosas, é possível ligá-la e ver o interior do lar, colocar um sistema de som a tocar, obter as coordenadas da casa e dar instruções a um assistente como a Alexa para desativar o alarme ou desbloquear a porta de entrada - tudo isto remotamente, claro, e através de um único acesso, a maldita câmara. “Xeque-mate”. É assustador, mas é uma realidade que já ocorre em Portugal: segundo Ondrej Vlcek, CTO da Avast, um recente estudo feito no nosso país revelou que uma em cada quatro das casas analisadas tinha um aparelho fácil de manipular.

São exemplos práticos como este que demonstram como é preciso encarar o mundo de forma diferente, ou, como Margrethe Vestager defendeu, de que “antes de abraçarmos completamente a tecnologia, temos de saber que riscos estamos a correr”. A propósito de uma conferência sobre o seu trabalho para tentar criar uma economia digital mais justa ao regular a atuação das grandes empresas na UE, a comissária europeia da Concorrência lembrou que tudo o que “está online” afeta as nossas vidas offline e que “não há contradição entre privacidade, proteção de privacidade, proteção legal, liberdade de discurso e mundo digital”. Vivendo nós perante um futuro que “está a chegar tão depressa que é difícil saber como será”, Verstager lembrou que as discussões que se estão a ter neste momento não são “apenas sobre nova tecnologia, mas como toda a sociedade está a transformar-se”.

Essa transformação contudo, parece continuar apanhar "de surpresa" consumidores e líderes políticos. Há quem acredite que os nossos representantes não têm preparação para discutir o panorama digital e esse alguém fez parte dessa mesma casta: Tony Blair. O ex-primeiro ministro britânico e líder do Institute for Global Change considera que o debate político não tem estado à altura de responder aos atuais desafios que a tecnologia nos coloca e àqueles que ainda surgirão. Aliás, nessa discussão tomada no palco Forum, Blair asseverou que apenas os políticos capazes de entender as potencialidades, aproveitar as oportunidades que a tecnologia proporciona e de construir respostas para os seus desafios é que terão lugar.

Mais, defende o homem que liderou o governo britânico entre 1997 e 2007 que as empresas tecnológicas devem ser reguladas para garantir o respeito pelos direitos dos cidadãos, mas com uma flexibilidade que lhes permita lidar com os desafios que aparecerão e sem cercear o investimento e desenvolvimento destas empresas.

Evitemos porém traçar um retrato devastador: citando Blair, "a tecnologia é libertadora, é algo que não devemos temer". A única questão, e socorrendo-nos de outra citação, desta vez de Brad Smith, presidente da Microsoft, que também marcou presença na Web Summit, "os benefícios superam os riscos. Mas antes que acordemos em 2020 e pareça que estamos numa versão 1984 [numa referência ao livro distópico de George Orwell], temos de agir."

Porque a tecnologia pode e deve ser libertadora em vez de castradora, deve empoderar e não enfraquecer, destaque neste terceiro dia também para Imogen Heap, artista musical e empreendedora que pensou numa forma de garantir que os artistas possam ser contactados consoante os seus atributos pelos seus pares, tornando inclusivamente mais fácil pagar-lhes de forma justa pela sua obra.

Em vez de tocar uma música como estava previsto - mas que não aconteceu devido ao risco do sem número de redes da Altice Arena interferir com o som - a cantora apresentou o seu “Creative Passport”. Sem âmbitos lucrativos e financiada por uma música que Heap compôs para uma peça de teatro da saga Harry Potter, a ideia foi criar um novo ecossistema onde, através de tecnologia “blockchain”, cada aderente tenha uma identidade centralizada online com as suas informações pessoais, obra, tipo de material e preferências. O conceito passa não só por facilitar as trocas de contactos entre agentes da indústria musical, mas também, dados os parcos rendimentos que os sistemas de venda atualmente proporcionam (incluindo plataformas de streaming), garantir uma forma direta de pagamento pela obra.

A tecnologia não está apartada da sociedade e impacta todos os seus domínios. A criatividade, o empreendedorismo e a capacidade de tornar real (em tempo recorde) o que antes pertencia ao domínio da ficção... Este é o motor da promessa de um futuro melhor. Este é o poder. No entanto, torna-se cada vez mais claro que a decisão sobre como percorremos esse caminho deve ser assumida pelos vários agentes — do consumidor, às empresas, passando pela classe política. E esta é a responsabilidade.


A Web Summit arrancou esta segunda-feira, 5 de novembro, e decorre até quinta-feira na Altice Arena e na Feira Internacional de Lisboa. O evento nasceu em 2010 na Irlanda e mudou-se em 2016 para Portugal. Este ano, na sequência de um acordo entre a organização e a cidade de Lisboa, a permanência foi estendida por mais dez anos, até 2028. Nesta edição são esperados mais de 70 mil participantes de 170 países. Saiba tudo sobre esta terceira edição em Portugal aqui.