A pergunta que convidava Domingo Soares de Oliveira, CEO do SL Benfica, e Jacques-Henri Eyraud, presidente do Marselha, a sentarem-se no palco Sports Trade no segundo dia da Web Summit era matreira. Afinal, podem dois clubes de grande dimensão ser equiparados a uma startup? Não. E sim.
No sofá estavam dois dos melhores alunos da turma do futebol europeu, cada um à frente de um clube com um passado rico, hoje afastados da disputa de troféus europeus pela discrepância que se criou entre os chamados colossos, como Real Madrid, FC Barcelona ou Bayern Munique, e os outros, que vivem a urgência de se reinventar para serem mais competitivos.
Cada um, adornando o discurso com o método que o emblema que representam está a seguir para regressar à glória de outros tempos, ajudou a desconstruir a pergunta “pode um clube ser gerido como uma startup?”.
Soares de Oliveira admitiu que "é difícil que um clube seja gerido como uma startup". “Clubes como Benfica e Marselha têm muita história, adeptos tradicionais, mas também temos mais de 200 milhões de faturação. Nos últimos meses entrámos numa nova era digital no Benfica. Estamos a misturar departamentos e pessoas de diferentes áreas, que trabalham em sinergia. Nesta nova era digital, vemos o que fizemos no dia anterior e apontamos a novos objetivos para o dia seguinte. Mudámos muito e crescemos ao nível das tecnologias de informação e na comunicação. Diria antes que temos diferentes startups no clube.", explica o CEO.
É o modelo de negócio que inquieta, contudo. Porquê? Está tudo nas dimensões. Clubes históricos e da dimensão do Benfica e Marselha trabalham com uma gestão de financiamento e de expetativas de uma forma completamente diferente de uma empresa ou negócio novo ou em fase de arranque. As águias não querem jogar noutra liga que não a dos grandes, sem, no entanto, deixar de pugnar por um futebol “equilibrado em termos competitivos”.
“Isso faz-se com limites. Se alguém não tem limites, pode contratar quem quiser e nós não podemos competir contra. Haverá clubes tão grandes em termos financeiros que não poderemos acompanhar. É aí que o fair play financeiro é importante”, confessa Domingo Soares de Oliveira.
O dinheiro mudou o futebol. Investidores compraram clubes e investiram largas quantias, criando super equipas e, em alguns campeonatos, absolutas disparidades. França é um caso paradigmático, em que o Paris Saint-Germain, com os milhões de Nasser Al-Khelaïfi que permitiram à equipa francesa contratar jogadores como Edison Cavani, Kylian Mbappé, Neymar ou Zlatan Ibrahimovic, destaca-se a larga distância de qualquer outra equipa do campeonato. Neste contexto, o Marselha tenta combater a hegemonia com as armas que tem ao seu dispor. Uma delas é a reinvenção do modelo de negócio do clube. A equipa foi adquirida em 2016 pelo empresário norte-americano Frank McCourt, que prometeu um investimento de 200 milhões de euros nos próximos quatro anos.
Jacques-Henri Eyraud explica que o “investimento era uma necessidade” e confessa que é importante que a “trajetória a alcançar seja bem definida”. “Somos David contra Golias. Como disse Jurgen Klopp, não temos de ser os melhores, mas temos de os bater”, disse o presidente do clube do sul de França, assumindo assim o PSG como adversário a abater e a Liga dos Campeões como um objetivo a longo prazo.
Vencer a ‘Champions’ é pertencer a uma elite, a um grupo restrito cada vez mais isolado - e que quer isolar-se ainda mais. Na semana em que o site Footballeaks noticiou que a FIFA pretende avançar para a criação de uma Superliga europeia, o tema volta a ser partido ao meio.
Domingos Soares de Oliveira opõe-se à criação da mesma: “É algo que tem vindo a ser falado nos últimos dois ou três anos. Percebo o conceito e as ideias fundamentais de quem está a favor, mas não concordo e não é porque os clubes portugueses, neste caso o Benfica, deveriam ficar de fora. Clubes como o Benfica ou Ajax [que integra o grupo dos encarnados na ‘Champions’], com tanta história no futebol e nas provas europeias, ficariam de fora. Com mais jogos europeus ganharíamos notoriedade e maior faturação, mas no final, se perguntarmos aos nossos adeptos quem são os nossos adversários, dirão sempre que são Sporting e FC Porto, não o Real Madrid ou Barcelona”.
É por este preservar da identidade nacional de um país em que o futebol tem uma grande influência, como acontece em Portugal, que o CEO do clube da Luz teme que os mais jovens comecem a ser fãs de jogadores, das grandes estrelas a atuar lá fora, e não apoiantes de um clube do país em que vivem. “Essa não é a direção correta, na minha opinião”.
Já Henri Eyraud olha para o projeto como uma resposta à distância cada vez maior entre os grandes clubes europeus e todos os outros. “Ou reformamos o futebol e o tornamos mais competitivo ou a Superliga vai ser uma realidade”, salienta, sublinhando no entanto que "devia haver um ambiente em que os clubes que investem devem ter uma oportunidade. A Superliga seria como a Liga dos Campeões hoje".
É a diferença de discurso entre o que a imprensa noticia como um provável convidado, o Marselha, um clube que se vergou perante o modelo de investimento que tem construído as novas superpotências do futebol mundial (como são os casos mais evidentes de Chelsea, Manchester City ou Paris Saint-Germain) ,e aquele que ficaria à porta do baile, o Benfica, emblema de um país em que o dinheiro não entra pela mão de investidores, mas sim pela capacidade em valorizar e vender talentos estrangeiros e formar jovens pérolas nas academias.
Mas se o modelo de negócio não permite a analogia entre um destes clubes de futebol e uma startup, a inovação a que associamos o termo é algo onde as estruturas de ambos os emblemas querem ir beber.
“É difícil quando se é um clube criado em 1899... A inovação não está no centro do mindset do clube. O mindset é o próximo domingo, o próximo jogo”, confessa o presidente gaulês, explicando a dificuldade em traduzir aos adeptos que querem medir o sucesso em troféus que a aposta na tecnologia pode ser um caminho até à glória.
O emblema da Luz revela que “investe milhões de euros em tecnologia todos os anos”. Soares de Oliveira assume que a tecnologia pode ser extremamente útil, por exemplo, na identificação de jovens talentos. “Antigamente tínhamos de ir aos sítios, sempre. Agora recebemos um nome e podemos ver dez jogos que fez nas últimas dez semanas” sem sair do mesmo sítio, exemplifica.
“Nós sabíamos que isto ia ser uma longa viagem, que os primeiros tempos iam ser de investimento. Nós focamo-nos em vencer no domingo, mas também em desenvolver inteligência artificial, em digital data [armazenamento de informação em formato digital]. Nós vamos ter um lugar no futebol moderno. O Benfica é provavelmente um dos grandes exemplos na formação de talentos na academia. Isto precisa de tempo”, afirma o presidente do clube francês.
Jacques-Henri Eyraud quer inovar. “A minha obsessão é ver como os jovens se focam noutras formas de entretenimento. Futebol é um desporto universal, está no topo da cadeia e ainda não olhou a tecnologia nos olhos. A minha filha passa horas a jogar Fortnite, a matar pessoas... E eu quero que o futebol se foque nestas pessoas que não vêm só futebol”, diz o dirigente, considerando que cativar uma nova geração para os estádios pode passar por uma alteração das regras por via dos eSports e de uma nova forma de comunicar. “Temos andado a trabalhar a nossa 'pegada' nos media”, confessa.
O tema é transversal e Domingos Soares de Oliveira explica que a estratégia do Benfica passa por olhar para os sócios como donos do clube. Assim, cria-se “uma grande responsabilidade ao nível do nosso comportamento e da gestão de expetativas”, diz. “Temos de crescer e pensar nos sócios, mas também nos adeptos que nos seguem dentro e fora de Portugal. Temos de pensar como atingimos esses adeptos, não esquecendo que temos de captar seguidores para as nossas redes sociais e pessoas que possam ir consultar o nosso site. Temos de dar algo novo diariamente aos nossos sócios e adeptos”, conta o CEO do clube da Luz.
Querem dar uma razão para que os seguidores não os larguem, para que os mais novos não deixem de se apaixonar pelo clube e imaginarem-se com uma camisola azul ou vermelha. Por isso, tudo isto é importante, tudo isto é por eles: desde a faturação à estratégia de media, passando pela possível criação de uma Superliga Europeia e pelo encurtar de distâncias entre clubes, nacional e internacionalmente. Tudo isto importa, mas nada disto faz esquecer a missão fundamental, aquela para que tudo isto tem de resultar: ganhar.
"A nossa missão é ganhar. Quando nos perguntam sobre lucros e vitórias, respondemos que queremos vencer, mas os lucros estão subjacentes. No final do dia pensamos em faturações adicionais, mas isso não se dissocia da equipa de futebol. Pensamos em ter uma equipa forte no campo sem prejudicar a nossa sustentabilidade”, afirmou Soares de Oliveira.
É a necessidade de se reinventar que fez destes clubes o que são hoje. É na sombra de duas Taças dos Campeões Europeus conquistadas no século passado e de duas finais perdidas na Liga Europa nesta década, que o Benfica reinventou a sua formação e tornou-a uma fonte de rendimento e geradora de grandes talentos que hoje vemos a atuar em grandes palcos europeus (Bernardo Silva, Renato Sanches e João Cancelo à cabeça).
É na sombra da Liga dos Campeões, conquistada em 1993, e da final da Liga Europa perdida este ano para o Atlético de Madrid, que o clube francês se reinventa, com base num modelo de investimento privado que tem dado frutos em vários pontos do globo futebolístico (com Inglaterra à cabeça). Já vimos o lado bom e o lado mau do modelo, mas é difícil desacreditar o emblema de um país que tem um dos melhores exemplos desta opção ali ao lado, em Paris, onde mora o rival a abater.
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