Por isso, o autor do livro, Luís de Freitas Branco, defende que este ano, em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril de 1974, devia celebrar-se “toda a riqueza musical portuguesa, e não só duas ou três pessoas”. “A Revolução antes da Revolução”, uma edição da Zigurate, chega às livrarias na quinta-feira e é apresentado hoje às 18:30 em Lisboa, na Sala de âmbito Cultural do El Corte Inglés.

“Há todo um repertório que contribuiu para o derrube da ditadura. E não foi somente o José Afonso, o José Mário Branco e o Sérgio Godinho, que obviamente são nomes incontornáveis que estão neste livro. A celebração do 25 de Abril, a meu ver, deve ser feita também com rock, pop, jazz, música ligeira, que também contribuíram, da mesma forma, para derrubar não só a ditadura, mas também costumes”, referiu o crítico musical, consultor de comunicação e mestrando de Ciências Musicais, em entrevista à agência Lusa.

Dentro da chamada música de intervenção, o autor destaca “a história completamente desconhecida das mulheres da canção de intervenção” - no livro é contada a história de duas: Ana Maria Teodósio e Rita Olivais – e “a canção libertária e independentista” das antigas colónias, “sobretudo em Angola”, que “também não está a ser celebrada nos 50 anos do 25 de Abril”.

Luís de Freitas Branco salienta também que o rock foi, a par da canção de intervenção, “o género mais vilipendiado pela censura”.

“Foi reprimido até ao limite. E quando não era reprimido e censurado, as bandas desmembravam-se porque [os seus elementos] iam para a Guerra Colonial”, recordou.

O livro de Luís de Freitas Branco, que parte de uma série de artigos que o autor publicou no jornal 'online' Observador, foca-se em 1971, “o ano que mudou a música popular portuguesa”.

O autor recorda que nesse ano foram editados álbuns icónicos de José Mário Branco, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, José Afonso, “Cantigas do Maio”, Sérgio Godinho, “Os sobreviventes”, os três gravados em França, de Adriano Correia de Oliveira, “Gente de aqui e de agora”, e Carlos Paredes, “Movimento Perpétuo”.

Além disso, Luís de Freitas Branco aponta três eventos importantes ligados à música: o Festival da Canção, o Festival de Vilar de Mouros e o primeiro Cascais Jazz.

Em 1971, a cantora Tonicha venceu o Festival da Canção com “Menina”, com letra de Ary dos Santos, uma pequena vila minhota foi palco da primeira edição de “um festival rock nos moldes do Woodstock”, Vilar de Mouros, e acontecia o primeiro Cascais Jazz, “uma coisa inconcebível de acontecer com aquele alinhamento – de Miles Davis a Dizzy Gillespie -, em pleno Estado Novo e a culminar com a prisão de [contrabaixista norte-americano] Charlie Haden, que se atreveu a fazer uma dedicatória aos movimentos de libertação africanos”.

Para escrever o livro, que está dividido em 12 capítulos, tantos como o número de meses de um ano, Luís de Freitas Branco consultou arquivos, leu toda a bibliografia que existe sobre o tema e entrevistou pessoas que viveram a época.

Ao todo, foram quase 50 entrevistas, “fundamentais para perceber coisas que não se sabia”.

Entre as muitas histórias abordadas no livro está a primeira vez que Sérgio Godinho esteve preso no Brasil, para onde foi com o grupo de teatro norte-americano The Living Theatre.

“O Sérgio Godinho nunca falou da sua prisão no Brasil em 1971, não gosta de falar nisso e está no seu direito”, referiu Luís de Freitas Branco, revelando que para contar a história falou com um dos membros da companhia, que esteve detido com o cantor português, William Troia, e investigadores que estudaram a detenção da companhia.

O autor pôde assim “contar essa história que não se sabia”, e que começou em Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, onde a The Living Theatre se tinha instalado temporariamente, numa altura em que o Brasil vivia sob ditadura militar (1964-1985).

“Os próprios organizadores do festival nunca estiveram confortáveis com a presença deles, que viviam numa comuna. Certo dia bate-lhes à porta um polícia disfarçado de vendedor de laranjas, e a primeira coisa que fazem é perguntar-lhe se não queria fumar um ‘baseado’ [um cigarro de haxixe ou marijuana, na gíria brasileira]. Ele diz ‘não, obrigado’, sai e volta com a polícia política brasileira, a DOPS, isto no período mais terrível no Brasil. O Sérgio Godinho é preso, e é na prisão que ele escreve, por exemplo, ‘A noite passada’”, resumiu.

No meio de todas as histórias contadas no livro, houve duas que surpreenderam muito Luís de Freitas Branco.

“Uma foi descobrir que quando saíram os discos do José Mário Branco e do Sérgio Godinho, ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ e ‘Os sobreviventes’, a receção dos músicos de cá foi terrível. Eles foram apelidados de tudo o que se possa imaginar: não sabiam cantar, não sabiam fazer arranjos, as músicas eram terríveis, só tinham sucesso porque estavam emigrados [em França] e eram de esquerda”, partilhou, salientado que, “obviamente esse discurso mudou todo com o 25 de Abril” de 1974.

A outra história, e a que mais surpreendeu Luís de Freitas Branco, foi descobrir que a escritora e jornalista Maria Teresa Horta lançou, em simultâneo com o livro de poemas “Minha senhora de mim”, um disco com o mesmo nome, cantado por Teresa Paula Brito.

“Em todo o do levantamento documental que fiz, foi o lançamento musical que teve maior cobertura: duas reportagens de televisão e entrevistas na RTP, jornais, rádio, uma cobertura massiva. E a banda que tocava neste disco é o Quarteto 1111, do José Cid”, contou.

“Minha senhora de mim”, o livro e o disco, “desapareceram das lojas semanas depois” de serem colocados à venda, apreendidos pela polícia política PIDE/DGS.

Teresa Paula Brito ainda tentou cantar ao vivo as canções, que “eram sobre a sensualidade feminina”, mas “foi apupada do palco e nunca mais cantou estas músicas, saiu em lágrimas”.

Luís de Freitas Branco recordou ainda que Maria Teresa Horta “foi agredida violentamente por três homens, também em 1971, e, depois disso, começou a escrever as ‘Novas cartas [portuguesas]’", com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa.

O autor lembra que não foi por acaso que tudo o que está relatado em “A Revolução antes da Revolução” aconteceu em 1971.

Aquele ano “foi o culminar da Primavera Marcelista [período inicial do governo de Marcelo Caetano], aquela espécie de abertura, aquele pequeno progresso económico que houve, maior consumismo, maior individualismo”.

“Mas, ao mesmo tempo, o sucesso de todas estas canções, sobretudo do José Afonso, do Adriano e do José Mário, fez com que no início de 1972, e no final de 1971, a censura mudasse as suas regras, e começou a haver exame prévio para lançar discos. E essa, no geral, é a principal explicação do porquê de tudo isto ter acontecido em 1971 e não em 1974”, afirmou.

Com a ascensão da extrema-direita pode nascer "nova geração de canções de protesto"

“Acredito que a ascensão do Chega, não tenho nenhuma dúvida disto, vai espoletar uma nova geração de canções de protesto de combate, mas também de raiva, de desalento e de tristeza”, referiu Luís de Freitas Branco, quando questionado sobre um ressurgimento de música mais interventiva após os resultados das eleições legislativas de domingo.

O crítico musical lembrou que tal já é visível, “de há um ou dois anos para cá, nas canções que estão a surgir sobre a crise na Habitação”. Entre outros, a fadista Gisela João fez no ano passado uma versão de “Casa da Mariquinhas” a que chamou “Hostel da Mariquinhas”, na qual canta que encontrou a casa da Mariquinhas num ‘site’ de Turismo: “É bonito ver a casa restaurada/E há emprego p'ro menino e p'ra menina/ Só é pena o português não ganhar para o T3/ E ter que mudar p'ra lá da Cochinchina”.

Já A Garota Não incluiu no álbum “dois de abril”, editado em 2022, o tema “O que é que fica”, que conta com a participação de Chullage, no qual canta: “Welcome monsieur, a casa é vossa/O mal dos outros não nos faz mossa/Quem não aguenta a subida encosta/Habitação é fratura exposta”.

O músico Luís Varatojo gravou no álbum “Defesa Pessoal”, do projeto Luta Livre, o tema “T0 no Barreiro”, e Eu.Clides divulgou no ano passado a música “Tê menos 1”.

Em “A Revolução antes da Revolução”, editado pela Zigurate, Luís de Freitas Branco aborda “todo um repertório que contribuiu para o derrube da ditadura”.

Acontecer um novo 1971 “é impossível”, tendo em conta que naquele ano havia “uma série de condicionantes, desde a censura ao Estado Novo”, mas Luís de Freitas Branco defende que “pode haver um novo 2011, o que já será bastante impressionante”.

Em 2011, ano em que a 'Troika' regressou a Portugal, os Deolinda apresentaram o tema “Parva que sou”, que acabou por inspirar o movimento Geração à Rasca, “que foi a maior manifestação política desde o 25 de Abril”.

No âmbito de uma investigação que Luís de Freitas Branco está a fazer sobre “A música, o conflito e as canções de protesto de 2011”, fez recentemente um “levantamento documental, e o que se descrevia da população portuguesa antes do ‘Parva que sou’ é que estava numa apatia, não ia à rua e não fazia nada”.

“E foi uma canção que alterou isto tudo”, disse, recordando que “sempre que houve momentos de conflito na sociedade portuguesa, houve uma reação imediata da música”.

O partido de extrema-direita Chega elegeu 48 deputados nas legislativas de domingo, obtendo 18,06% dos votos, reforçando a sua posição de terceira maior força política na Assembleia da República.

Nas eleições anteriores, em 2022, o partido tinha elegido 12 deputados.

“Eu tenho a certeza que o Chega vai mexer muito com a canção portuguesa”, afirmou Luís de Freitas Branco.

O álbum de estreia do ‘supergrupo’, assumidamente interventivo, Cara de Espelho, homónimo e editado recentemente, tem um tema sobre o líder do Chega - “Dr. Coisinho”, que inclui versos como “O Dr. Coisinho vem coisificar o medo/ Ai ó mulher é branco/ Ai ó mulher é preto/ O Dr. Coisinho vem quantificar o erro/ Ai ó qu'ele é cigano/ Ai ó qu'ele é o demo”.