O escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr escreve a certa altura, no seu romance, através da voz do protagonista, um aspirante a escritor, que “aceder à notoriedade literária no exterior” é o sonho inconfessável publicamente de todos os escritores africanos estabelecidos em França: “É a nossa vergonha, mas é também o fantasma da nossa glória”.

Nascido em 1990 no Dakar e residente em Paris, onde fez os estudos universitários, Mohamed Mbougar Sarr ganhou essa notoriedade ao vencer com esta obra, editada em Portugal pela Quetzal, o Prémio Goncourt, o mais conceituado galardão das letras francesas.

Em entrevista à agência Lusa, o escritor confessa-se muito honrado com a distinção, mas afirma que esta é “acima de tudo uma forma de dizer aos mais jovens escritores que têm de continuar”, e uma motivação para si próprio, para continuar a dar o melhor na escrita.

O jovem senegalês protagonista da história é Diégane Latir Faye, que na juventude ficou obcecado com um escritor obscuro, autor de um único romance não menos obscuro: T.C. Elimane e o seu livro “O Labirinto do Inumano”.

Inicialmente aclamado, o autor foi depois acusado de plagiar quase todo o cânone ocidental, o que levou à retirada do livro de venda, e desapareceu sem deixar rasto, do mesmo modo que parece não haver provas físicas da existência da obra, para além de uma nota biográfica e longínquas recensões.

Esta personagem e história foram inspiradas no escritor maliano Yambo Ouologuem, que ganhou o Prémio Renaudot em 1968, pelo seu primeiro romance, “Le Devoir de Violence”, mas que mais tarde foi acusado de plágio. Este acontecimento levou-o a virar costas à imprensa ocidental e a desaparecer, vivendo em reclusão para o resto da vida.

Mohamed Mbougar Sarr leu este romance no Senegal quando ainda era adolescente e ficou “muito impressionado”. Mais tarde descobriu a “história secreta do livro, a parte obscura do autor, as acusações de plágio e o seu desaparecimento”, contou.

Inicialmente sentiu-se atraído pela ideia de fazer um trabalho académico sobre este caso, mas depois apercebeu-se de que “a melhor forma de falar dele, mas também da filosofia e do problema literário que o seu caso implica” era através da ficção, que lhe permitira ir mais além.

“Porque o caso era sobre questões literárias muito profundas e gerais sobre silêncio, sobre colonização, sobre relação com as antigas colónias, sobre a forma como os escritores africanos são lidos e publicados na Europa, e no mundo ocidental, no geral, e quis misturar estes temas com a minha obsessão literária, sobre a escrita, sobre o que a escrita custa e o que sacrifica escrever um bom livro”.

“A mais secreta memória dos homens” aborda de uma forma crítica e satírica a relação entre os escritores francófonos africanos e uma “França burguesa”, que por vezes os consagra “para ter boa consciência”, como diz uma das personagens da história.

Mas o principal veículo desta crítica no romance é a personagem de TC Elimane, de quem, nas recensões literárias feitas pela imprensa francesa, se escreveram coisas como “perguntamo-nos se esta obra não será de um escritor francês disfarçado. Concordamos que a colonização fez milagres nas colónias de África”, ou “a colonização tem de continuar e prosseguir a cristianização destas almas infelizes e condenadas”, ou “a civilização ainda não penetrou nas veias destes macaquinhos, que só são bons para pilhar, encher a barriga, amarrar, queimar, embebedar-se, fornicar, idolatrar árbutos, matar”.

Mohamed Mbougar Sarr assume que, de certa forma, todo o seu livro é sobre essa relação entre França e os escritores francófonos africanos, uma relação de proximidade mas de ignorância também.

“É uma relação de ambiguidade, porque esta literatura africana é indubitavelmente uma parte da literatura francófona, mas é também muito marginalizada. Temos escritores francófonos africanos que lidam com a história da colonização, mas também com os seus direitos de criar uma outra história. A relação é entre o passado e o presente, é uma relação de dominação, mas também uma relação em que os escritores africanos têm de encontrar um caminho, sem depender sempre do reconhecimento de França”.

“A mais secreta memória dos homens” avança na história com o protagonista, Diégane Latir Faye, a encontrar casualmente uma escritora, Marème Siga D., que lhe entrega um volume do misterioso livro “O Labirinto do Inumano” e o põe no rasto do desaparecido TC Elimane.

Em Amesterdão, onde o protagonista visita Marème Siga D., esta conta-lhe uma longa história sobre como obteve aquele livro, e essa história contém em si várias outras histórias, com outros tempos, outras personagens e outras geografias, que vão da Paris contemporânea, à Argentina do pós-Guerra, passando pelo Senegal.

Mohamed Mbougar Sarr explica esta opção estilística e literária como uma forma de “ter uma perspetiva africana sobre a história do século XX, uma história violenta, que convoca colonialismo, mas também independência e todos os problemas políticos de África até à América Latina, e a história política da Europa".

“O romance tinha de exprimir esta história e complexidade, portanto tive de encontrar uma forma pós-moderna de expressar essa viagem e diferentes tempos”.

Confessando-se muito influenciado por escritores latino americanos – Roberto Bolaño é uma das maiores influências, mas o livro tem referências a vários outros -, Mohamed Mbougar Sarr destaca que nos seus trabalhos “há frequentemente esta forma de construir histórias, através de aceitação de uma espécie de caos, de dimensão mágica, de pluralidade de vozes, de loucura e de elementos da realidade”.

Junta-se a isto as suas “raízes africanas, senegalesas, que são também muito importantes na forma de contar histórias”.

“Tive de misturar todas estas referências. Para mim era muito importante que Elimane pudesse ter uma presença forte na Europa, na América Latina e em África, para evitar ficar preso apenas à relação entre Senegal e França”.

Para o escritor, “a chave do problema colonial é ter um ponto de vista mais amplo e incluir outras partes do mundo como a América Latina”, pois “há muitas semelhanças entre as histórias de alguns países africanos e latino-americanos, politicamente, mas também eticamente”.

Mohamed Mbougar Sarr convoca também para a história do seu romance vários escritores reais, como Witold Gombrowicz, Ernesto Sabato, Vargas Llosa, Salman Rushdie, Toni Morrison, JM Coetzee, Le Clézio, Susan Sontag, Wole Soyinka, Doris Lessing.

Todas estas referências refletem as influências literárias do autor, que começou a ler muito novo e para quem “um bom leitor é alguém que lê todos os escritores de todo o mundo”.