João Pedro Mamede é o ator que faz o papel principal nesta peça do dramaturgo e escritor nascido em Eppendorf, em janeiro de 1929, que se tornou um dos dramaturgos mais importantes da República Democrática Alemã (RDA) antes do regime comunista lhe ter começado a censurar textos no início da década de 1960, o que levou a que, nas duas décadas seguintes, começasse a trabalhar com grupos teatrais e companhias da então República Federal da Alemanha (RFA).
Traduzida pela primeira vez talvez em 1977, quando em manuscrito, o texto passou clandestinamente da então RDA para Paris para a casa do autor e encenador francês Jean Jourdheuil – que viria a encená-lo, em 1979, no Teatro Gérad Philippe, em Saint-Dennis, e que revelou o dramaturgo na Europa Ocidental.
Segundo Jorge Silva Melo chegou gora o momento de a pôr em palco a partir da versão publicada nos Livrinhos de Teatro, com tradução sua e da sua irmã Maria Adélia Silva Melo, recentemente falecida.
E se agora chegou a vez de fazer esta peça – já encenada por outros criadores a partir de outras traduções - foi porque desde que o diretor dos Artistas Unidos conheceu o ator João Pedro Mamede achou de imediato que este “é o ator que é capaz de fazer de uma forma inesperada esta máquina Hamlet”, disse Jorge Silva Melo, em entrevista à agência Lusa.
“Sem o romantismo das pessoas que encarnam o Hamlet, sem as tradições, mas com a brutalidade de uma coisa que é muito importante no Heiner Müller: a ferocidade”, sublinhou.
“O meu prazer aqui é pedir ao João Pedro que nos dê tempo; e é misterioso aquilo que ele consegue no silêncio. Portanto, estamos mesmo perante aquele que foi Hamlet”, enfatizou.
Nesta peça crucial do dramaturgo alemão, que morreu em 1995, aos 66 anos, o autor reflete sobre a história que já acabara e sobre o facto de “estar sozinho no meio da história”, acrescenta, sublinhando que a peça foi escrita mais de uma década antes de o muro de Berlim ter sido derrubado.
E citou uma fala da peça “Atrás de mim estão os restos da Europa” para explicar que Heiner Müller pensava num mundo inteiro que já ruíra e que a sua tragédia já tinha acabado ainda que o muro que separava as duas Alemanhas ainda não tivesse sido derrubado.
Uma meditação “muito dilacerante” na altura e que agora “ganha outros significados”.
“Vemos o Mediterrâneo, vemos os mortos no meio do Mediterrâneo, vemos Schengen, vemos as ruínas daquele sonho que foi, desde o século XVIII, europeu”, frisou.
E isso, para Silva Melo, “é curioso”, já que “A máquina Hamlet” foi uma peça breve, mas “enigmática” e que “vai ganhando novos significados a cada ano que passa”.
O encenador recordou mesmo que o dramaturgo alemão estava a ensaiar “o Hamlet de Shakespeare quando se deu a queda do muro de Berlim” (construído em agosto de 1961 em plena Guerra Fria e destruído em novembro de 1989, abrindo caminho à reunificação da Alemanha).
“Portanto, era mesmo nas indecisões do Hamlet que a decisão da história avançou”, sublinhou, acrescentando que deve ter sido “chocante” para o dramaturgo alemão estar “com o Hamlet entre mãos enquanto caía o que estava poder no reino da Dinamarca”.
Reino da Dinamarca que, para o encenador, agora, “é do lado de cá do mediterrâneo, onde tudo está podre”.
“O novo muro que nos separa do resto da Humanidade é, realmente, o ´mare nostrum`, aquele mar que foi comum, que nos ligou a África e que agora nos separa e onde morre tanta gente, minuto após minuto”, observou.
“E que é um arame farpado embora seja de água”, enfatizou.
Nesta encenação de “A máquina Haamlet” em que é “como se a sombra de Hamlet entrasse pelo corpo dentro” de João Pedro Mamede, nas palavras de Silva Melo, é também crucial a música original de João Madeira.
Um contrabaixista do jazz e da improvisação que compôs uma “peça longa e meditativa e que avança para uma certa violência e brutalidade quanto à ferocidade” que o encenador considera que o dramaturgo alemão tem.
Daí que o desempenho de João Pedro Mamede esteja isento de qualquer sombra de melancolia ou tristeza.
“Ele não encarna, cita. Que é aquilo que o Heiner queria do teatro. Não queria que os atores mimassem as personagens, que as imitassem; queria que as citassem, que as apresentassem e não representassem”, concluiu o encenador Jorge Silva Melo, que conheceu Heiner Müller em Paris e com quem chegou a fazer uma leitura em francês e alemão, respetivamente, da peça “A decisão”. Escrita por Bertolt Brecht (1898-1956), de quem Müller foi considerado discípulo e seguidor, trata-se de uma peça que Brecht proibira que fosse representada durante a sua vida.
Interpretada por Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, Inês Pereira, João Estima, João Madeira e José Vargas, “A máquina Hamlet” tem cenografia e figurinos de Rita Lopes Alves, luz de Pedro Domingos e Inês Pereira como assistente de encenação.
Em cena no Teatro da Politécnica até 22 de fevereiro, terá espetáculos às terças e quartas-feiras, às 19:00, às quintas e sextas, às 21:00, e, aos sábados, às 16:00 e às 21:00.
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