Esperava-se que o ano de 2022 fosse o da recuperação plena, após dois anos de pandemia. Para trás ficavam as fronteiras fechadas, as quarentenas mais ou menos forçadas, as máscaras obrigatórias no rosto. Queríamos perder o medo, prosseguir com as nossas vidas. A indústria da música ao vivo, forçada a cessar atividade durante todo esse período, foi das que mais sofreu. Sem que o público pudesse sair às ruas e entrar nas salas de espetáculos, ou frequentar festivais de verão, não podia existir como estávamos habituados. Tivemos de nos contentar com espetáculos virtuais, com plateias reduzidas, a distância a ditar comportamentos.
Porém, mal refeitos desse período negro, vimo-nos obrigados a entrar num outro: o da guerra na Ucrânia. A economia voltou a sentir um baque: a inflação subiu, os preços de bens essenciais idem aspas, os combustíveis atingiram valores incomportáveis para as classes mais desfavorecidas. E a música, que tem muitas vezes o condão de nos salvar, teve de se adaptar, também ela, a esta nova realidade. Se os preços sobem, torna-se difícil também para os artistas, sobretudo os de cariz independente, viajar – pelo seu país, ou por outros continentes – e mostrar os seus trabalhos noutros contextos, conhecer fãs, angariar outros novos. Numa era em que a música já não se vende e é, isso sim, escutada de forma gratuita em plataformas de streaming ou com recurso à boa e velha pirataria, é ao vivo que muitos tentam ganhar o seu pão.
Nesse ano onde entrámos com o mínimo de esperança, alguns viram-se obrigados a riscar por completo os seus planos. Um dos exemplos mais paradigmáticos é o dos Animal Collective, banda norte-americana que ajudou a definir o indie do novo milénio, e que anunciou, em outubro, o cancelamento de toda a sua digressão europeia e britânica. “Ao prepararmo-nos para esta digressão, deparámo-nos com uma realidade económica que não funciona nem é sustentável”, afirmaram em comunicado. “A inflação, a desvalorização da moeda, os custos elevados com o envio de mercadorias e com as viagens... Não conseguimos elaborar um orçamento para esta digressão que não implicasse a perda de receitas, mesmo que tudo corresse pelo melhor”.
O pesadelo americano
Mas a economia não foi a única a colocar um travão nas aspirações de quem queria regressar rapidamente à normalidade. As políticas de imigração de alguns países também contribuíram para tal. Olhe-se para os Estados Unidos, que pretendem aumentar os custos com a obtenção de vistos, por parte de artistas estrangeiros, de 460 dólares (cerca de 431 euros) para 1615 dólares (cerca de 1515 euros). Uma medida que, escreveu o “The Guardian”, tornaria impossível à esmagadora maioria dos músicos, salvo os grandes nomes (por conseguinte mais endinheirados), atuar naquele país. Para um artista britânico, que para além do contexto pandémico sofreu ainda com o Brexit, isso significa quase como que o fim de uma carreira – pelo menos no que toca à sua internacionalização.
Os britânicos Easy Life, que em 2020 foram considerados pela BBC como um dos maiores talentos emergentes do Reino Unido, sentiram na pele esse aumento de custos. «Não tínhamos como pagar», afirmou o vocalista Murray Matravers ao “NME”. “Estivemos em digressão pelos Estados Unidos antes da Covid. Agora, tudo mudou. As despesas com os vistos são de loucos – tens de contratar um representante legal para que preencha todos os formulários, e os seus honorários subiram em flecha. Diminuímos os custos para sermos só nós, numa carrinha, com uma equipa de produção mínima, e mesmo assim não conseguíamos pagar. Íamos esgotar salas, mas mesmo assim iríamos perder 30 mil libras”, algo como 33 mil e 800 euros.
Meses antes, os portugueses Moonspell anunciaram o cancelamento da sua digressão norte-americana, pelos mesmos motivos. Em comunicado, os Moonspell esclareceram que tal se deveu a «motivos irresolúveis de transporte e de logística». “Tentámos todas as soluções disponíveis, mas não temos outra solução”, disseram então. A digressão, que deveria ter tido lugar no final de 2022, encontrou entretanto solução – e novas datas: o grupo andará pelos Estados Unidos e Canadá em abril e maio próximos. E a norte-americana Santigold, que em 2008 andou pelas bocas do mundo (sobretudo) por causa de 'L.E.S. Artistes', fez o mesmo em outubro. Numa carta aberta aos fãs, Santigold culpou “o aumento dos custos dos combustíveis, dos hotéis e dos voos”, e lamentou o que a pandemia e a falta de rendimentos, isto é, de concertos, fez pela sua saúde, mental e física. “Sinto que me estou a aguentar, a tentar chegar à meta, mas que o veículo em que sigo está a cair aos bocados”. E deixou um apelo em forma de aviso: “Creio que é importante que as pessoas conheçam a realidade dos artistas”.
Acrescentemos à carta de Santigold: não só dos artistas. A indústria da música ao vivo faz-se da arte e do produto, mas não foram apenas os músicos a ficarem sem rendimentos durante a pandemia. As equipas de produção também sofreram, e até mais do que os próprios artistas. Quando uma digressão ou um concerto são cancelados, os rendimentos destes trabalhadores também são. Em alguns países, como Portugal, foi atribuído um apoio extraordinário aos artistas, autores, técnicos e outros profissionais da cultura, durante o período de confinamento; hoje em dia, a indústria regressou, mas a normalidade é por ora uma miragem. E a ausência dessa normalidade nota-se, como seria expectável, no aumento dos preços dos bilhetes.
Sem pão, ouçam brioches
A artista australiana Alex Lahey, numa publicação feita no Twitter e partilhada pelo “The Guardian”, deu o mote: “A indústria musical pós-Covid está completamente lixada. Se puderem pagar, comprem bilhetes para espetáculos. Ajuda muito à sobrevivência dos artistas, dos músicos e das equipas de produção”. O ónus recairá, assim e uma vez mais, nos consumidores, fazendo com que a indústria da música ao vivo seja algo apenas ao alcance de quem tem um salário acima da média. Por vezes, bem acima da média.
A gigante Ticketmaster tem sido, nos Estados Unidos, alvo de diversas críticas devido à sua política de venda de bilhetes. Intitulada dynamic pricing, ou “preços dinânicos”, esta política leva ao aumento dos preços dos bilhetes em concertos com elevada procura, como o foram os das novas digressões de artistas como Taylor Swift, Beyoncé ou Bruce Springsteen: em alguns casos, esses preços chegaram a ultrapassar os 4500 euros, quase seis salários mínimos nacionais. Em declarações ao “The Guardian”, Neil Warnock, da United Talent Agency, que representa 250 artistas, explicou que essa é uma prática que existe desde sempre – e que continuará a existir enquanto houver quem pague por ela. “Se o Sr. e a Sra. Muito Ricos querem sentar-se na fila da frente de um concerto de Harry Styles, irão pagar esse preço”, disse.
Os próprios artistas têm a sua quota de culpa. No mesmo artigo, Anton Lockwood, diretor da DHP, explicou que “se o Bruce Springsteen está a cobrar 450 euros por um bilhete para um concerto, é porque quer”. “Tanto ele como o agente dele argumentam que, se o não fizerem, os websites de venda em segunda mão irão fazê-lo”, continuou. Olhe-se, por cá, para o exemplo dos Coldplay, que esgotaram quatro concertos no Estádio Municipal de Coimbra, com muitos deles a serem, pouco depois, recolocados à venda por quem não é tanto fã quanto oportunista. Ou para Madonna, que irá atuar na Altice Arena em novembro, com os bilhetes a chegarem aos 305 euros, o que chocou o próprio promotor.
A não ser que a indústria seja alvo de nova regulamentação, a música ao vivo corre o risco de se tornar num luxo, acessível apenas às carteiras mais recheadas. Isto mesmo disse, ao “The Guardian”, Matt Griffiths, da Youth Music, organização britânica de apoio aos músicos mais carenciados. Por sua vez, há artistas que tentam contornar as regras do jogo com as suas próprias políticas. Foi o caso dos Cure: para a sua nova digressão pela América do Norte, o grupo anunciou que não iria disponibilizar bilhetes “com preços dinâmicos” ou “platina”, isto é, para VIPs. Cada bilhete comprado era, igualmente, intransmissível. “Queremos que a digressão seja acessível a todos os fãs. Os nossos parceiros concodaram em minimizar as vendas em segunda mão e em manter o preço de custo dos bilhetes”, explicaram. Porém, o vocalista Robert Smith acabaria, dias mais tarde, por admitir que existia “um problema”: o valor das taxas secundárias que a Ticketmaster estava a cobrar era superior ao valor dos próprios bilhetes. Mais recentemente, o Consequence of Sound publicou um artigo onde oferece uma perspetiva bem mais pessimista (ou, talvez, realista): não pode haver preços justos numa era onde existe uma tão acentuada desigualdade salarial.
Os casos portugueses
Por cá, a história repete-se de ano para ano: sempre que são anunciados os preços dos bilhetes para um determinado espetáculo, as caixas de comentários e as redes sociais enchem-se de dezenas e dezenas de vozes a replicar expressões como “vergonha”, ou palavrões piores. E, no entanto, muitos preferem culpar apenas uma alegada ganância por parte das promotoras, sem procurar entender o que está na base desses mesmos aumentos de preços.
Álvaro Covões, diretor geral da Everything Is New, responsável, entre muitas outras coisas, pelo festival NOS Alive, fala-nos de “uma necessidade básica do sector em ter mais receitas”, o que se explica com o aumento dos custos de produção. “Se olharmos para o mundo inteiro, houve um aumento do preço dos bilhetes muito ligado ao aumento dos custos dos próprios artistas”, explica. A inflação, potenciada pela guerra na Ucrânia, pode ter sido um factor muito forte, mas Álvaro Covões salienta: “Relativamente a 2019, o aumento de preços foi abaixo da inflação. Porque a inflação, de 2019 até 31 de dezembro de 2022, é de quase 11%. E o aumento não foi de 11%”.
André Mendes, da Amplificasom, que organiza o Amplifest, do Porto, diz-nos que “o consumidor muitas vezes não tem noção, e se calhar não tem que ter, não é esse o seu papel”, mas pede “sensibilidade”. “Com tanto aumento, desde os cachês aos custos de produção, só consegues continuar a trabalhar aumentando o preço dos bilhetes”, acrescenta. Karla Campos, da Live Experiences, responsável pelo Cool Jazz, em Cascais, fala-nos de “uma enorme ginástica, para não aumentar drasticamente o preço dos bilhetes dos espetáculos”. “Os promotores de espetáculos são quem tem suportado, em parte, essa inevitabilidade de aumento dos preços. Queremos continuar a trabalhar, a fazer trabalhar; as pessoas precisam de cultura e, no fundo, não podemos fazer uma subida muito grande de preços”, diz. O festival açoriano Tremor, que decorre esta semana em São Miguel, foi dos poucos que escapou a esse impacto, já que os bilhetes foram anunciados no final da edição de 2022. Porém, Márcio Laranjeira, diretor criativo da Lovers & Lollypops, deixa o aviso: “Para a edição de 2024, será impossível não fazer um acerto”.
“Não só estamos a enfrentar uma enorme inflação em bens como, por exemplo, os combustíveis, como também vimos muitas empresas que prestam serviços de aluguer de transportes e backline a fecharem portas, ou a reduzirem os seus recursos após a pandemia”, revela-nos Ricardo Rios, um dos organizadores do festival SonicBlast, em Vila Praia de Âncora. Zé Diogo Vinagre, do Lisb-On, fala-nos em aumentos de “25% a 50%”, aos quais acrescem “o aumento do custo das viagens e das estadias em hotéis”. “O desafio de criar um preço [dos bilhetes] competitivo, para o mercado nacional, é cada vez maior”, desafaba. O festival SWR, em Barroselas, teve de, segundo nos conta Ricardo Veiga, um dos organizadores, “encontrar parceiros na Europa para dividir despesas de deslocação”, já que “no caso de algumas bandas, o custo elevado dos vôos influenciou a sua vinda ao festival”. “Nas circunstâncias actuais não houve hipótese: tivemos mesmo que aumentar o preço dos bilhetes e fazer ajustes nos bares, comidas e merch, pois tudo está mais caro”.
Tendo tudo isto em conta, não é de facto de estranhar que vários artistas, sobretudo os de cariz independente ou de menor expressão, tenham cancelado as suas digressões. “Nos últimos dois anos todos assistimos a vários cancelamentos de tours, porque os cachês anteriormente acordados já não fazem frente aos custos atuais”, afirma Ricardo Rios. André Mendes vai mais longe: o Amplifest “não conseguiria, hoje, organizar a sua primeira edição”. “Os cachês tiveram aumentos brutais – alguns ultrapassam os 100%. Mas os custos de produção – voos, gasóleo, hotéis, o próprio catering – também estão elevadíssimos. Sei de tours planeadas que não aconteceram devido ao aumento brutal dos custos, e não repito a palavra 'brutal' à toa”.
Karla Campos diz-nos que “há muitos artistas a optarem por não fazer digressões na Europa, porque, em termos de custos, está impossível”, opinião partilhada por Márcio Laranjeira, que explica que isto não é um exclusivo dos artistas não-europeus: “mesmo as viagens de artistas entre países europeus, ou dentro do próprio país” levam a uma contenção. “Hoje em dia, uma carrinha de nove lugares fazer uma viagem entre Porto e Lisboa... É quase o dobro do custo de há dois anos”. Não negando que esse impacto se sente mais quando se é um talento emergente, Álvaro Covões afirma que mesmo os grandes artistas passam por dificuldades. “Ao contrário do que as pessoas pensam, há artistas que fazem tours de arenas, artistas grandes, que chegam ao fim e mesmo assim perderam dinheiro”, explica. “Por incrível que pareça... Vamos pensar num espetáculo na Altice Arena: chegam a vir vinte ou trinta camiões de equipamentos, 150 pessoas a trabalhar. Tudo isso custa uma fortuna”.
Olhar para o futuro
Como continuar a fazer de Portugal um país apetecível para os artistas do Reino Unido e dos Estados Unidos? Zé Diogo (Lisb-On) descreve o país como “uma referência no que diz respeito a festivais de música”. “Temos festivais muito bem produzidos em Portugal, e os artistas que trazemos a um país deste tamanho... É muito provavelmente um caso único. 'Festivais de música', 'Verão' e 'Portugal' são três termos que combinam na perfeição”, diz. Para Ricardo Veiga (SWR), Portugal, “sendo um país mais pequeno e mais afastado do centro da Europa”, “terá que se reinventar um pouco – como sempre fez, aliás”. O SWR, dedicado quase exclusivamente a todas as vertentes do heavy metal, não deverá beneficiar do “hype turístico do país, que talvez possa ser uma alavanca para alguns eventos mais mediáticos”. O que obriga este tipo de produções a ir à luta com mais afinco. “Seguramente, o interregno da pandemia, e agora esta avalanche económica, será um rude golpe em muitas estruturas independentes e de contra-cultura. Vamos todos ter que dar a volta por cima, e encarar o boi pelos cornos”.
Para Ricardo Rios (SonicBlast), “é preciso haver poder de compra para gastar em cultura”, dando como exemplos a Alemanha, a Espanha e a Itália, “que introduziram modelos de ajuda para que a população possa ter acesso à cultura, nas suas mais variadas formas”. “É claro que o melhor seria que os salários acompanhassem a inflação”, atira. Segundo André Mendes (Amplificasom), “continuamos a ser um país maravilhoso a receber, as bandas adoram vir cá, mas com a constante falta de visão e de apoio cultural de quem nos governa, somos cada vez menos competitivos”. Já Álvaro Covões (Everything Is New) explica que “ser da União Europeia ou não ser” não influencia nada. “Para os norte-americanos, por exemplo, sai mais barato: como o dólar está uma moeda mais forte, fica mais barato alugar equipamentos na Europa. Se houvesse barreiras alfandegárias ou taxas suplementares, aí sim”. E acrescenta: estes artistas “são empresários, e portanto têm que investir; nunca vão deixar de vir para a estrada”.
Márcio Laranjeira (Lovers & Lollypops) oferece uma visão mais positiva, não olhando para a eventual ausência do roteiro europeu de artistas daqueles dois países como algo intrinsecamente lamentável. “Olho para os festivais que programava em 2010, em que havia um domínio muito grande de artistas internacionais anglo-saxônicos no alinhamento, e essa não é a realidade em 2023”, conta. “Sinceramente, não vejo nem acho que se deva fazer alguma coisa para nos tornarmos atrativos para o mercado do Reino Unido e dos Estados Unidos. Já temos um sistema de vistos de artista e de trabalho bem mais flexível que o dos EUA, e agora do RU; temos acordos mais justos, e pagamos bem mais a uma banda do Reino Unido cá do que, na maioria das vezes, essas mesmas bandas recebem lá... O mercado durante muitos anos criou um quase monopólio dos países de lingua inglesa em relação às tours internacionais, e estamos talvez a ver a queda desse império. Da minha parte, não vejo mal nenhum nisso”. Quer estes cancelamentos signifiquem o fim de um monopólio ou o crash da indústria no geral, só o tempo o dirá. Para já, só uma coisa é certa: a música é o que ainda (nos) move.
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