Fantasmas do passado
Houvesse um panteão dedicado a jornalistas consagrados e Ryszard Kapuściński estaria certamente nesse lote de seletos. Durante a sua carreira, o falecido autor polaco trotou esse mundo fora, cobrindo alguns dos episódios mais marcantes do século XX, em especial os movimentos de descolonização que deflagraram no então chamado “Terceiro Mundo”. Em “Cristo com Carabina ao Ombro” — editado pela Livros do Brasil e até agora inédito em Portugal — Kapuściński acompanha guerrilheiros do Médio Oriente até Moçambique, onde acompanhou a guerra pela independência contra Portugal em 1974.
Essa não foi última vez que o jornalista se cruzou com o fado lusitano. Em “Mais um Dia de Vida - Angola 1975”, o polaco regista o que foi acompanhar a retirada das tropas portuguesas no processo de descolonização e a disputa armada entre os movimentos de libertação. Um outro lado desse momento é relatado por José Francisco Rica, militar que fez parte do Batalhão de Artilharia 6221/74 destacado para assegurar a transição. Em “Angola, Missão (Im)Possível” — editado este mês pela Caminho —, o autor relata os desafios de um grupo com pouca preparação e ainda pior direção para lidar com a convulsão no país africano, assim como as tentativas de retirar os portugueses de volta à metrópole.
Assinalando-se este ano cinco décadas desde o início da Guerra Colonial, têm sido vários os lançamentos a debruçar-se neste tema ainda difícil para a memória nacional. Para Carlos Vale Ferraz, foi também a oportunidade de prosseguir o seu projeto de misturar romance com factos reais. Em “Angoche - Os fantasmas do império”, lançado pela Porto Editora, o escritor — também ele ex-militar no Ultramar — ficciona o que terá acontecido a 23 de abril de 1971, quando um navio da Marinha mercante portuguesa partiu do porto moçambicano de Nacala com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba), e foi encontrado à deriva, sem rasto das 24 pessoas que levava a bordo ou do armamento militar português que ali seguia. Este é um dos grandes mistérios nacionais por resolver.
Do outro lado da contenda esteve Júlio de Almeida, que, aliás, surge no livro acima mencionado de Kapuściński, sendo referenciado pelo nome que o tornou conhecido em Angola — comandante Jujú. Depois de se estrear com “Vaicomdeus, SARL”, o antigo porta-voz das FAPLA na guerra civil angolana e ex-ministro — além de pai do poeta Ondjaki — publica “O Incesto Real”, pela Caminho. Com edição a 25 de maio, a obra pretende escalpelizar a história do país através de várias estórias, percorrendo diferentes momentos com diferentes narradores.
Acompanhando o interesse pelo processo de descolonização está a contínua curiosidade sobre a vida de António de Oliveira Salazar. Maio é também um mês onde vários títulos são dedicados a analisar a vida do antigo ditador. Um deles é “Salazar, O Ditador Que Se Recusa a Morrer”, do historiador escocês Tom Gallagher. Saindo pela Dom Quixote a 31 de maio. este é uma biografia com uma perspetiva mais conservadora e benevolente quanto ao ex-líder nacional, traçando as razões para a longevidade do Estado Novo a partir a atuação de Salazar.
Uma delas terá sido a capacidade de manter Portugal afastado da II Guerra Mundial, assumindo o país uma postura neutral. Mas e se Salazar tivesse sido deposto e substituído por uma liderança mais radical, empurrando-nos para o conflito ao lado das forças do Eixo? Essa é a trama em que se situa “Deus Pátria Família”, o novo romance do jornalista e escritor Hugo Gonçalves. Por trás de uma história policial, onde um detetive tenta descobrir porque morrem mulheres em assassinatos de cariz religioso todas as semanas, há o imaginar de uma negra história alternativa de tons conspirativos. É publicado pela Companhia das Letras a 18 de maio.
Perda, sentimento universal
Antes de se ver enredada na polémica da tradução da poesia de Amanda Gorman, Marieke Lucas Rijneveld era, antes de tudo, a mais jovem autora distinguida com o prémio Booker Internacional — recebendo a honra aos 29 anos. O livro que a propiciou, “O Desassossego da Noite”, é lançado no dia 18 deste mês pela Dom Quixote. A autora neerlandesa não-binária passa a morte de um irmão mais velho da realidade para a ficção, lançando-se numa narrativa de desagregação, não só espiritual, com a perda da fé em Deus, mas sobretudo familiar, com os membros afastando-se para encontrar as suas próprias estratégias de luto.
Da edição internacional do prémio Booker para a sua congénere britânica, “Apeirogon”, que figurou na lista de candidatos de 2020, é uma das apostas da Porto Editora para este mês. Numa fase em que infelizmente o conflito israelo-palestiniano recrudesce, o romance do autor irlandês Colum McCann tece ao longo dos seus 1001 capítulos a história de dois homens separados pela brutalidade da geografia, mas unidos pela mesma dor de terem perdido os filhos para uma guerra aparentemente irresolúvel, sendo uma história de reconciliação enquanto a bipolaridade cresce.
Quem também perdeu um filho foi William Shakespeare. “Hamnet”, gémeo de Judith, terá morrido vítima de uma doença inaudita aos 11 anos — quatro anos antes de “Hamlet” ser escrito. No livro do mesmo nome, editado pela Relógio d'Água, a escritora Maggie O’Farrell imagina as circunstâncias para este trágico acontecimento na Inglaterra do século XVI. Na obra, que lhe valeu o Women's Prize for Fiction de 2020, o centro da trama não é ocupado pelo o famoso dramaturgo britânico, mas sim pela sua mulher, Agnes Hathaway, e a forma como esta faz o luto com o desaparecimento da sua progenia.
Completando este quinteto de livros marcados pela perda, “A Morte de Jesus” é ele próprio o fim de uma trilogia assinada por J. M. Coetzee. O Nobel sul-africano termina assim o seu polarizante projeto marcado pela narrativa dominada pelo diálogo de pendor filosófico e alegórico. Ao contrário do que o título sugere, a história não acompanha o filho de Deus, mas sim Davíd, Simón e Inés — e o final trágico que uma das personagens tem quando decide abandonar a família. Este volume é editado a 31 de maio pela Dom Quixote.
Passando para o universo francófono, o vencedor do prémio Goucourt de 2020, “A Anomalia”, de Hervé Le Tellier, é editado pela Editorial Presença a 19 de maio. Um assassino a soldo, um escritor deprimido, uma estrela pop nigeriana: estas personagens e outras mais estão a bordo de um voo entre Paris e Nova Iorque quando um acontecimento não só muda as suas vidas como cria graves dilemas para o mundo — a perda aqui é da normalidade. Narrado por 11 vozes distintas, trata-se de um thriller que molha um pé na ficção científica e outro no comentário da sociedade contemporânea.
Já no domínio da não-ficção, em “Notas sobre o Luto”, Chimamanda Ngozi Adichie descreve a sua dificuldade em escrever sobre o pai, o académico James Nwoye Adichie, no “num tempo pretérito”. Depois desta morte súbita a 10 de junho de 2020, a escritora nigeriana procurou descrever em palavras uma experiência condenada a ser sempre intransmissível na sua totalidade. O resultado — que junta ao sentimento de devastação o do amor e admiração — foi editado pela Dom Quixote.
Ainda a registar este mês são os lançamentos de “O Homem do Casaco Vermelho”, de Julian Barnes (Quetzal), “O País dos Outros”, da escritora franco-marroquina Leïla Slimani (Alfaguara), “Os Invisíveis”, do norueguês Roy Jacobsen (Relógio d’Água) e “Quarteto de Havana - Volume I”, de Leonardo Padura (Porto Editora), que inclui os livros “Um Passado Perfeito” e “Ventos de Quaresma”. Ainda por sair estão “Os Altruístas”, de Andrew Ridker (Quetzal, a 20 de maio),"Grand Hotel Europa", do neerlandês Ilja Leonard Pfeijffer (Livros do Brasil, a 20 de maio) e “Amnistia”, do indiano Aravind Adiga (Porto Editora, a 27 de abril).
Quem conta um conto
Quando se pensa nos mestres argentinos da história breve, os nomes de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares devem ser sempre acompanhados pelo de Silvina Ocampo. Companheira de Casares e amiga íntima e colaboradora de Borges, a escritora e poetisa, apesar da influência que deixou no universo literário latino-americano, carecia de uma edição dos seus contos em Portugal. A Antígona retifica essa lacuna com “A Fúria e Outros Contos”, que agrupa 34 histórias, onde a crueldade humana e a inocência da infância confluem.
Outro autor por demais injustamente ignorado no nosso país é Robert E. Howard. Apesar da sua morte precoce aos 30 anos, o norte-americano foi a tempo de deixar uma marca indelével na literatura fantástica — basta pensar em Conan o Bárbaro, a sua mais famosa personagem. É ela que surge em grande destaque em “Os Contos mais Épicos de Conan”, coleção de contos ilustrada por 23 artistas nacionais numa edição de largo fôlego da Saída de Emergência — sendo um bom ponto de partida a quem queira transportar-se para a Era Hiboriana.
Da fantasia para a ficção-científica, a Relógio D’Água edita “Exalação”, marcando a estreia do norte-americano Ted Chiang neste canteiro à beira-mar plantado. Tido como um dos grandes nomes contemporâneo deste género literário, Chiang reúne aqui nove contos que juntam às temáticas futuristas questões acerca da moralidade, do poder da escolha ou da tragédia da condição humana, seja confrontando um comerciante de Bagdad com o seu passado, seja condenando a humanidade à crise existencial de um dia poder a descobrir como seriam realidades alternativas caso tivessem sido tomadas outras decisões.
Em língua portuguesa, depois de publicar “Florinhas de Soror Nada” em 2018, Luísa Costa Gomes regressa ao conto com 13 histórias à volta do mesmo tema: a água, ou, como a autora prefere caracterizá-los, contos que “metem água”. Em “Afastar-se”, com lançamento pela Dom Quixote, o bendito líquido surge de várias maneiras ao longo destas narrativas preparadas ao longo dos últimos cinco anos: seja a sua imensidão salgada num oceano, seja o seu abraçar confortável do chuveiro.
A água tem o potencial para construir e nutrir, mas também para destruir sem apelo nem agravo. E se é de “Devastação” que se fala, o escritor e crítico literário Eduardo Pitta dedica o seu mais recente volume de contos a isso mesmo: às temáticas da derrota, das vidas arrasadas pelas circunstâncias. Depois da reedição de Persona — publicado originalmente em 2001 — a Dom Quixote publica este volume a 25 de maio, onde as consequências funestas tocam a todas as personagens.
Por fim, já fora da área do conto, mas bem assente ainda da coletânea antológica, fale-se de António Martinho do Rosário — conhecido pelo seu pseudónimo literário Bernardo Santareno. Médico, opositor ao Estado Novo, mas, acima de tudo, dramaturgo imortal da língua portuguesa, este é um dos gigantes em cujos ombros muitos se apoiam atualmente. A E-Primatur, que tem vindo a reeditar vários dos seus textos, compila-os agora numa generosa edição, “Teatro I - Obras Completas, Vol. I”, que agrupa desde “A Promessa”, de 1957, até “O Pecado de João Agonia”, editado em 1961. Torna-se assim num documento de referência para quem se queira iniciar na obra deste vulto da cultura nacional.
Consciência: animal, humana e do fim dos tempos
O que sente um animal submetido aos caprichos da atividade humana? Será todo ele instinto em bruto ou será dotado de senciência para sentir dor, prazer, medo e mágoa perante o que lhe é infligido? As temáticas da ética animal têm estado em foco na discussão quanto a uma atividade tão tradicional quanto polémica que é a tourada e “Touro Como Nós”, do biólogo Luís M. Vicente, pretende adensar ainda mais o debate. Mais do que cair nos chavões do senso comum e da crença, o seu pretexto é o de mostrar como é que um animal como o touro se sente numa perspetiva estritamente biológica — sai pela Pergaminho.
As capacidades sensoriais dos animais permanecem um enigma para nós, mas o mesmo podemos dizer das nossas. O cérebro humano permanece um quebra-cabeças irresolúvel e a cada geração de investigadores, novas descobertas são feitas quanto à sua natureza e potencial. Em “Uma História do Cérebro” — lançado pela Temas e Debates —, o cientista e historiador Matthew Cobb sintetiza esse percurso, ao mesmo tempo que — numa fase em que se cada vez mais equipara o cérebro a um computador — se debruça quanto ao que será o futuro e as limitações da neurociência. Ou seja, como nós próprios sermos capazes de nos avaliar.
Claro que, no que toca a avaliações, podemos alargar a análise apenas do cérebro a toda a existência que nos envolve, já que o facto de termos consciência faz-nos questionar quanto aos nossos limites e à própria razão de estarmos aqui. Publicado pela Desassossego, “Até ao Fim dos Tempos”, do físico norte-americano Brian Greene, é uma exploração de como vamos tentando dotar a nossa vida de significado — seja através da arte, da religião ou da ciência — perante o grande caos que é o universo.
Mas se toda esta temática parece demasiado densa e intimidante, regressemos ao presente, com os pés bem assentes na terra, e falemos do que nos afeta no quotidiano. São vários os livros de ensaios a serem lançados este mês, tocando nos temas da atualidade. Aqui, destaque-se “Sinta-se Livre”, de Zadie Smith. Neste vencedor do National Book Critics Circle Award — editado por cá pela Dom Quixote — a escritora britânica empresta dá largas à sua mente para pensar literatura, arte, política, racismo e os riscos das alterações climáticas, entre outros temas. Não esquecer que, no mesmo departamento, são também editados “Zonas de Baixa Pressão – Crónicas Escolhidas” — seleção de textos assinados por António Guerreiro no jornal Público, a sair a 20 de maio pelas Edições 70 — e “Ver é ser visto” — antologia de ensaios de Eduardo Lourenço, selecionados por Guilherme d’Oliveira Martins e com prefácio do do Cardeal José Tolentino de Mendonça.
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