Prólogo
Faz hoje vinte e seis anos que um homem chamado Aaron Nierling foi preso em sua casa no Oregon.
A maioria das pessoas conhecia Nierling como um cidadão íntegro. Tinha um emprego estável e era um marido e pai dedicado – um homem de família. Nunca tinha sequer recebido uma multa de estacionamento na vida. Nunca estivera certamente em apuros com a lei.
No entanto, após uma denúncia anónima, a polícia descobriu os restos mortais de Mandy Johansson, de vinte e cinco anos, atrás da porta trancada da oficina na cave de Aaron Nierling.
Ossos preservados de dezassete outras vítimas que tinham sido dadas como desaparecidas ao longo da última década foram também encontrados numa arca na cave. Durante a investigação policial, Nierling foi associado a pelo menos dez outros homicídios, ocorridos num período de mais de vinte anos, mas não foram encontradas quaisquer provas forenses que o confirmassem.
Nierling aceitou declarar-se culpado para escapar à pena de morte e encontra-se, atualmente, a cumprir dezoito penas perpétuas consecutivas num estabelecimento prisional de segurança máxima. A sua esposa foi também acusada de cumplicidade nos homicídios, mas suicidou-se na prisão antes de ir a julgamento.
A imprensa proclamou Aaron Nierling como um génio, que conseguiu esquivar-se eficazmente à polícia e ao FBI durante duas décadas até ser finalmente capturado. É excecionalmente carismático e encantador – quando o quer ser. É um narcisista e um psicopata, que provavelmente matou pelo menos trinta mulheres sem qualquer sinal de remorsos. É um louco. É um monstro.
É também o meu pai.
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Está alguém a observar-me.
Consigo senti-lo. Logicamente, não faz sentido alguém ser capaz de sentir o olhar de outra pessoa na nuca, mas, de alguma forma, consigo fazê-lo neste momento. É uma sensação de formigueiro que começa no meu couro cabeludo e se arrasta até à base do meu pescoço, descendo depois pela minha coluna.
Vim para este bar sozinha. Gosto de estar sozinha – sempre gostei. Sempre que tive opção, escolhi a minha própria companhia. Mesmo quando vou a um restaurante, mesmo quando estou rodeada pelo zumbido grave de outras pessoas a conversar entre si, prefiro sentar-me sozinha.
Diante de mim está a minha bebida preferida – um Old Fashioned. Nas noites em que não me apetece ir diretamente para casa, venho sempre ao Christopher’s. É escuro e anónimo, com fumo de cigarro entranhado nos balcões do bar. Está também geralmente bastante vazio e os empregados não são propriamente desagradáveis à vista. Às vezes, ocupo uma cabine, mas esta noite estou sentada ao balcão, de olhos fixos na minha bebida, a ver o único cubo de gelo desintegrar-se lentamente enquanto o formigueiro na minha nuca se intensifica.
Oiço vagamente a gritaria vinda da televisão em pano de fundo. Na maior parte das vezes, está a ser transmitido um jogo.
Mas esta noite está a dar um concurso. O rosto do apresentador enche o ecrã enquanto lê uma pergunta do cartão à sua frente.
Que amigo de Charles de Gaulle foi primeiro-ministro de França durante grande parte dos anos 1960?
Viro-me, tentando apanhar em flagrante seja quem for que tem estado a observar-me. Não tenho sorte. Há pessoas nas minhas costas, mas ninguém a olhar para mim. Ou, pelo menos, ninguém a olhar para mim neste momento.
Provavelmente é algo inocente. Talvez um homem a pensar em oferecer-me uma bebida. Ou alguém que me reconhece do trabalho.
Não quer dizer que seja alguém que sabe quem eu realmente sou. Nunca é. Devo apenas estar paranoica esta noite por ser o vigésimo sexto aniversário do dia em que toda a minha vida mudou.
O dia em que descobriram o que havia na nossa cave.
– Tudo bem, doutora?
O barman está inclinado para mim, os antebraços musculados apoiados no balcão ligeiramente pegajoso. É um empregado novo – só o vi um par de vezes. É ligeiramente mais velho do que o último, talvez trinta e muitos anos, como eu.
Puxo a gola do meu pijama cirúrgico verde. Foi por causa dele que me começou a tratar por «doutora». Na verdade, foi um palpite certeiro – sou cirurgiã geral. Por ser mulher, a maioria das pessoas vê o pijama cirúrgico e pensa que sou enfermeira, mas ele apostou em médica.
O meu pai deve estar orgulhoso, se souber. Sejam quais forem os sentimentos ou emoções que é capaz de sentir, o orgulho é certamente um deles – isso ficou claro no seu julgamento. Sempre quis ser cirurgião, mas não teve notas para isso. Talvez se o tivesse conseguido, isso o tivesse impedido de fazer as coisas que acabou por fazer.
– Estou ótima – passo o dedo pela orla do meu copo. – Simplesmente ótima.
Ele arqueia uma sobrancelha.
– Como está a bebida? Como me saí?
– Bem.
É um eufemismo. Preparou-a na perfeição. Vi-o colocar o cubo de açúcar no fundo do copo – não se limitou a verter uma saqueta na bebida, como vi outros empregados de bar fazer. Pôs exata- mente a quantidade certa de licor amargo. E não tive de lhe dizer para não usar água com gás.
– Tenho de lhe admitir – começou ele –, não esperava que pedisse um Old Fashioned. Não parece o seu género.
– Hum – tento manter qualquer interesse longe da minha voz, para que se afaste e me deixe em paz. Nunca me devia ter sentado ao balcão. Mas, para ser justa, os empregados aqui raramente são assim tão conversadores.
Ele abre um sorriso desarmante.
– Pensei que ia pedir um Cosmopolitan ou um vinho com limonada ou algo assim.
Mordo a bochecha para me impedir de responder. Adoro um bom Old Fashioned. É a minha bebida desde que tinha vinte e um anos, talvez até um pouco antes, para ser sincera. São escuros e inebriantes, um pouco doces e um pouco amargos. Enquanto bebo um trago da minha bebida, a minha irritação com o barman conversador evapora-se.
– Enfim – lança-me um último longo olhar. – Grite se precisar de mais alguma coisa.
Vejo-o afastar-se. Por uma fração de segundo, permito-me apreciar os músculos enxutos que sobressaem sob a sua T-shirt. É atraente de uma forma não ameaçadora, com o cabelo castanho-claro e uns suaves olhos castanhos. A penugem no seu rosto não é suficiente para ser considerada uma barba. É muito genérico – o tipo de sujeito que não se escolheria numa fila de suspeitos. Um pouco como o meu pai era.
Começo a contar pelos dedos o número de meses desde que tive um homem em minha casa. Depois, começo a contar os anos. Na verdade, podemos estar a entrar no território das décadas. Perdi a conta, o que é, por si só, perturbador.
Mas não estou interessada num encontro, nem com o barman atraente nem com ninguém. Há muito que decidi que os relacionamentos deixariam de fazer parte da minha vida. Houve um tempo em que isso me deixava triste, mas agora aceitei que é melhor assim.
Ergo novamente a minha bebida e faço rodopiar o líquido. Ainda tenho aquela sensação arrepiante na nuca, como se alguém me estivesse a observar. Mas talvez não seja real. Talvez esteja tudo na minha cabeça.
Vinte e seis anos. Mal consigo acreditar que foi há tanto tempo.
O apresentador do concurso no ecrã interrompe os meus pensamentos, arrancando-me o olhar da bebida.
Que assassino em série era geralmente conhecido como o Mãozinhas?
O barman olha para o ecrã e responde espontaneamente:
– Aaron Nierling.
O meu pai é uma resposta de concurso esta noite. Pode ser devido ao aniversário do seu encarceramento, mas é mais provável que seja uma coincidência. Por mais anos que passem, o que ele fez nunca será esquecido. Pergunto-me se estará a ver. Costumava gostar de concursos. Ser-lhe-á permitido ver televisão lá dentro? Não sei bem o que o deixam fazer na prisão. Não falo com ele desde que a polícia o levou.
Apesar de me escrever uma carta todas as semanas.
Afasto da cabeça quaisquer pensamentos sobre o meu pai enquanto bebo um trago da minha bebida, deixando que a agradável sensação de calor me invada. O barman está a limpar o balcão do outro lado do bar, os músculos fletidos debaixo da sua T-shirt. Olha fugazmente para mim – e pisca-me o olho.
Hum. Talvez a minha autoimposta abstinência não seja assim tão boa ideia. Matar-me-ia divertir-me por uma noite? Vestir outra coisa além de pijamas cirúrgicos? Ou deixar o meu cabelo preto solto, em vez de o prender num puxo apertado que faz os meus folículos pilosos gritar de agonia?
– Doutora Davis? É a senhora?
Ao ouvir a voz nas minhas costas, a agradável sensação de calor do uísque desaparece instantaneamente. Tinha razão. Estava mesmo alguém a observar-me. Quem me dera ter estado enganada só desta vez. Tudo o que queria era um pouco de sossego esta noite.
Durante dois segundos, pondero não me virar. Fingir que não sou realmente a Dra. Nora Davis. Que sou outra senhora de pijama cirúrgico verde que, por casualidade, é parecida com a Dra. Nora Davis.
Mas ao menos não me chamou Nora Nierling. Ninguém me chama isso há muito, muito tempo. E pretendo manter as coisas dessa forma.
O homem atrás de mim ronda os cinquenta anos e é baixo e corpulento. É quase de certeza um paciente. Não me lembro do nome, mas lembro-me de tudo o resto a seu respeito. Deu entrada no hospital com febre e dores abdominais. Foi diagnosticado com uma colecistite – uma infeção na vesícula. Tentámos removê-la laparoscopicamente com câmaras, mas, a meio do processo, tive de passar para uma cirurgia aberta. É assim que sei que, se erguesse a camisa sobre a barriga saliente, haveria uma cicatriz diagonal a atravessar-lhe a parte superior do abdómen do lado direito. Bem sarada, por esta altura, estou certa.
– Doutora Davis! – o homem sorri, exibindo uma fila de dentes amarelos e ligeiramente apodrecidos. – Estava a olhar para aqui e não tinha a certeza, mas... É mesmo a doutora. Oh, céus, não esperaria encontrá-la num sítio destes.
O que faz uma rapariga simpática como a senhora num sítio destes? Ao menos, não comentou o meu Old Fashioned.
– Sim, bem – murmuro.
Quem me dera que me dissesse como se chama. Sinto-me em clara desvantagem. Tenho uma excelente memória para muitas coisas – podia desenhar todos os vasos sanguíneos que abastecem o intestino de olhos fechados –, mas não é o caso com o nome das pessoas. Vasculho as profundezas do meu cérebro, mas não encontro nada.
– Ei, companheiro! – grita o homem ao barman. – A bebida da doutora Davis é por minha conta! Esta senhora aqui salvou-me a vida!
– Deixe estar – murmuro. No entanto, é demasiado tarde. Este paciente anónimo está já a pôr-se à vontade no banco ao lado do meu, apesar de eu sentir que a falta de maquilhagem e o pijama cirúrgico a apenas um tamanho de distância de parecer um saco de batatas não convidam à companhia.
– Foi ela que me fez isto! – anuncia, erguendo a orla da camisa.
Tem a barriga coberta por um emaranhado de pelo escuro, mas ainda é possível ver a ténue cicatriz no sítio onde o cortei. Tal como me recordo. – Um bom trabalho, certo?
Esboço um sorriso.
– É uma verdadeira heroína, doutora Davis – diz. – Quer dizer, estava tão doente...
E começa então a contar orgulhosamente a história a todos os que conseguem ouvir. De como eu lhe salvei a vida. Eu diria que é discutível. Sim, fui eu quem lhe removeu a vesícula infetada. Mas poder-se-ia argumentar que ele podia ter-se saído igualmente bem com antibióticos intravenosos e um dreno colocado por radiologia interventiva. Não lhe salvei necessariamente a vida.
Ainda assim, este homem não está disposto a deixar-se dissuadir. E é certo que realizei a cirurgia com sucesso, e que recuperou por completo e parece bastante saudável, exceto na dentição.
– Muito impressionante – observa o barman, enquanto o paciente mistério termina o relato alargado dos meus feitos. Um sorriso divertido brinca-lhe nos lábios. – É uma verdadeira heroína, doutora.
– Sim, bem – acabo o resto do meu Old Fashioned. – É o meu trabalho.
Levanto-me tropegamente do meu banco. Se alguém me estivesse a observar, poderia interrogar-se sobre se eu não estaria demasiado bêbeda para conduzir. Mas a razão por que estou trémula não tem nada a ver com o álcool.
Faz hoje vinte e seis anos. Às vezes, parece que foi ontem.
– Vou andando – sorrio educadamente ao meu antigo paciente. – Obrigada pela bebida.
– Oh – o rosto do homem esmorece, como se esperasse que eu ficasse ali mais uma hora a falar sobre a sua vesícula infetada. – Vai mesmo embora?
– Temo que sim.
– Mas... – olha para o meu copo vazio e bate com os dedos atarracados no balcão. – Pensei que podia pagar-lhe outra bebida. Talvez um jantar. Como agradecimento, sabe?
E, então, lembro-me de outro pormenor sobre este homem. Ao agradecer-me, na sua consulta de seguimento, pôs a mão no meu joelho. Deu-lhe um apertão antes de se afastar. Fez um excelente trabalho, doutora Davis. Claro que continuo a não me conseguir lembrar do seu maldito nome.
– Não é necessário – respondo. – A sua companhia de seguros já me pagou.
Ele coça o pescoço, uma pequena mancha vermelha inflamada devido ao barbear. Tenta ressuscitar o seu sorriso.
– Vá lá, doutora Davis... Nora. Uma mulher bonita como a senhora não devia estar sozinha num bar.
O sorriso educado desaparece dos meus lábios.
– Estou bem, muito obrigada.
– Vá lá – pisca-me o olho. Vejo agora que um dos seus incisivos podres está castanho-escuro, quase preto. – Vai ser divertido. Merece uma noite agradável.
– Mereço, sim – ponho a bolsa ao ombro. – E é por isso que vou para casa.
– Acho que devia reconsiderar – tenta agarrar o meu braço, mas eu sacudo-o. – Podíamos passar um bom bocado, Nora.
– Tenho sérias dúvidas disso.
Toda a simpatia desaparece do seu rosto. Semicerra os olhos ao olhar para mim.
– Oh, estou a ver. É demasiado boa para passar cinco minutos num bar a ter uma conversa com um dos seus pacientes.
Os meus dedos apertam-se sobre a alça da minha bolsa. Bem, isto agravou-se depressa. Terei de dizer à Harper para se certificar de que este homem é banido do consultório. Oh, esperem, não posso. Continuo a não saber como se chama.
– Com licença – a voz severa do barman interrompe a nossa conversa. – Doutora, este homem está a incomodá-la?
Henry Callahan. É esse o seu nome – surge como um pontapé nos dentes. Solto um suspiro de alívio.
Callahan olha para o barman, vendo a sua altura, bem como os músculos dos seus antebraços e os bíceps. Franze o sobrolho.
– Não, estou mesmo de saída.
– Ótimo.
Consegue acertar-me no ombro ao cambalear porta fora.
Pergunto-me quantas bebidas terá tomado antes de me abordar. Provavelmente demasiadas – sabe-se lá se se lembrará sequer disto na manhã seguinte.
Henry Callahan. Amanhã bem cedo, tenho de dizer à Harper. Não é mais bem-vindo no meu consultório.
Olho para o meu copo vazio. Parece que o velho Henry nunca me chegou a pagar a tal bebida, afinal. Levo a mão à bolsa para a pagar eu mesma, mas o barman abana a cabeça.
– É por conta da casa – diz.
– Gostaria de pagar – protesto, espetando o queixo.
– Bem, eu gostaria de pagar uma bebida a uma mulher que salvou a vida a um homem.
Os suaves olhos castanhos do barman mantêm-se fixos nos meus. A expressão no seu rosto é estranhamente familiar. Já terei visto este homem antes?
Olho-o fixamente, perscrutando as suas feições genericamente atraentes, tentando situá-lo. Não pode ter sido um paciente. É muito mais novo do que a maioria das pessoas que vejo e eu lembro-me de todos aqueles que levo à faca – como Henry Callahan – ainda que não consiga recordar os seus nomes de imediato.
Conhecemo-nos? Tenho a pergunta na ponta da língua, mas não a faço. Provavelmente estou enganada. Foi uma noite estranha, no mínimo. E não há nada que eu deseje mais do que ir para casa.
– Está bem – acabo por concordar. – Obrigada pela bebida. Ele inclina a cabeça para o lado.
– Vai ficar bem? Quer que a acompanhe ao carro?
– Vou ficar ótima – respondo.
Olho para o parque de estacionamento do bar. O meu carro está estacionado mesmo por baixo de um candeeiro de rua, a poucos passos de distância. Vejo Henry Callahan entrar no seu próprio carro – um pequeno Dodge azul com uma grande amolgadela no para-choques traseiro. Os meus ombros relaxam ao vê-lo arrancar.
A insidiosa sensação na minha nuca desapareceu, mas foi substituída por uma ligeira sensação de náusea. Faço os possíveis para a afastar. Não estou preocupada com Henry Callahan. Depois das coisas que vi na vida, não há muito que me possa abalar.
Mas, mesmo assim, deixo-me ficar no bar por mais alguns minutos, para ter a certeza de que partiu.
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