O jornal El País escreveu que este romance é “a metáfora justa para a nossa maior ferida: a que divide o mundo entre aqueles que vivem para si mesmos e os que vivem para os outros”.

Esta frase resume a essência de “Limpa”, a mais recente obra de Alia Trabucco Zerán, considerada uma das vozes mais promissoras da literatura sul-americana e da literatura contemporânea em língua espanhola, publicada agora em Portugal pela Elsinore.

Neste romance, a autora explora os sentimentos contraditórios e as complexas relações de poder que se estabelecem entre dois mundos diferentes unidos debaixo do mesmo teto, através da história de uma mulher que vai trabalhar como empregada interna para um casal abastado na capital chilena.

“Tudo se resume a saber quem limpará quem”, escreveu Albert Camus em “A queda”, uma frase que Alia Trabucco Zerán usa no início do livro, para confrontar o leitor com a distinção de classes e diferenças de tratamento, direitos, liberdades e privilégios vividos dentro de uma mesma casa, que testemunhará ao longo de todo o romance.

Alia Trabucco Zerán
créditos: Elsinore

A voz do livro é só uma, a da empregada. É ela quem conta a história, numa situação que se presume desde início ser a de um depoimento prestado numa prisão, onde está fechada sem ver ninguém, apenas a ser ouvida.

“Chamo-me Estela, estão a ouvir? Eu disse: Es-te-la-Gar-cí-a”. Esta é a primeira frase do livro e a primeira informação dada. A segunda informação, que é também o desfecho da história, é que “a menina morre”, sendo esta menina a filha do casal para quem trabalhava.

O romance apresenta-se, pois, como uma tragédia, porque, como diz a certa altura um dos intervenientes na história, “o que define uma tragédia é que sabemos sempre como acaba”.

“É curioso o facto de que todos iremos morrer, não acham?”, pergunta Estela, acrescentando depois que “só duas perguntas ficam por responder: como e quando”.

São essas respostas que o leitor persegue enquanto acompanha a descrição do rol de acontecimentos que se sucedem na casa, ao longo de sete anos.

Esse é o período de tempo que passa entre a contratação de Estela, quando a patroa, Mara Lopez, ainda estava grávida, até à morte de Júlia, a criança de quem Estela se tornou ama.

Enredada num dia-a-dia de tarefas domésticas, Estela sente-se confundida com a sua profissão e ultrapassada pelas suas funções, o único motivo por que os patrões se dirigem a ela, vestida invariavelmente com as mesmas batas todos os dias e sendo tratada pela criança de quem cuida como “babá”.

Os nomes são, por isso, muito importantes para esta mulher, que chega a questionar-se sobre se “as coisas se transformariam ao perderem os seus nomes, tal como se transformam quando os ganham. Dizer patroa, dona, dizer chefe, proprietária. Dizer empregada, babá, serviçal, criada”.

“Os nomes são importantes. Os teus amigos não têm nome, Lita? Chamas-lhes rapariga, rapaz? Chamas animal à vaca?”, questiona a certa altura a mãe de Estela.

São estas pequenas feridas emocionais, estas subtis agressões psicológicas, que se vão abrindo em Estela, que chega a afirmar: “Se calhar somos isso quando nascemos, nunca me tinha ocorrido, somos uma enorme cicatriz que antecede as que virão depois”.

Gradualmente, Estela vai mergulhando numa solidão e num silêncio profundos, à medida que se vai afastando da sua família para viver dedicada a outra família, que, apesar de nunca a tratar mal, não lhe dedica a importância que se dá a uma pessoa. É alguém que cumpre tarefas.

A família para quem trabalha esconde, por detrás de uma aparência de sucesso, profissional e social, de escolhas de bons colégios e muitas atividades extra escolares para a filha, uma realidade bem diferente: “uma menina infeliz, uma mulher que vive das aparências e um homem calculista”.

“Imagino que estejam a interrogar-se por que razão ali fiquei.(…) A minha resposta é a seguinte: porque é que os senhores ficam nos vossos trabalhos, nos vossos escritórios minúsculos, nas fábricas, nas lojas, do outro lado desta parede?”, pergunta Estela a quem a ouve.

Esta rotina de que fala, que se estende por “todo o comprimento e largura de uma vida” vai acabar por conduzir a um mal-estar crescente e à tragédia da morte de Júlia, expondo os ódios de classe sob a forma de preconceitos sociais enraizados.

“A vida tem tendência a ser assim: uma gota, uma gota, uma gota, uma gota, e depois perguntamos, perplexos, porque é que estamos encharcados”, diz a protagonista.

Como pano de fundo destes dias finais, e como cenário em que a própria protagonista se verá envolvida, após a morte da criança, estão os protestos contra a desigualdade social que ocorreram no Chile, em 2019, que levaram milhares de pessoas à rua, naquela que foi a maior manifestação desde a queda do ditador Augusto Pinochet, em 1990.

Alia Trabucco Zerán, que a revista Babelia considera “uma nova referência da literatura chilena”, nasceu em Santiago do Chile, em 1983, estudou Direito na Universidade do Chile e Literatura Hispano-americana no University College de Londres.

O seu romance “La Resta”, de 2015, considerado pelo jornal El País uma das estreias literárias mais importantes desse ano, foi finalista do prémio Man Booker International e recebeu o Premio Mejor Novela Inédita del Ministerio de las Culturas de Chile.

O seu livro seguinte, “Las Homicidas”, foi vencedor do prémio da British Academy, em 2022, ano em que a autora foi também galardoada com o prémio Anna Seghers.

“Limpa”, a sua mais recente obra, é a primeira publicada em Portugal e está em tradução em mais de 13 idiomas.