
Introdução
Em 2025, 640 anos depois de o pó ter assentado no Campo de São Jorge, a Batalha de Aljubarrota continua a gerar fascínio e admiração. E não é caso para menos. Afinal, uma batalha campal — um acontecimento já de si raro durante o período medieval — veio a ter um desfecho decisivo ao ponto de alterar definitivamente o rumo da História, não só da Península Ibérica, mas também do próprio mundo. Basta pensar que, caso a sorte das armas não tivesse estado do lado de D. João I e Nuno Álvares Pereira nessa tarde de 14 de Agosto de 1385, dificilmente se poderia imaginar a sobrevivência de Portugal enquanto reino plenamente independente. E aí reside a ideia que deu origem a este livro: como se explica, no seu tempo e espaço, um acontecimento de tal magnitude? Nas páginas que se seguem esperamos responder a esta questão, desde logo enquadrando o desfecho de Aljubarrota no seu contexto mais próximo: a Crise de 1383-1385, um período de convulsões políticas e sociais iniciado com a morte de D. Fernando I, que levou ao eclodir de uma guerra civil e a uma invasão castelhana, apenas para ser encerrado com a eleição de D. João I como rei nas Cortes de Coimbra e com a vitória sobre Juan I de Castela em Aljubarrota. No final, apenas o leitor nos poderá dizer se fomos bem-sucedidos.
Em termos práticos, este livro divide-se em quatro partes distintas, mas intimamente interligadas, tendo por fio condutor os acontecimentos em Portugal nos finais do século XIV. Embora as ligações entre capítulos convidem à leitura do conjunto, cada um deles é autónomo e pode ser lido em separado. Note-se que cada capítulo foi escrito por um historiador, português ou espanhol, especialista no assunto em questão e que aceitou o desafio de condensar, em pouquíssimas páginas, assuntos complexos e desafiantes. A primeira parte desta obra fornece o contexto para tudo o que se segue, com capítulos dedicados ao Interregno de 1383-1385, à aliança entre Portugal e Inglaterra, ao contexto mais vasto da Guerra dos Cem Anos e o seu impacto na Península Ibérica, bem como ao posicionamento político da nobreza e dos concelhos face aos acontecimentos da época. A segunda parte aborda alguns dos protagonistas da Crise de 1383-1385, conferindo uma faceta humana a personagens que, de tão longínquas, por vezes ascendem ao patamar de mito. Aqui o leitor encontrará capítulos dedicados a D. João I de Portugal e Juan I de Castela, os dois principais candidatos ao trono português, à infanta D. Beatriz e a Leonor Teles, duas protagonistas femininas frequentemente esquecidas, bem como ao condestável Nuno Álvares Pereira, o principal obreiro do sucesso militar português nesse período. Na terceira parte o leitor tem ao seu dispor os aspectos militares da Crise de 1383-1385, com capítulos dedicados às formas como se fazia a guerra, tanto em terra como no mar, como os exércitos eram formados e as armas que usavam, além, claro, de um estudo detalhado da Batalha de Aljubarrota propriamente dita. Por fim, a quarta parte lida com as repercussões deste conflito, quer em Portugal, quer em Castela, bem como com alguns dos mi- tos que, ao longo dos séculos, foram envolvendo a mais famosa das batalhas medievais portuguesas.
Para concluir, resta-nos agradecer a todos aqueles que aceitaram, com entusiasmo e dedicação, juntar-se a nós, coordenadores, no retomar das hostilidades em torno da Batalha de Aljubarrota: aos autores, que gentilmente partilharam connosco o seu tempo e o seu vasto conhecimento, permitindo a criação deste livro destinado ao grande público, e à equipa da Saída de Emergência, que desde a primeira hora manifestou tanto interesse pela ideia deste livro quanto os próprios coordenadores. A todos, o nosso mais sincero obrigado.
Paulo M. Dias e João Nisa
I. A crise de 1383-1385
1. O interregno e as cortes de coimbra de 1385
Mário Farelo
Lisboa, 22 de outubro de 1383: um dia fatídico que marcaria profundamente a História de Portugal. Foi nesta data que D. Fernando I, rei de Portugal, sucumbiu a uma doença de natureza incerta, que o debilitara de forma intermitente nos derradeiros anos de vida.
A morte do monarca e a questão da sua sucessão não eram novidade em Portugal, pois, desde D. Afonso Henriques, o reino assistira a oito mudanças de reinado. Contudo, esta nona transição assumia contornos muito distintos. Em vez da habitual mobilização da Corte régia e dos ha- bitantes dos burgos para as celebrações litúrgicas em honra da alma do falecido monarca, as cerimónias fúnebres de D. Fernando I foram marca- das pela simplicidade e pela ausência de pompa. O cronista Fernão Lopes relata que «pouca gente» participou no cortejo que transportou o corpo do monarca pela cidade de Lisboa, desde o Paço da Alcáçova, onde provavelmente terá falecido, até ao Convento de São Francisco. As exéquias e o sepultamento ocorreram, segundo o cronista, de forma «muito simpresmente», destoando das práticas que «pertencia a estado de rei», seja pela possível deterioração física do soberano, derivada da doença, seja pela má vontade dos lisboetas, desgostosos com os rumos do governo de D. Fernando I, em virtude da crescente influência da rainha D. Leonor Teles e da sua proximidade com João Fernandes de Andeiro, a quem concedera múltiplas doações.
Aliás, uma sucessão como esta era inédita na História de Portugal, uma vez que o rei deixou como única herdeira a sua filha D. Beatriz, com apenas 10 anos, nascida da sua união com D. Leonor Teles e casada com o rei castelhano Juan I, motivo pelo qual residia, então, em Castela. Era a primeira vez que a sucessão ao trono português recaía sobre uma mulher. Diferentemente de França, onde a Lei Sálica proibia formalmente a sucessão feminina, em Portugal, apesar de a tradição favorecer o primogénito masculino legítimo, as irmãs não eram excluídas da linha sucessória na ausência de herdeiros do sexo masculino.
Mais do que da legitimidade de D. Beatriz para ascender ao trono, as tensões internas verificadas no reino resultaram da sua condição de rainha consorte de Castela e do receio de que Portugal pudesse ser subordinado aos interesses castelhanos. Essa situação gerou fortes apreensões entre os portugueses, fomentando divisões internas e incertezas que moldariam profundamente o período subsequente.
A historiografia atribuiu diversas designações a este último, dependen- do da ênfase dada à descontinuidade do poder régio e às questões da su- cessão dinástica (Interregno, Crise Dinástica) ou às transformações sociais que este momento precipitou (Revolução). Independentemente da designação adotada, é inegável que o intervalo entre a morte de D. Fernando I (22 de outubro de 1383) e a proclamação de D. João, Mestre de Avis, como rei, nas Cortes de Coimbra (6 de abril de 1385), representou um dos períodos mais críticos da história medieval portuguesa, marcado pela redefinição da autoridade real e pelo reposicionamento das principais instituições de poder — a nobreza, os concelhos, as ordens militares e a Igreja — na estrutura política do reino.
A reconstituição dos factos históricos desse período apoia-se em fontes específicas, como os tratados assinados entre Portugal e Castela durante o governo fernandino ou o Auto de eleição de D. João I, assim como os inúmeros diplomas régios preservados nos registos de chancelaria da Coroa portuguesa. Contudo, grande parte do conhecimento (e, em muitos casos, da interpretação) que temos sobre as movimentações políticas, diplomáticas e militares dessa época provém das crónicas redigidas por Fernão Lopes, guarda-mor da Torre do Tombo, no segundo quartel do século XV. Apesar do cuidado que este autor demonstrou em articular a sua prosa com os dados retirados de testemunhos orais e de fontes escritas, é importante lembrar que escrevia sob os auspícios da nova dinastia de Avis, com o objetivo de exaltar os feitos e a legitimidade dos seus fundadores.
Antes de seguirmos D. Beatriz no seu período de luto, torna-se essencial uma breve análise dos antecedentes políticos desse momento, de forma a contextualizar e estabelecer as premissas que moldaram os acontecimentos decisivos em Portugal ao longo do ano e meio seguinte à morte do rei seu pai.
OS ANTECEDENTES
Nos últimos anos de reinado, D. Fernando i foi acometido por uma doença cíclica e debilitante cuja natureza permanece incerta. A investigação histórica não conseguiu identificar com precisão essa enfermidade, sendo o envenenamento ou a tuberculose pulmonar as principais hipóteses debatidas entre especialistas. Contudo, mais relevante do que determinar a causa exata da doença são os seus profundos efeitos no exercício do poder.
Esta enfermidade comprometeu de forma significativa os últimos anos de D. Fernando I. Um episódio particularmente grave ocorreu entre o final de 1377 e o início de 1378, quando o monarca, ao que tudo indica, esteve, em estado crítico, à beira da morte. Doravante, o rei centrou as suas deslocações num território reduzido, delimitado pelas cidades de Lisboa, Coimbra e Évora, que se revelou especialmente prejudicial para o normal funcionamento da administração do reino.
Ao contrário dos reis passados, sobretudo do pai, D. Pedro I, o monarca abdicou de um dos elementos mais importantes do governo régio, a constante itinerância, e muito provavelmente, de alguma participação di- reta na tomada de decisões políticas. Simultaneamente, observa-se o crescente protagonismo da rainha D. Leonor Teles, que passou a acompanhar o rei de forma constante e a assumir, gradualmente, um papel cada vez mais ativo na governação. Do ponto de vista externo, a fragilidade do rei tornava ainda mais delicada a gestão das relações políticas com as restantes monarquias ibéricas e, em termos internacionais, com o posicionamento da Coroa face à divisão da Igreja Católica em duas obediências — a do Papa de Roma e a do Papa de Avinhão —, no âmbito da crise eclesiástica conhecida como o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417). Sabendo que da segunda resultou um posicionamento titubeante, com D. Fernando I a oscilar entre a obediência avinhonense e a romana, importa esclarecer a primeira, ou seja, o que conduziu ao casamento da herdeira do trono português com o monarca castelhano. Um tal desiderato obriga a apresentar, ainda que de forma bastante breve, um conjunto de ações político-diplomáticas iniciadas desde os primeiros anos do reinado de D. Fernando I.
A morte do rei castelhano D. Pedro I, em 1369, assassinado pelo seu irmão Enrique de Trastâmara, deu início a uma disputa pelo trono de Castela. D. Fernando I, ao reivindicar os seus direitos ao trono com base na sua condição de bisneto de Sancho IV de Castela, declarou guerra ao assassino do rei castelhano, com o apoio dos reinos de Aragão e de Granada.
O rei português passou rapidamente à ofensiva, liderando uma expedição militar à Galiza, durante a qual foi bem recebido na Corunha e recebeu o apoio de várias cidades da Galiza, de Leão e da Andaluzia. No entanto, perante a incapacidade do exército fernandino para resistir à reação militar de Enrique II, da qual resultou uma investida por terras portuguesas marcada pela tomada de Braga e pelo cerco a Guimarães, as forças portuguesas foram forçadas a recuar. Por intervenção papal, as duas partes aceitam a paz, sob a forma da assinatura do Tratado de Alcoutim (31 de março de 1371). Este tratado envolveu o compromisso do monarca português em casar com Leonor, filha do rei de Castela, e em alinhar-se politicamente com o reino de França.
Contudo, a paz seria de pouca dura. O casamento secreto de D. Fernando I com Leonor Teles, nesse mesmo ano, e a sua posterior união pública, em 1372, violaram as condições do Tratado de Alcoutim. De igual modo, D. Fernando I decidiu-se por um afastamento de Castela e por uma aproximação a Inglaterra, com a qual viria a celebrar um acordo, o Tratado de Tagilde (10 de julho de 1372). Daí a uma nova intervenção militar de Enrique II foi um passo. Esta segunda guerra fernandina (1372-1373) iniciou-se na Beira e teve como ponto mais marcante o cerco à cidade de Lisboa. Dada a incapacidade de Portugal para resistir efetivamente e a dificuldade de as tropas castelhanas avançarem em território inimigo, as partes optaram por um acordo de paz, assinado em Santarém, em 19 de março de 1373, uma vez mais sob mediação papal.
Seguiu-se um período de apaziguamento, durante o qual D. Fernando I promoveu um «vasto programa de reconstituição nacional» (na expressão de Sérgio da Silva Pinto), ao nível do desenvolvimento da agricultura, da atividade naval e do reforço das estruturas de defesa de várias cidades e vilas do reino, entre outros aspetos.
A morte de Enrique II, em 1379, marcou o início de um novo período de instabilidade. D. Fernando I aproximou-se, mais uma vez, da Inglaterra, comprometendo-se a declarar guerra a Castela. Por sua vez, o novo rei castelhano, Juan I, posicionou as suas tropas na fronteira portuguesa, o que originou a reativação do conflito armado, em maio de 1381, com a Coroa portuguesa a beneficiar do apoio inglês. A terceira guerra fernandina desenvolveu-se num contexto de agravamento da saúde de D. Fernando I, o qual se deteriorou a partir de maio de 1382. É altamente provável que a fragilidade física do monarca e a crescente necessidade de garantir a sucessão tenham acelerado a busca por uma solução pacífica. Assim, foi assinado secretamente um novo acordo, o Tratado de Elvas, em 10 de agosto de 1382. De acordo com as suas disposições, a infanta D. Beatriz foi prometida a um novo noivo, D. Fernando I, mais tarde conhecido como de Antequera, segundo filho de Juan I de Castela.
No entanto, quis o destino que a sorte de D. Beatriz tomasse outro rumo. Em setembro desse ano, faleceu a rainha de Castela, D. Leonor. Segundo Fernão Lopes, a ideia de casar D. Beatriz com o monarca castelhano, agora viúvo, partiu do próprio D. Fernando I. Parece estranha a estratégia do monarca em querer abrir a porta à intervenção direta de Castela na Coroa portuguesa. É provável que ele visse em Juan I o melhor defensor dos direitos sucessórios da sua filha D. Beatriz, especialmente face às ambições dos seus meios-irmãos D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro I e D. Inês de Castro, que, neste final de reinado, se apresentavam como verdadeiros rivais do rei português. Sintomático desta rivalidade, D. Fernando I havia-os explicitamente declarado ilegítimos no seu testamento, em 1378, tornando-os, assim, incapazes de reivindicar legitimamente a Coroa portuguesa. Para selar essa nova união, foi assinado, em 2 de abril de 1383, um tratado em Salvaterra de Magos. Segundo as suas disposições, no caso de falecimento do rei, D. Leonor Teles assumiria a regência até que D. Beatriz alcançasse a idade para governar ou tivesse um filho. A Coroa portuguesa passaria para o rei castelhano se, cumulativamente, D. Fernando I não tivesse descendentes legítimos, D. Beatriz falecesse antes do seu marido e estes não tivessem filhos. Em qualquer uma dessas situações, os dois reinos permaneceriam sempre independentes entre si.
DA MORTE DE D. FERNANDO I ÀS CORTES DE COIMBRA (1383-1385)
Com o falecimento do monarca, em 22 de outubro de 1383, tornou-se urgente garantir a manutenção da lei e da ordem e, após o necessário período de luto, assegurar a continuidade da monarquia. Como o rei faleceu sem descendência masculina e sendo a sua única filha ainda menor, D. Leonor Teles assumiu a regência, conforme as disposições estabelecidas no referido Tratado de Salvaterra de Magos.
Não demorou para que a notícia do falecimento do monarca português chegasse a Castela. A catedral de Toledo foi o palco, provavelmente ainda durante o mês de novembro, das exéquias simbólicas organizadas pelo casal régio. Juan I e D. Beatriz, vestidos de preto, fizeram seu «dó» diante de um ataúde representando o monarca. Esse luto, porém, foi breve e fugaz, pois era necessário garantir a sucessão. Segundo Fernão Lopes, que descreve a cerimónia em poucas palavras, «no outro dia pela manhã», o casal régio retornou à Sé de Toledo, agora trajando mantos de pano «de ouro» forrados de arminho. Ao fim daquele dia, D. Beatriz havia sido aclamada rainha de Portugal.
Entretanto, a situação portuguesa deteriorou-se rapidamente. As duas opções de sucessão ao trono, então em discussão, não satisfaziam as aspirações de grande parte da população. Por um lado, a regência de D. Leonor Teles, cada vez mais próxima do Conde Andeiro, gerava desconfiança. Embora ela tivesse tentado conquistar a simpatia de algumas elites do reino, nomeadamente as de Lisboa — oferecendo a entrada de oligarcas das principais cidades no Conselho Régio ou reforçando a legislação antijudaica —, a sua liderança indicava uma maior intervenção da família Teles de Meneses no governo. Por outro lado, D. Beatriz e o seu marido, legitimados como reis de Portugal, ofereciam pouca segurança no que respeita à independência do reino, conforme fora estabelecido pelos tratados luso-castelhanos assinados durante o reinado fernandino.
A possível perda de autonomia para Castela gerou resistência à aclamação de D. Beatriz em vários centros urbanos, como Lisboa, Elvas e Santarém. Motivado pela defesa dos interesses sucessórios da sua mulher — e provavelmente pelo eventual apoio prestado por membros do grupo nobiliárquico adversário de D. Leonor Teles e do Conde Andeiro —, Juan I passa à ofensiva, entrando em Portugal nos meados de dezembro, abrindo-se-lhe, desde logo, a cidade da Guarda. Perspetivando essa manobra como um atentado à sua regência, D. Leonor consagrou as suas energias a promover a defesa do reino.
Foi neste contexto de crescente instabilidade que ocorreu um evento decisivo. Após uma conspiração meticulosamente organizada por nobres poderosos, importantes oficiais da burocracia régia e outros descontentes com a influência de D. Leonor Teles, João Fernandes de Andeiro, favorito da regente, foi assassinado no dia 6 de dezembro de 1383, pelas mãos de D. João, Mestre de Avis e meio-irmão do falecido rei. Sob o pretexto de que o responsável pela morte do Conde Andeiro estava sob ameaça da regente, a população de Lisboa foi rapidamente manipulada por nobres, clérigos opositores ao Papa de Avinhão, oligarcas, oficiais régios e mercadores, os quais lograram direcionar a ira da turba contra alguns dos seus inimigos comuns. O bispo da cidade, que partilhava com os castelhanos tanto a origem quanto a fidelidade ao papa de Avinhão, foi brutalmente assassinado, acabando o seu cadáver por ser arrastado pelas ruas da cidade e por ser lançado aos cães. Os judeus escaparam à chacina por pouco, somente graças à intervenção de D. João. Ao final do dia, o partido de D. Leonor Teles sofreu um golpe significativo, enquanto uma nova candidatura à sucessão ganhava força: a do Mestre de Avis, outro meio-irmão de D. Fernando, distinto de D. João, filho de Inês de Castro, o qual havia conquistado o apoio de uma parte considerável da nobreza portuguesa, mas cujo aprisionamento em Castela retirava qualquer possibilidade de intervenção direta no reino.
Com o desenrolar dos acontecimentos, a regente foi obrigada a abandonar Lisboa, dirigindo-se para as suas terras de Alenquer e depois para Santarém. Daí, perante a perda da cidade de Lisboa, não teve outra alternativa senão recorrer ao auxílio do seu genro. Não tardou que este acabas- se por afastar a sogra da cena política, enviando-a para um convento em Tordesilhas, nos inícios de 1384.
Entretanto, em Lisboa, a fação do Mestre de Avis — conhecida na historiografia como o «partido nacionalista» — rapidamente ganhou uma forma mais institucionalizada. Reunidos no mosteiro de São Domingos, no dia 15 de dezembro de 1383, os representantes dos mesteirais proclamaram o Mestre de Avis como regedor e defensor do reino. Como nessa reunião não estavam presentes os membros das elites da cidade, uma nova reunião foi convocada para o dia seguinte, nos Paços do Concelho. Segundo Fernão Lopes, cuja obra permanece uma das principais fontes para a reconstituição dos acontecimentos, os mesteirais pressionaram a oligarquia camarária, que não teve outra opção senão ratificar a decisão tomada no dia anterior.
Seguiu-se um período de consolidação de posições e de preparação para o confronto militar que a primavera e o verão seguintes inevitavelmente trariam. O Mestre de Avis organizou o seu governo, promoveu o recrutamento de forças militares e a arrecadação de fundos, por meio da cunhagem de moeda e de contribuições monetárias solicitadas ao concelho, aos judeus e às igrejas de Lisboa. Nas semanas que se seguiram, várias cidades e vilas, sobretudo no Alentejo, declararam o seu apoio ao Mestre.
Enquanto isso, Juan I, instalado em Santarém, reforçou gradualmente o seu exército com contingentes enviados de Castela. No início de março de 1384, as tropas castelhanas iniciaram o seu avanço para oeste, sem enfrentar resistência significativa, uma vez que essa região estava sob o controlo do partido de D. Beatriz. Em abril, o foco das operações militares deslocou-se para o Alentejo, onde o exército português, comandado por D. Nuno Álvares Pereira, obteve uma importante vitória, na Batalha dos Atoleiros, travada no dia 6 de abril de 1384.
O rei castelhano e a sua hoste chegaram finalmente a Lisboa no final de maio, lançando o cerco à cidade, por terra e por mar. A resistência, liderada pelo Mestre de Avis, revelou-se bem organizada e determinada, com a participação ativa da população lisboeta, que, no entanto, enfrentou enormes dificuldades devido à fome que assolava a cidade. Paralelamente, o exército castelhano enfrentava problemas logísticos crescentes, agravados pela propagação da peste nos seus acampamentos. Teria sido esta última a forçar, no dia 3 de setembro de 1384, o abandono do cerco e a retirada das tropas castelhanas.
Após o cerco, era momento de recompensar os lisboetas (conhecem-se, sobretudo, privilégios à Universidade e benesses de índole fiscal aos moradores da cidade) e de consolidar a vitória obtida sobre os castelhanos. Segundo Fernão Lopes, uma vez mais, foi D. Nuno Álvares Pereira quem sugeriu reforçar o comprometimento das forças apoiantes do Mestre de Avis. Com esse propósito, organizou-se uma nova assembleia do concelho de Lisboa para o dia 2 de outubro de 1384, igualmente no Mosteiro de São Domingos. Nessa ocasião, os representantes da cidade prestaram homenagem ao Mestre de Avis, confirmando-o como Regedor e Defensor do Reino. Além disso, ficou evidente a necessidade de convocar Cortes, já que somente nesse âmbito seria possível garantir os recursos financeiros necessários para continuar a luta contra o invasor castelhano e resolver a questão sucessória.
Caberia a Coimbra a honra de receber os três estados do reino para tão laboriosa e necessária assembleia. Esta iniciou-se nos princípios de março de 1385, com a presença da maior parte do episcopado, de mais de sete dezenas de nobres e dos procuradores de 31 concelhos do reino e, obviamente, com o Mestre de Avis, chegado no dia 3 à cidade. Segundo Marcello Caetano, as Cortes de Coimbra tiveram três objetivos principais: a escolha do novo rei, o financiamento da guerra e a receção e resposta aos habituais capítulos apresentados pelos participantes nobiliárquicos, eclesiásticos e concelhios à Coroa.
A questão central foi, indubitavelmente, a sucessão ao trono. Eram três os partidos em liça, aqui designados de acordo com a nomenclatura apresentada por Marcello Caetano. O primeiro, denominado «legitimista», reunia os apoiantes de D. Beatriz e, por extensão, da regência de D. Leonor Teles. Contudo, em razão dos acontecimentos que antecederam esta assembleia e do alinhamento desta fação com Castela, não teve representação nas Cortes. O segundo partido, chamado «legitimista-nacionalista», defendia que a ascensão de D. Beatriz resultaria na perda da independência do reino, preconizando, assim, que a Coroa deveria ser entregue a D. João, filho do rei D. Pedro I e de D. Inês de Castro. Finalmente, o partido «nacionalista», liderado pelo Mestre de Avis, sustentava que Portugal necessitava de um monarca português, desvinculado de qualquer subordinação a Castela.
Os trabalhos relativos à sucessão do trono foram confiados ao jurista D. João das Regras, filho de um destacado oligarca lisboeta que havia recentemente regressado da Universidade de Bolonha, onde obtivera o doutoramento em Direito Civil. A estratégia adotada por este legista não consistiu em afirmar diretamente que o Mestre de Avis era o único candidato admissível ao trono, mas em demonstrar a ilegitimidade de todos os pretendentes.
D. Beatriz foi considerada inelegível devido à alegada nulidade do casamento entre os seus pais, D. Fernando e D. Leonor Teles. Quanto a D. João, filho de D. Pedro I e de Inês de Castro, foi excluído com base em dois argumentos principais: a inexistência de um matrimónio válido entre os seus progenitores e o facto de ter empunhado armas contra Portugal, sendo, por essa razão, considerado proscrito ou, na terminologia da época, «desnaturalizado». Por fim, o próprio Mestre de Avis enfrentava a objeção da sua condição de filho ilegítimo e de membro do clero, por ter ingressado numa ordem religioso-militar.
Perante a impossibilidade de se assegurar uma sucessão legítima ao trono, D. João das Regras argumentou que caberia às forças vivas do rei- no, reunidas em Cortes, a responsabilidade de escolher um novo monarca. Sustentando a ilegitimidade de todos os pretendentes e destacando a urgência de garantir a estabilidade governativa, concluiu que o único candidato viável era o Mestre de Avis. Consequentemente, afirma Fernão Lopes, «por unida concordância de todos os grandes e do povo comum, decidiram promovê-lo à alta dignidade e estado de rei».
O Mestre de Avis acabou por aceitar o encargo, cedendo à insistência dos três estados do reino. Dessa forma, cumpria-se «a vontade de Deus» e a decisão unânime das Cortes, formalizada no auto de eleição datado de 6 de abril de 1385. A partir desse momento, Portugal tinha um novo rei: D. João, o primeiro desse nome.
2. A aliança luso-inglesa antes, durante e após aljubarrota
Tiago Viúla de Faria
Afinal, quem foram os arqueiros ingleses que ajudaram D. João I a vencer a batalha de Aljubarrota? Eram assim tantos, e tão determinantes? E porque é que continuamos a falar neles ainda hoje? São questões legítimas e fazem sentido, uma vez que estiveram, de facto, arqueiros ingleses nessa batalha, e porque existiu, também, uma aliança que possibilitou esse envolvimento. É a chamada «Aliança Anglo-Portuguesa», sobejamente conhecida e ainda pre- sente no nosso imaginário comum. Sabemos que se terão alistado, para em Portugal combater em auxílio de D. João I, cerca de 800 estrangeiros, talvez um pouco mais. A esmagadora maioria provinha de Inglaterra, mas — entre arqueiros e homens de armas — também haveria combatentes chegados, por exemplo, da Gasconha (território em França então sob domínio inglês) e, segundo o cronista Fernão Lopes, das regiões germânicas. Desse total, alguns foram destacados para guarnecer a cidade do Por- to, outros o Minho, outros ainda o Alentejo. Quantos deles terão estado, efectivamente, em Aljubarrota? Não sabemos, mas, por certo, seriam em número suficiente para compor as alas do exército e, juntamente com os atiradores portugueses, infligir danos profundos à cavalaria castelhana e francesa, à medida que investia sobre as linhas avançadas de Nuno Álvares Pereira. A comandar esses contingentes mercenários encontravam-se alguns capitães ingleses. Entre Joham Destingues (John Hastings), Tomas Symom (Thomas Symond), e outros, a sua identificação nem sempre se revela simples. São demasiados casos em que haveria que fazer fé nos cronistas (além de Fernão Lopes, o castelhano Pero ou Pedro López de Ayala ou o franco-flamengo Jean Froissart), e certezas não poderemos ter muitas. Tirando partido de alguns registos militares ingleses, cuja exactidão dificilmente poderá ser contestada, percebemos que alguns destes indivíduos seriam veteranos de batalhas e campanhas anteriores na Península Ibérica, incluindo em Portugal. Os combatentes ingleses em Aljubarrota seriam poucos, mas bons; pelo menos, uma parte deles. E nem todos eram arqueiros.
Assim sendo, como se chega aqui e ao mito dos ingleses em Aljubarrota? Neste capítulo, interessa-nos entender as principais razões que contextualizam a participação inglesa (ou «internacional», num sentido mais lato, mas igualmente correcto) neste determinante episódio bélico da história medieval portuguesa e europeia. Para tal, iremos recuar a um tempo anterior ao da batalha, para depois nos determos no período de D. João I, em concreto nas primeiras décadas de reinado. Na verdade, para percebermos as razões por detrás da intervenção inglesa na vida política, e militar, do reino de Portugal em 1385 há que considerar todo o século XIV, regressando ao tempo de D. Afonso IV e mesmo ao de D. Dinis, mas sobretudo detendo-nos num período absolutamente crítico sob o ponto de vista político e diplomático, e que corresponde aos 16 anos de governação de Fernando I. Muito embora existissem ligações anteriores (é famosa a participação de cruzados ingleses na conquista de Lisboa, em 1147), é no reinado dionisino que começamos a detectar algumas manifestações de interesse, de parte a parte, no estreitamento de relações entre Portugal e Inglaterra. As motivações principais prendem-se, então, com o clima de conflito vivido entre este último reino e o de França, numa disputa de soberania e autoridade sobre uma série de territórios detidos pela monarquia insular no continente europeu, designadamente na esfera da Coroa francesa. Entre esses territórios, conta-se a já mencionada Gasconha, fronteira aos Pirenéus. Na viragem para o século xiv, encontramos D. Dinis e Eduardo I de Inglaterra trocando correspondência acerca de diferendos entre mercadores de Lisboa e de Baiona, povoação costeira na região do Labourd, muito próxima de território castelhano e navarro — o que demonstra a existência de interesses ingleses e portugueses, mais ou menos indirectos, nessa comarca, os quais necessariamente se jogavam além das circunscrições territoriais dos respectivos reinos.
Será esta mesma lógica a presidir aos projectos matrimoniais que estiveram sobre a mesa de negociações na década de 1320 e na seguinte. O casamento de uma princesa portuguesa, filha de Afonso IV, com o herdeiro da Coroa inglesa não esteve muito longe de se concretizar, caindo enfim por terra em 1347. Muito provavelmente, ao medir as vantagens e desvantagens de uma aliança com Inglaterra, o rei terá considerado demasiado arriscado tomar posição no enfrentamento bélico que, entretanto, deflagrara abertamente entre as monarquias francesa e inglesa — conflito conhecido como Guerra dos Cem Anos, cujo início se convencionou situar em 1337 e que, em pouco tempo, envolveria grande parte da Europa, a ele não escapando a Península Ibérica. O mesmo parece ter acontecido em 1353, quando o mesmo rei opta por não subscrever um tratado celebrado entre Eduardo III de Inglaterra e as comunidades mercantis da costa portuguesa, encabeçadas por Porto e Lisboa. Este tratado poderá parecer surpreendente, mas mais não era, afinal, do que o corolário de séculos de intercâmbios e associações económicas e sociais ligando os dois povos. Tratava-se de laços duradouros e consistentes, ao longo do tempo, que tinham como principal móbil a complementaridade de matérias-primas e outros produtos transaccionáveis entre mercados. De Portugal seguiam para Inglaterra, a caminho da Flandres e mais além, frutos, cabedais, azeite, vinho; na torna-viagem importava-se sobretudo panos de lã, mas também alabastros ou artefactos de liga metálica. Tais processos comerciais asseguravam não somente a satisfação mútua de necessidades materiais, mas a constante comunicação e partilha entre intervenientes, no que constituía uma certa familiaridade que, geração após geração, aproximava comunidades e agentes sociais desde o Algarve até ao rio Tamisa.
Por outras palavras, o comércio é a razão de fundo que sustenta o relacionamento luso-inglês, já durante a Idade Média, e assim continuará a ser a longo prazo. Aquilo a que assistiremos durante o último terço do século xiv não será mais do que uma atípica exacerbação desse conjunto de relações, que passa a atingir o patamar político e militar. Que razões levaram a esta profunda transformação? A principal delas foi, sem dúvida, a radical alteração do panorama político em Castela. Em 1369, conhece-se o desfecho de uma guerra fratricida pelo trono desse reino. Pedro I de Castela é assassinado pelo meio-irmão, Henrique de Trastâmara, que, acto contínuo, se faz coroar como Henrique II. Era o desfecho de uma guerra civil, intermitente, que desde 1355 havia absorvido os reinos de Castela e Aragão, e, sete anos depois, também a monarquia francesa. É, portanto, em 1362 que, pretendendo disputar a Coroa castelhana, Henrique irá arrolar apoios primeiro junto do príncipe herdeiro e, pouco tempo depois, do próprio monarca, Carlos V. Dá-se uma primeira invasão de Castela, cujo monarca reinante (Pedro I, bem entendido) irá conseguir apoios em Inglaterra e na Gasconha. Assim, quando este capitula, em 1369, será na sequência de sucessivos enfrentamentos militares em Castela entre duas facções: simplificando, uma facção franco-castelhana (encabeçada por Henrique) e outra anglo-castelhana (liderada por Pedro).
A presença inglesa, tal como a francesa, na Península Ibérica faz-se sentir vivamente, e não deixará esse de ser o caso mesmo depois da ascensão definitiva de Henrique II. Tal significava que os interesses e influência da monarquia francesa poderiam perdurar à medida que os Trastâmara, a nova dinastia, também conseguissem vingar. Que impacto poderia isso ter sobre o desenrolar da Guerra dos Cem Anos? Existindo, em Castela, suficiente estabilidade política «ao centro», com uma elite incontestada desfavorável às ambições inglesas, então aumentavam os riscos sobre a integridade territorial da Gasconha; em última análise, a sua sobrevivência enquanto domínio da Coroa inglesa. Ademais, a ameaça poderia estender-se à própria segurança marítima, já que o monarca castelhano disporia de uma frota naval poderosa, capaz de operar em toda a extensão do golfo da Biscaia até ao Canal da Mancha. A própria costa meridional inglesa poderia ser atacada, saqueada e vandalizada pela navegação franco-castelhana — como, efectivamente, chegaria a acontecer por diversas vezes até aos inícios do século seguinte. Em 1369, portanto, havia que travar rapidamente a aliança franco-castelhana.
Como é evidente, a vitória de um líder beligerante e hegemónico como Henrique II provocava igual, ou maior, apreensão nos reinos fronteiros a Castela. Logo em 1369, começava a primeira «guerra fernandina» — na verdade, o primeiro acto de um longuíssimo confronto militar e diplomático entre as casas reinantes de Castela e de Portugal, a que melhor caberia chamarmos de guerra da sucessão luso-castelhana; uma guerra cuja feição bélica duraria (com fases de inactividade) até à primeira década de Quatrocentos, e que só terminaria de uma vez por todas em 1431, com as pazes definitivas de Medina del Campo. Não se tratou, neste caso, de cem anos de conflito, mas foram perto de sessenta e dois, distribuídos por campanhas, cercos, batalhas, tréguas, acções de pirataria, trocas de prisioneiros e pazes temporárias entre os dois reinos vizinhos. Em 1369, a decisão tomada por D. Fernando I de atacar a Galiza, com o apoio local de partidários do falecido Pedro I de Castela, não se explica apenas pelo desejo de repor a justiça, vingando a morte do legítimo monarca castelhano. É possível que D. Fernando tenha mesmo almejado suceder ao primo, ambicionando ser ele próprio coroado rei. Sustentava-se, aliás, em apoios prometidos pelos soberanos de Aragão e Granada. Do que não pode haver dúvida é que, face ao cenário em Castela, não restava alternativa ao rei português senão reagir, o que aconteceu.
É neste contexto que, no reinado fernandino, assistiremos ao recrudescer dos contactos diplomáticos com Inglaterra, desta feita assumindo estes uma importância crescente na política externa e de alianças da Coroa portuguesa. Embora se encontrasse a distância incerta por mar (a travessia dependia sempre de condicionantes várias, podendo demorar entre alguns dias a várias semanas), ainda assim o reino de Inglaterra era o senhorio cristão geograficamente mais próximo sem que fosse necessário percorrer território inimigo. Depois, interessava aos ingleses perturbar o mais possível a coligação entre franceses e castelhanos. Idealmente, interessava chamar a si os muitos recursos militares e socioeconómicos que Castela oferecia. Assim se conciliavam os interesses estratégicos de portugueses e ingleses, nos contextos interligados da disputa anglo-francesa e da sucessão luso-castelhana. Mais do que o resultado de uma tradição de amistosas e seculares ligações, a chamada aliança anglo-portuguesa acaba por se efectivar graças à concatenação de circunstâncias transitórias. A aliança deveria em muito ao labor diplomático de João Fernandes Andeiro, nobre de origem galega cujas ambições pessoais o levaram a entrar, primeiro, ao serviço de Fernando I — segundo a cronística, também ao serviço muito próximo de Leonor Teles, a rainha —, e, depois disso, do duque de Lencastre, um dos filhos de Eduardo III de Inglaterra, que reconhecemos habitualmente pelo nome, «John of Gaunt»: João, nascido na cidade flamenga de Gante.
Em 1371, João de Gante casar-se-ia com a filha mais velha de Pedro I de Castela, por isso fazendo-se intitular legítimo sucessor à Coroa castelhana. Também em 1371, falhava a primeira «guerra fernandina», sujeitando-se o rei português a termos muito desfavoráveis. Procurando mitigar a derrota — tanto militar quanto diplomática —, Fernando I procura persuadir João de Lencastre a encetar uma aliança contra Henrique II, rival dinástico de ambos. Reuniam-se as condições para a celebração de um primeiro tratado de agressão militar. Embora comummente apodada de primeira aliança «anglo-portuguesa», em bom rigor esta nunca pode- ria sê-lo. Como, aliás, explicita claramente o tratado, assinado em Tagilde, tratava-se de uma aliança unindo D. Fernando I e Leonor, na condição de monarcas de Portugal e Algarve, a João e Constança, na qualidade de monarcas de Leão e Castela. O rei-sem-trono de Castela era, em simultâneo, súbdito inglês; mas, para o efeito, prevalecia a condição régia — jurídica e politicamente. A efectiva aliança com a Coroa inglesa dar-se-ia somente no ano seguinte, tendo outra vez Andeiro por obreiro. Na prática, consistia em alargar o clausulado de Tagilde para lá de João de Castela e Lencastre, por forma a vincular também o rei Eduardo III. O tratado de 1373, entre as Coroas de Portugal e Inglaterra, é um marco para a política externa fernandina e para a história das diplomacias portuguesa e inglesa. Contudo, o sucesso deste para a diplomacia do soberano português não encontraria repercussão prática no imediato. Quando muito, a incapacidade dos alia- dos de, então, mobilizar qualquer acção militar sobre Castela terá servido para aumentar as tensões, já de si latentes, com Henrique II. Seria apenas em 1381, face ao agravar dos enfrentamentos franco-ingleses, que um exército rumaria a Portugal, com o objectivo de apoiar as forças fernandinas numa nova ofensiva directa contra Henrique de Castela. Encabeçado por Edmundo de Cambridge (outro dos filhos de Eduardo III), consistia em 3000 homens de armas, cujas montadas caberia a Fernando I providenciar.
A história da intervenção do conde de Cambridge em Portugal, du- rante os anos de 1381 e 1382, não é particularmente abonatória. Serviria, exclusivamente, para confirmar a supremacia incontestada dos Trastâmara em Castela. Pelo caminho, ficaria um rasto de destruição e violência desde os arrabaldes de Lisboa ao Alentejo, causado não pelo inimigo castelhano, mas por longos meses de inactividade militar dos ingleses, a que paulatinamente se juntava a escassez de recursos indispensáveis para os alimentar e recompensar. O contingente via-se forçado a permanecer em território português enquanto aguardava a ordem para invadir Castela; invasão que nunca viria a acontecer, pois o rei português acabaria por chegar a acordo com João I de Castela (que havia sucedido ao pai, Henrique II, falecido em 1379) na iminência da batalha, levando os respectivos exércitos a um armistício, selado por novo tratado. Este talvez seja um dos episódios mais difíceis de interpretar na política externa fernandina, aparentemente titubeante na fase final do reinado. Quando morre o monarca, em 1383, será num ambiente de profunda incerteza quanto ao futuro do reino, uma vez que deixa como regente a viúva, a impopular Leonor Teles, e a única descendente de ambos, Beatriz, casada com João I de Castela. Rapidamente se extremam posições e o reino entra em convulsão política. Os acontecimentos que se seguiram à morte de D. Fernando serviriam, enfim, como catalisador da ligação a Inglaterra, a qual se veria reforçada em pouco tempo, mas num contexto já muito diferente.
Como é bem sabido, o mestre da Ordem de Avis (meio-irmão, ilegítimo, do falecido rei) reunirá em torno de si apoios que, cada vez mais, o configuram como alternativa a uma solução de governo protagonizada pela regente, pela sua filha, ou por qualquer outro partido. Um dos primeiros actos de João de Avis enquanto regedor e defensor do reino — posição a que ascenderá em Dezembro de 1383 — é o envio de uma embaixada a Inglaterra, com o intuito de aí recrutar combatentes a soldo. Como seria de esperar, considerando a frágil posição do mestre, a missão é recambiada sem obter quaisquer garantias. Segue-se-lhe uma segunda missão, a qual permaneceria durante vários anos em Westminster, Londres, Windsor e outros centros do poder régio e senhorial inglês. No decurso da sua estada, os agentes diplomáticos portugueses conseguiriam, a espaços, obter autorização para recrutar e mobilizar tropas, supervisionar o seu embarque para Portugal, convencer João, duque de Lencastre, a marchar sobre Castela e negociar com o jovem rei Ricardo II um tratado de aliança de contornos militares mas também económicos, o conhecido Tratado de Windsor, de 1386. Parte deste esforço terá sido facilitada pelo reforço da autoridade de João de Avis ao longo do ano anterior, desde logo ao ser aclamado rei por um segmento muito significativo da sociedade política portuguesa, e depois graças a consecutivos sucessos militares, sobretudo (como vimos no início) a retumbante vitória obtida no campo de Aljubarrota, contando esta com os reforços insulares entretanto granjeados.
Também os esforços diplomáticos junto a João de Lencastre frutificariam rapidamente — o que revela tanto das capacidades de persuasão dos agentes portugueses (especialmente Lourenço Eanes Fogaça) como das egrégias ambições do duque. É preciso não esquecer que um seu servidor de longa data, João Fernandes Andeiro, tinha sido assassinado às mãos do mestre de Avis — o mesmo que agora pedia amizade e confiança. Certo é que João de Lencastre não só abrirá mão de uma das suas filhas, Filipa, que em 1387 casará com o novo rei de Portugal, como porá o seu exército ao lado deste. A campanha militar que se seguiu levaria os líderes aliados ao outro lado da fronteira, encabeçando um numeroso exército, mas o enfrentamento durou apenas escassas semanas e terminou sem conquistas de vulto. À semelhança do que acontecera em 1382, o resultado mais evidente seria a celebração de um tratado, neste caso elaborado secretamente entre o duque de Lencastre e João de Castela, em 1388, à revelia do rei português. À luz do acordo, João de Lencastre e a esposa prescindiriam de quaisquer direitos que entendessem ter à sucessão de Castela. Ademais, a filha de ambos seria dada em matrimónio ao primogénito do rei castelhano (o futuro Enrique III, que será coroado muito jovem, em 1390). O casamento foi, efectivamente, concretizado e, com ele, sanada a questão sucessória em Castela, uma vez que se uniam dinasticamente os ramos petrista e trastâmara. Muito provavelmente, o desfecho diplomático desta última grande campanha anglo-portuguesa na Idade Média terá contribuído para uma relativa pacificação das relações entre Castela e Portugal, já que ainda em 1387 entraria em vigor uma trégua entre os dois reinos, proposta justamente por Castela.
Com efeito, podemos falar de uma mudança de feição também nas relações anglo-portuguesas logo no rescaldo dos eventos de 1387. Nos dois anos seguintes, o panorama internacional altera-se consideravelmente. Por um lado, a trégua entre Castela e Portugal viria diminuir a necessidade de intervenção na Península Ibérica, seja por parte de França, seja por Inglaterra. Por outro, logo a partir de 1389, estes dois últimos reinos entram em regime de trégua prolongada, contemplando essa mesma trégua os respectivos aliados, nos quais se incluíam as monarquias ibéricas. Concomitantemente, regressam aos portos portugueses as galés que D. João I havia cedido a Ricardo II como parte dos acordos diplomáticos do início de reinado. Encerrava-se a mais preenchida (e truculenta) década de intercâmbios políticos, diplomáticos e militares com Inglaterra até então. Os efeitos, no entanto, far-se-iam sentir e persistiriam de maneira evidente, desde logo em dois planos: nas relações comerciais e na cultura curial.
Quanto ao primeiro, as garantias concedidas de parte a parte, designadamente no Tratado de Windsor, tornavam mais fáceis as transacções económicas desde um ponto de vista administrativo e fiscal; mas também os privilégios consignados nas políticas fernandina e joanina favoreceram assimetricamente os mercadores ingleses, dando azo a uma vantagem competitiva face aos portugueses. Muito embora fosse frequente estes vários agentes colaborarem em operações comerciais, nem sempre era o caso, e o facto é que, logo a partir das décadas finais do século XIV, as classes mercantis insulares serão mais eficientes ao movimentar valor na balança comercial anglo-portuguesa. Do ponto de vista curial, o casamento de Filipa e D. João I revelou-se um elemento-chave para a promoção de um discurso orquestrado com o objectivo de legitimar e consolidar a nova dinastia reinante. Nisto parece ter sido particularmente bem sucedido, desde logo porque o casal se revelou fecundo (geraram oito descendentes), e também por um conjunto de medidas que visavam evidenciar a rainha enquanto membro de uma prestigiada linhagem, os Plantageneta. Embora, infelizmente, não disponhamos de muitos vestígios materiais seus contemporâneos, essa intenção é claramente revelada pela cronística régia: Fernão Lopes e Gomes
Eanes de Zurara transmitiriam uma imagem altamente idealizada — dir-se-ia mesmo seráfica — de Filipa, imagem essa que contribuiu para a sedimentação, ao longo dos séculos, da rainha como matriarca da «ínclita geração».
E o que dizer do impacto imediato desta aliança (ou conjunto de alianças) em Inglaterra? Além dos benefícios trazidos à esfera comercial, pode- mos afirmar que a estabilização do regime que, em Portugal, saiu da guerra civil iniciada em 1383 não trouxe prejuízo à Coroa inglesa. Pelo contrário, Ricardo II passara a contar com um aliado diplomático que lhe servia como contrapeso nas negociações com França, para pôr termo definitivo à Guerra dos Cem Anos. O mesmo entendimento teria Henrique IV, irmão de Filipa de Lencastre, que sobe ao trono inglês em 1399, na sequência de um golpe que visa depor e, a seu tempo, eliminar Ricardo II. A ascensão de Henrique ao poder vem originar problemas também na esfera externa; não só na relação com França (pois a viúva de Ricardo é uma princesa Valois), mas também com os reinos ibéricos. Seria porventura lícito pensar — como o tem feito, aliás, a generalidade da historiografia — que a monarquia portuguesa, encabeçada por João I e Filipa, seria receptiva à mudança de regime em Inglaterra. Mas não parece ter sido esse o caso. O Tratado de Windsor só seria reafirmado praticamente cinco anos depois da coroação do irmão de Filipa (apesar da urgência manifestada por este último). Ademais, quando chegou o momento de reforçar a aliança com Henrique através da celebração de novo matrimónio luso-inglês, salvaguarda-se a única filha lídima de João e Filipa: Quem viaja para Inglaterra para casar com o conde de Arundel, um jovem apoiante do novo regime, é uma filha ilegítima, Beatriz.
Aqui chegados, talvez seja importante reter algumas reflexões. Em primeiro lugar, o que temos consagrado como aliança luso-inglesa é um conjunto de movimentos político-diplomáticos que serve uma finalidade concreta e firmemente situada no seu tempo. Embora em grande medida alicerçada numa longa história de intercâmbios económicos e comerciais, a «aliança» que virá a materializar-se no último terço do século xiv é fruto das circunstâncias então vividas. É igualmente fruto de engenho e alguma sorte: mesmo tendo liquidado o principal elo diplomático luso-inglês (o Conde Andeiro), e não enviando uma embaixada capaz depois disso, o mestre de Avis conseguiria tirar partido da ambição de João de Lencastre. Mas os acordos daí resultantes, apesar de operativos no imediato, terão um impacto bastante limitado logo a partir do final da década de 1380. O reino de Portugal vê-se condicionado pela sua condição de aliado a Inglaterra, contra Castela e França, algo com que, por exemplo, as classes mercantis portuguesas não se mostrariam muito satisfeitas. Em retrospectiva, o principal contributo dos entendimentos com Inglaterra foi mensurado pela historiografia do regime avisino pelo legado de memorialização e historicização da aliança, desde logo através do culto à linhagem. Aliás, como vimos, esta mesma função de reconhecimento público da dinastia repetir-se-ia não muito tempo depois: em 1399 os papéis invertem-se, e é Henrique IV a procurar legitimar-se (também ele com considerável dificuldade) através de apoios políticos externos e de um casamento. Tal serve para recordarmos que a crise de sucessão em Portugal e consequente ascensão de João I não é de todo extraordinária, face a fenómenos em muito análogos que ocorrem por toda a Europa do século XIV. As relações externas de Portugal, como de Castela, como de França ou Inglaterra (e outros potentados), devem-se, em muito, a processos de fracturação e restauro do poder dinástico, e que amiúde se confundem com os destinos dos reinos. E é também neste contexto que devem ser entendidas as relações luso-inglesas neste período.
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