No início eram tatuagens. Agora são retratos de tatuagens. No início era a guerra colonial. Agora são as memórias que ficaram. Ficam. Cravadas na pele. No corpo. Na mente. Na alma. Bem fundo. Para sempre. Por causa da Pátria. Pela Pátria.

As imagens, essas, não saem da cabeça, por mais esbatidas que estejam no corpo. Passaram anos. Décadas. Na pele, a maioria apresenta-se descolorida. Quase que desapareceram. Por isso, há quem tenha feito a versão 2.0 do “Amor de Mãe”, a frase icónica de quem foi para África. Porque não querem esquecer. Não podem esquecer por mais que, muitos deles, procurem não falar. Sobre o que foram lá fazer e aquilo que estamparam. Porque recuam ao tempo da guerra. E, se o fizerem, dizem: “Não durmo. Se eu lhe contar, eu já não durmo esta noite...”.

A guerra colonial está ainda bem presente na memória coletiva de um país. Pelo menos, em grande parte dele. João Cabral Pinto quis resgatar a história de Portugal pelas imagens dos desenhos nos corpos de quem foi e voltou. Depois de hesitações e negações de editoras, decidiu avançar para uma edição de autor. “Guerra na Pele – As tatuagens da guerra colonial” é o nome do livro apresentado hoje na Biblioteca Natália Correia, em Carnide, Lisboa. É mais do que um conjunto de palavras. É um registo histórico. 

O objetivo? “Resgatar e preservar para memória futura um conjunto de imagens de tatuagens realizadas por militares das Forças Armadas Portuguesas durante o período da guerra colonial em África de 1961 a 1974”, lê-se nas poucas páginas do livro que merecem conteúdo escrito.

O resto são as imagens que falam por si: 146 imagens de tatuagens que representam uma síntese das 350 fotografadas, resultantes de mais de 230 entrevistas a ex-combatentes, num total de cerca de 600 abordados. Hoje, dos entrevistados, “metade já morreu”, aponta João Cabral Pinto. “As fotografias das tatuagens são a sua memória”.

O trabalho começou há 20 anos. “Os primeiros cincos foram perdidos numa avaria informática, não consegui recuperar e foi tudo ao ar”, recorda. Não desistiu. Seguiram-se 15 anos a andar “nos encontros de militares, nas celebrações dos 10 de junho, em praias, nos autocarros, a mudar o meu trajeto porque via alguém”, sempre atento a uma tatuagem que apontasse para a presença nas ex-colónias.

“Não durmo. Se eu lhe contar, já não durmo esta noite... Só de falar já estou todo a tremer”

A abordagem foi tirada a fotocópia: “Olá, sou o João Pinto, estou a fazer um trabalho sobre a guerra colonial e pergunto se posso tirar uma fotografia à sua tatuagem”.Tal como um filme, seguiu o guião em que queria respostas ao porquê?, quando?, quem?, onde (zona geográfica)?, onde (zona do corpo)?, como? e quantas?. Já as entrevistas “não foram programadas”. Não podiam ser.

João Cabral Pinto compreende quem não participou e quem não respondeu à totalidade das perguntas. Em alguns casos a resposta traduziu-se em pouco mais do que fotografar a tatuagem. “Muitos dos antigos combatentes sofrem stress pós-traumático. Diziam 'vai dar uma curva'. Ou mesmo, 'tira lá a foto, mas não digo mais nada'". O nada explica-se numa frase repetidamente escutada pelo autor: “Não durmo. Se eu lhe contar, já não durmo esta noite... Só de falar já estou todo a tremer”.

“Vaidade”. Esta uma das razões para registar no braço a ida para a guerra. Ou apenas “exibicionismo”, explica João Cabral Pinto. “Uma mulher, nessa altura, que casasse com um militar tinha uma boa vida. Era um chamariz para casar”, pisca o olho.

Há razões mais fundas. “A saudade, revolta, dor, luto”, solta na ponta da língua. Mas não só. O “orgulho” de pertença aos paraquedistas ou fuzileiros, a “vontade de servir o país”, a "moda” e o “todos faziam”. Por situações de morte de companheiros ou medo. “Uns explicaram que o fizeram quando estavam junto da fronteira com o Senegal. Pensavam que iam morrer”, e outros por momentos de pura “alienação”, “desespero” ou “raiva”. Ou mesmo, uma simples “recordação”, enumera o autor.

Não fugimos ao desejo da curiosidade: e o "Amor de Mãe, Angola 1969"? Essa evocação materna que fez parte do imaginário pela adolescência fora deste (48 anos) que vos escreve. “É uma expressão que já vem da 2.ª Guerra Mundial”, informa João Cabral Pinto.

“Nas situações de guerra, em que estás a morrer, aflito, por quem é que tu chamas? Por quem? Pela mãe. Não chamas pelo pai. Ai, mãe. Ai, minha mãe...”, o autor recorda uma partilha feita por um dos fotografados. Um nome tantas vezes repetido que deu em música, de Oliveira Muge. “A mais célebre da guerra colonial: Mãe. Foi do mais conhecido na altura”, sublinha o autor do livro “Guerra na pele”.

Para além do Amor de Mãe e de juramento a outros amores, há outros símbolos (o calote e o grifo), siglas (JNRJ, de Jesus da Nazaré Rei dos Judeus), profissões e frases que ficam para a eternidade: “Sangue, Suor e Lágrimas”, que aparece, por vezes, como “SSL”, em abreviatura. Há mapas de Angola, Cabinda, Guiné ou Moçambique, datas de incorporação, “corações com a flecha do Cupido”, frases avulso como “Adeus, África”, “Deus me guie”, “A Pátria Honrai, que a Pátria vos contempla” e “Fui e Voltei”.

Neste revisitar das histórias de quem regressou há casos insólitos. “Um tatuou o nome da namorada, só que esta deixou-o e, por cima, escreveu: eu e um ponto de interrogação”. Outras precipitações. “Um tatuou-se com uma imagem dos fuzileiros, não entrou e foi para os comandos. Ficou com duas tatuagens”, recorda. Há também imagens que pouco têm que ver com o teatro de guerra - “Um pato Donald e um Mickey”.

O grito de libertação. "Para se libertar de tudo”

Esqueça a loja moderna de tatuagens. Na altura, “eram feitas com três agulhas e tinta-da-china. Faziam, às vezes, um esboço, um desenho a caneta”, descreve João Cabral Pinto. “As tatuagens eram feitas por camaradas de armas, destros. Diria 80%. O resto, mais ou menos em partes iguais, civis e locais. E os próprios. Daí, o lado esquerdo ser o mais tatuado”, esclarece. “O antebraço é o que está mais tatuado porque está à vista. Queriam mostrar. E no verão mostram tudo”, sorri.

Este movimento de tatuagens “acontece informalmente no território militar. Parte dos militares não se tatuou durante o período da guerra colonial”, avisa. “A totalidade dos que o fizeram foi de tal modo importante e impactante que foi considerado uma subcultura informalmente inserida na estrutura militar. Os militares nunca assumiram a tatuagem, não é oficial”, atira.

Das inúmeras imagens cravadas nos corpos de ex-combatente, duas não o deixaram indiferente. “Um homem com uma corrente quebrada no peito. Quando a mostrou apanhei um susto. Disse-me que era um grito de libertação. Um grito para se libertar de tudo”. A outra carrega o divino. “Um rapaz de 75 anos com um Cristo crucificado nas costas”, anota. “É a minha guarda. Guarda-me as costas”, disse.

“Não me meto na interpretação do desenho”, revela. "Mas sei que a cobra representava o mato africano. A faca é a luta”. Uma “caveira e ossos” é comum. “Sou mau, tenho sorte e vou lixar-vos. Estou aqui para estar na guerra”, sustenta.

A conversa decorre e aproxima-se do fim à medida que folheamos as quase duzentas páginas do livro. “Reduzi de 350 páginas para 192”, explica. Fez uma “síntese”, adianta. “Expurguei considerações políticas, militares e sociais e expurguei as ciências sociais e humanas, porque isto tem um lado sociológico”, garante João Cabral Pinto.

O mais marcante, para além da visualização das tatuagens, foi o facto de serem “intensas para o ânimo e desânimo”, frisa. “Para uns, foi uma viagem a uma fase de vida, para outros, o lado negativo. O lado do 'julgava que ia morrer, que via os camaradas a morrer e que nunca mais me vinha embora,' do 'vou ao puto', que significa ir à metrópole”, retrata. “Foram para a guerra com 18 anos. Tatuaram-se com 18 e 20 anos. Hoje são putos tatuados com 75 anos”. No fundo, é gente orgulhosa de ter servido a pátria”, analisa o autor, filho de um militar que esteve em Angola.

“Foram conversa muito intensas. Chorei a fazer isto. Não tocava há cinco anos [no projeto] e abrir o livro outra vez e começo a lembrar-me das situações emocionantes que não estão aqui partilhadas. Talvez para uma próxima”, antecipa.

“Tenho tido muitas respostas da estrutura militar. Dizem-me que é património cultural. É memória coletiva. Uma memória que não se apaga. Como as tatuagens de quem lá esteve. Não pode desaparecer. São imagens. São memórias. Que se guardam. Que ficam. Que não se podem apagar”, resume.