Se lhe pedirem para fazerem a associação entre o nome “Radcliffe” e literatura, o mais provável é que lhe venha à memória o ator que encarnou Harry Potter no grande ecrã. No entanto, há uma outra ilustre detentora desse apelido que vale a pena referir, passada a data que marcou o 200.º aniversário da sua morte.

Ann Radcliffe é o seu nome. Nascida em 1764 em Londres, a escritora inglesa viria a ser considerada como uma das maiores progenitoras da literatura gótica, quiçá a maior. Não obstante a má fama que o género literário começou a ter junto dos críticos no final do século XVIII, obras como “Os mistérios do castelo de Udolfo” (1794) e “O Italiano” (1797)  separaram-na dos demais e tornaram-na numa celebridade na sua época, chegando mesmo a tornar-se escritora profissional mais bem paga do final do século XVIII, como refere a Biblioteca Britânica.

Se o preço à época por manuscrito era, em média, 10 libras, os seus editores compraram os direitos de “Os mistérios do castelo de Udolfo” por 500 e d'"O Italiano" por 800 libras. Além disso, com a fama veio a concorrência: Radcliffe foi também das escritoras mais plagiadas e copiadas do seu tempo, servindo de inspiração para pinturas, literatura barata e peças de teatro.

Já no que toca a praticantes mais respeitáveis da arte da escrita, Jane Austen referenciou-a diretamente n’”A Abadia de Northanger” — que parodia “Os mistérios do castelo de Udolfo” ao mesmo tempo que homenageia esta obra —, o lendário poeta John Keats tratava-a como “Mother Radcliffe”, Walter Scott considerou-a “a primeira poetisa de ficção romântica” e Thomas de Quincey batizou-a como “a grande feiticeira da sua geração”.

A influência das suas temáticas transgressivas, anti-clericais, negras e fantásticas fez-se sentir em autores tão variados como Edgar Allen Poe, Mary Shelley, Honoré de Balzac, Fyodor Dostoyevksy, ou Victor Hugo. Ou seja, se fizermos uma árvore genealógica literária destes autores até aos dias de hoje, é possível que a pena de Ann Radcliffe ainda se faça sentir em muito do que se escreve agora.

No entanto, porque é que é um nome, se já é obscuro nos círculos literários anglo-saxónicos, praticamente inexistente para os leitores portugueses? A resposta, sugerida neste artigo no The Guardian, diz-nos mais respeito do que à partida pensaríamos: porque não se soube vender.

Sim, apesar da sua grande popularidade contemporânea, os livros de Ann Radcliffe foram esquecidos logo no século seguinte, e pela altura da época Vitoriana já não passavam de notas de rodapé. Ter sido uma mulher a escrevê-los não ajudou, tal como o facto de Radcliffe ter tido uma vivência reservada — chegaram até aos dias de hoje poucas informações fidedignas quanto à sua vida.

No entanto, numa altura em que se recupera o papel central das mulheres na literatura, tem havido uma lenta reabilitação de Radcliffe em curso, que teve início com o boom dos estudos feministas dos anos 70 e 80, colocando-a ao lado de figuras tão marcantes como Mary Wollstonecraft, das irmãs Brontë ou de Charlotte Perkins Gilman. Hoje, está estabelecido que a sua obra influenciou vultos como Shirley Jackson, há cada vez mais estudos a si dedicados e teve um papel proeminente numa exposição sobre o gótico na Biblioteca Britânica em 2014.

Falta apenas o mais importante, pelo menos para nós: mais edições portuguesas. De momento, não só a sua obra não foi traduzida na sua inteireza para português, como o grosso das edições foi publicado nos anos 70, por editoras como a Editorial Estampa — que editou “O Italiano” na sua afamada coleção Livros B — e a Amigos do Livro. A mais recente, segundo os registos da Biblioteca Nacional, é “Mistério Siciliano”, de 1997, pela Europa-América. Seguindo os links acima, é possível encontrar cópias à venda de algumas destas obras. Para “Os mistérios do castelo de Udolfo”, porém, talvez seja preciso recorrer ao mercado em segunda-mão ou recorrer às bibliotecas. E não, infelizmente não há reedições previstas ou novos lançamentos de Radcliffe — mas o que temos disponível vale a pena explorar.

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