A evolução da música popular está intrinsecamente ligada à evolução da tecnologia. O surgimento da guitarra elétrica deu-nos o rock n' roll; os sintetizadores possibilitaram a eletrónica e o psicadelismo; as máquinas de ritmos, o disco, o house, o techno e similares; software variado levou o hip-hop a impôr-se como género musical número um, dando a milhares de milhares de jovens uma ferramenta para extravasar a sua criatividade; à hora a que se escreve este texto, alguém, algures, está a imaginar novas invenções, novas fusões, novas fórmulas. Consumimos música gravada porque Edison se lembrou de criar uma coisa chamada fonógrafo, ao que se sucederam os leitores de cassetes e de CDs. Continuamos a fazê-lo porque Berners-Lee pensou a World Wide Web, sem a qual não existiriam os MP3 e as plataformas de streaming...
Todo e qualquer género popular beneficiou com as novas tecnologias. Os Barões da Pisadinha, dupla oriunda da Bahia, praticam uma música à qual se chama pisadinha, uma espécie de forró eletrónico que vai beber, também, da fonte do funk brasileiro (id est: o punk rock da favela) e de algo a que se colou o rótulo brega, que os alemães conhecerão por schlager e ao qual os portugueses deram o nome de pimba, não sendo provavelmente necessário descrever aquilo de que estamos concretamente a falar. Brega é o que apelidamos de “foleiro”, porque o nosso ego não suporta ver outras pessoas a divertirem-se. Não confundir com kitsch, que é o nome que o nosso ego dá às coisas que consideramos foleiras, mas que nos divertem.
A música é popular e popularucha, versa sobre as mais variadas dores de corno, contém letras e ritmos simples de forma a agradar às massas: um teclado e uma voz e uma garota que mal nos liga e está feito. Já a escutámos em festas da terrinha, em bares apinhados nos subúrbios, em encontros universitários. Inspira o ódio de Adornos em potência, ao mesmo tempo que leva milhares e milhares de pessoas – como se comprovou esta noite, no Campo Pequeno – a esquecer, por uma hora ou duas, que trabalhar é um saco. Porque é esse o objetivo da música de massas: alienar-nos, sendo que muitas vezes somos nós quem procura essa mesma alienação. O corpo, e a mente, muitas vezes não aguentam.
É possível que isto soe agressivo quando não o pretende ser. Mesmo não sendo um género com o qual se conviva diariamente (e que, como se escreveu, desperta ódio e amor), há algo no piseiro que nos chama a atenção, algo que podemos relacionar com milhentos outros subgéneros que possamos ou não considerar mais apropriados. Como por exemplo o paredão, palavra que os brasileiros usam para se referirem a um montão de colunas habilmente colocadas em cima de um reboque ou de uma carrinha de caixa aberta, e que em nada é dissimilar dos soundsystems jamaicanos (mas o reggae é fixe, o forró não é, dir-se-á). Ou, melhor ainda, o facto de haver tanta gente a perder-se nestes ritmos, dançando equilibrando um copo meio cheio na cabeça (testemunhámo-lo esta noite), rebolando o corpo quase até chegar ao chão (idem), brindando com os amigos que o acompanharam até esta festa (ibidem). Se a música dá felicidade às pessoas, quem se atreve a dizer, como o jornalista Regis Tadeu o fez, que o funk, o pagode, a música sertaneja ou o forró eletrónico são «um tsunami de lixo musical»?
(Os Adornos em potência, que concordem com esta opinião e com a ideia de que estes géneros são apenas e só alienantes, podem ler este artigo e repensar um bocadinho.)
Até porque não há como não sentir uma pontinha de empatia – e de felicidade! – ao conhecer a história de superação dos Barões da Pisadinha. No mini-documentário “Da Roça Para a Cidade”, disponível na íntegra no YouTube, o cantor Rodrigo Barão deixa bem claro o que pretende com a sua música: «ajudar [a] minha família, pagar [as] contas». Há ali uma humildade que só existe em quem nasceu de facto no meio do nada, e foi forçado a batalhar em busca de um sonho ou de uma vida digna ou de ambos. De Heliópolis para o mundo, os Barões da Pisadinha descobriram o que fazia mexer as pessoas, e a isso se agarraram para poderem, como mostra o documentário, dar uma casa nova às mães, alimentar os mais queridos. Esta noite no Campo Pequeno foi um degrau a mais nesse percurso, já depois de se terem tornado num dos maiores fenómenos da música popular brasileira: somam mais de 500 milhões de plays no Spotify e têm Neymar entre os fãs, sendo que o astro canarinho até foi o principal responsável pela sua rápida popularização, ao filmar-se a dançar 'Tá Rocheda'.
Não esgotado, mas cheio de gargantas predispostas a entoar bem alto alguns dos maiores sucessos da dupla, o Campo Pequeno deu as boas-vindas aos Barões da Pisadinha naquela que foi a sua estreia na capital portuguesa, um dia depois de se terem apresentado no Porto. Uma bandeira do Brasil, estrategicamente colocada numa das bancadas superiores, dizia-nos ao que vínhamos, ainda que o público se tivesse dividido entre fãs nacionais e imigrantes oriundos da Terra de Santa Cruz. Pouco tempo de espera para lá da hora marcada e ei-los, acompanhados por uma espécie de banda: um guitarrista, um saxofone, um acordeão e duas dançarinas cantoras. Foi 'Recairei' o primeiro tema escutado, por entre centenas de telemóveis e outras tantas vozes no ar, com eu já te superei... cantado de forma romanticamente desafiadora.
Poucos foram os que resistiram sentados nas cadeiras, com o espetáculo a fazer-se também, ou talvez sobretudo, no público. O ritmo constante, com o grupo a pular de canção em canção como se de um DJ set se tratasse, sem grandes pausas entre canções, não provocou qualquer cansaço – algo que seria compreensível num concerto em que praticamente nenhuma delas fugiu à fórmula. Rodrigo Barão nunca parou de sorrir e esteve sempre em grande comunhão com o público, mandando um tchau ou um polegar para cima, pegando em telemóvel atrás de telemóvel alheio para tirar uma mui requisitada selfie, debitando tiradas delirantes. Vamo ouvir as mulheres solteiras aí? - e de imediato uma torrente de gritos. Quem acha que vai beijar na boca faz barulho... - e logo outra.
Agradecendo «aos brasileiros e aos portugueses presentes», garantindo que a sua presença no Campo Pequeno constituía «uma honra», os Barões da Pisadinha não esconderam que o facto de terem fãs por cá constituía uma espécie de surpresa, novamente a enorme humildade a vir ao de cima: «sei que tem cá portugueses porque quando eu saí do hotel um senhor português veio tirar foto comigo...», apontou Rodrigo a dada altura, sempre com o mesmo sotaque nordestino, povo que no Brasil é alvo de uma discriminação esdrúxula. Uma versão de 'Baby Me Atende', do cantor Matheus Fernandes, foi uma das mais saudadas da noite, assim como 'Rap da Felicidade', de Cidinho & Doca, a intro baile funk a levar os corpos à loucura. Num espetáculo que passou tão depressa quanto um jacto, o encore – onde a dupla levou menos de dez segundos a sair e a voltar ao palco, um gesto que o pessoal do rock devia ter em conta – fez-se com a repetida 'Recairei', e com a audiência a responder positivamente ao repto de quem gostou faz barulho... Para estreia não esteve mal, e quem mantém desta forma os pés no chão – como pede o piseiro – merece tudo e mais alguma coisa.
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