Havia um rapaz à porta da Altice Arena com uma t-shirt de Aphex Twin e não resistimos a perguntar-lhe: a seguir também vais a correr para o Kalorama? Era uma espécie de aposta entre uma franja muito reduzida de fãs que, aproveitando o facto de a estação de metro do Oriente e a da Bela Vista não distarem muito entre si, se propuseram a ver a artista islandesa, primeiro, e o DJ e produtor irlandês, a seguir, beneficiando do facto de um começar após o outro. Nesse caso em particular, a resposta foi um rotundo não: tinha comprado o bilhete para Björk muito antes disso, e só trouxe a t-shirt num misto de ironia e homenagem a um músico que aprecia de igual forma.
Mas houve quem conseguisse: saíram a correr da Altice Arena, enfiaram-se no metro, fizeram nova corrida da estação até ao Parque da Bela Vista e lucraram com o facto de o início do set de Aphex Twin ter atrasado uns bons minutos. Batida acelerada atrás de batida acelerada, momentos noise, luzes coloridas a alimentar uma rave distópica a céu aberto. O completo oposto de Björk, que trouxe até Lisboa a sua nova digressão, “Cornucopia”, pop ambient baseada nos seus dois últimos álbuns, “Utopia” (2017) e “Fossora” (2022). Se Aphex Twin procurou destruir, Björk, um par de horas antes, quis construir. Um mundo melhor, um mundo são, um mundo onde os nossos filhos possam ter um futuro. Uma verdadeira utopia onde natureza e tecnologia, como se leu numa mensagem projetada em palco, possam unir-se e coexistir.
Desde tenra idade que Björk nos tem habituado à luta. Lembramo-nos dos seus tempos nos KUKL, banda anarco-punk com ligações aos Crass, onde cantava temas como 'Open The Window And Let The Spirit Fly Free', ode à liberdade onde os nossos desejos precisam de ser verdade para que sejam verdade. Lembramo-nos da ironia de “Life's Too Good”, o primeiro álbum dos Sugarcubes, a pop a devorar a própria pop, apontando-lhe um espelho para que não se esqueça das suas falhas. Lembramo-nos de 'Declare Independence', que lhe valeu um cancelamento num festival na Sérvia (após tê-la dedicado ao Kosovo), críticas na China (por tê-la dedicada ao Tibete), insultos em Inglaterra e em Espanha (depois de a dedicar à Escócia e à Catalunha).
Sendo um espírito perfeitamente livre, não é possível dizer a Björk como proceder: há que escutar, há que permitir ao silêncio interior algum espaço, não gritar 'Violently Happy!' ou 'All Is Full Of Love!' como se este fosse um qualquer concerto pop ou rock de uma mega-estrela (felizmente, ninguém o fez, pelo que isto ficou apenas no campo do hipotético).
Ouvimos o coro a aquecer dez minutos antes da hora marcada e entendemos que isto não vai ser uma coisa qualquer, vai servir para pensar, para dialogar, para não ficar escondido num vídeo mal gravado no telemóvel. Com uma cortina translúcida à sua frente, Björk começou por se dispôr algo invisível aos olhos (e o que é essencial é-o), só a sua voz ecoando pela sala. Em 'Utopia', as cortinas foram-se abrindo ligeiramente, para que o público confirmasse que, sim, era mesmo Björk, era mesmo dela aquela garganta que parecia gritar no rosto do Divino patriarcal, sentado no seu trono.
Sejamos realistas, exijamos o impossível
Dispondo de sopros e de alguma batida, transformando a voz glossolálica em instrumento, Björk foi flutuando pelo éter com temas como 'Arisen My Senses', 'Show Me Forgiveness' ou 'Isobel', por vezes deixando que a natureza respirasse com a ajuda de sons gravados e do PA. 'Victimhood', na sua estreia nesta digressão, contou com um curto vídeo, animado, onde um gato antropomórfico parecia cair num abismo, até ser resgatado por uma figura humana. A batida militar de 'Fossora' entusiasmou, 'Atopos' desagua num interlúdio onde se lê, em palco: imaginem um futuro e estejam nele. Vem-nos à cabeça um dos melhores slogans do Maio de 68: soyez réalistes, demandez l'impossible.
O lado mais despudoradamente político do concerto na Altice Arena (por ser direto e não estar envolto em pop eletrónica ecológica e conceptual) ficou para antes do encore, através de um vídeo com declarações de Greta Thunberg gravadas para o efeito. Algumas delas: os adultos não têm maturidade para dizerem as coisas como elas são. Vocês dizem que amam as vossas crianças mas andam a roubar-lhes o futuro. Tudo entre críticas aos combustíveis fósseis e ao capitalismo tardio, à fetishização da existência, hoje um produto. E tudo num espetáculo que, mais que musical, foi uma espécie de teatro, o clímax da peça surgindo com a desafiante 'Sue Me' e o vislumbre de um mundo novo através de 'Tabula Rasa'. Uma utopia pensada por uma mulher, para que as mulheres a criem.
Na mensagem de Björk tudo assim parece e ao mesmo tempo parece perfeitamente ao alcance – basta acreditar, em nós, nos outros, mesmo quando o amor parece uma prisão, como em 'Pagan Poetry', tocada com a ajuda do coro islandês que a acompanha.
Depois de ter pronunciado apenas um par de “obrigados”, Björk apresentou a banda, agradeceu «a paciência» do público, arrancou para 'Notget'. E voltaria, depois de um final eletrónico e de uma ovação gigantesca, aparentando ter lágrimas nos olhos e na voz, ao ver o público erguer as luzes dos seus telemóveis para 'Future Forever', que procurou fazer com que essa mesma mensagem passe de vez. A julgar pelas reações do público, talvez tenha passado. Na Altice Arena, a flor de Björk foi a mesma de Carlos Drummond de Andrade: furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Ficha técnica de “Cornucopia”
Björk - voz, arranjos, produção, direção
Hamrahlíð Choir - coro
Viibra - flautas
Bergur Þórisson - eletrónica, direção
Manu Delago - percussão
Katie Buckley - harpa
Noir Kei Ninomiya - figurino
Sarah Regensburger - figurino
James Merry - diretor criativo, designer de figurino
Iris Van Herpen - designer de figurino
Helen Miraudo - figurino
Casa Maison Margiela
Casa Balmain
Tomikono - figurino
Johannes J. Jaruraak - maquilhagem
Vasco Freitas - penteados
Edda Guðmundsdóttir - estilista
Santiago Felipe - fotografias
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