Quando estreou, no início do novo milénio, em 2002, o filme “Cidade de Deus” revelou ao mundo uma perspetiva inédita sobre a realidade das favelas do Rio de Janeiro. Baseado no livro de Paulo Lins, e realizado por Fernando Meirelles e Kátia Lund, o filme apresentou uma narrativa crua e visceral, guiada por Buscapé, o jovem apaixonado por fotografia que nos conduz através do labirinto de betão e violência onde cresceu. A frase “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” tornou-se o lema de uma obra que, para além de conquistar uma enxurrada de prémios e várias nomeações para os Óscares, redefiniu o cinema brasileiro com o seu estilo inovador e frenético.
Agora, duas décadas depois, a Max resgata esta história com "Cidade de Deus: A Luta Não Pára", uma série que revisita e expande simultaneamente o universo do filme original. A narrativa transporta-nos de volta ao início dos anos 2000, mais concretamente a 2004, avançando 20 anos no tempo desde o período de 1960 a 1980 explorado no filme.
Pondo isto, a questão impõe-se: mudou algo na Cidade de Deus? A resposta é simultaneamente sim e não. O novo “manda-chuva” é Curió (interpretado por Marcos Palmeira, cara conhecida de novelas como "Irmãos Coragem"), que, apesar de traficante barão, é alguém afável com a comunidade e alguém que mantém uma certa ordem nas ruas — o que não significa que a violência, o BOPE e pobreza não sejam uma visão constante no bairro.
No meio deste ambiente, a série apresenta-nos novas personagens e histórias, enquanto recupera elementos nostálgicos do filme original, como as galinhas, as músicas de Gabriel o Pensador e a presença de Buscapé, que, agora mais velho e maduro, quer ser tratado por Wilson, o seu nome de nascimento. Rapidamente ficamos a saber duas coisas: que Buscapé não consegue virar Wilson e será sempre Buscapé, e que já não vive na favela, embora continue umbilicalmente ligado a ela. Primeiro, porque o seu editor não o deixa apontar a lente de fotojornalista para outra coisa que não seja crime ("é o que vende capa!"); segundo, porque continua a trabalhar no maior jornal da cidade, onde começou a carreira depois de ter fotografado o fim do reinado de Zé Pequeno, para ajudar a pagar as contas da mãe e da filha adolescente, que ainda residem na Cidade de Deus.
Quanto à série em si, é preciso deixar a ressalva: apesar de esteticamente parecida ao filme original para efeitos de sequela, Fernando Meirelles está ligado ao projeto somente enquanto produtor. Atrás das câmaras está o realizador Aly Muritiba, conhecido pelo seu trabalho em “Cangaço Novo”, que desde logo assumiu uma tarefa ingrata: honrar o legado do original ao mesmo tempo que tenta criar uma identidade distinta para a série. Não é uma tarefa fácil. Nem de contar (como se nota pelo guião apressado e algo confuso do primeiro episódio, que não é nada amigo de quem está agora a começar a entrar na saga), nem de fazer. Aliás, tanto não é que pode dizer-se até que esse é o problema de “Cidade de Deus: A Luta Não Pára”.
Ao tentar apelar a um novo tipo de audiência, mais jovem, e, ao mesmo tempo, aos fãs do filme, que cresceram com ele, acaba por nem oferecer algo totalmente diferente, nem conseguir replicar a essência e a magia da fórmula antiga. Continua a existir uma narrativa não-linear e ritmo frenético a espaços (embora sem a essência que imortalizou o original), mas mais como fan servicedo que como a melhor escolha narrativa. A crítica do The Hollywood Reporter vai mais longe ao salientar que o estilo à “Goodfellas” presente - narração a alertar para enredos que vão ser importantes mais à frente e flashbacks para dar contexto das personagens - dá a sensação de que a série passa muito tempo a olhar para trás em vez de olhar para a frente.
Se tudo isto faz com que se deva de desistir ou nem passar por “Cidade de Deus: A Luta Não Pára”? Nada disso. Apesar de não estar ao nível do original, há todo um novo leque de personagens interessante para conhecer nesta sequela ao ritmo do samba da favela. Assim como é intrigante o suficiente para querermos saber o desfecho da guerra que se avizinha no bairro. Especialmente depois de Jerusa, a advogada e namorada de Bradock, líder do grupo Caixa Baixa durante a disputa entre Zé Pequeno, Piauí e Mané Galinha, desafiar a lei da bala imposta pelo manda-chuva Curió. Afinal, há muito que sabemos: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
- O primeiro episódio de “Cidade de Deus: A Luta Não Pára” já está disponível na Max. O segundo episódio estreia a 2 de setembro.
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