Era uma vez dois entusiastas pelo storytelling. Perdoem-nos os organizadores do “Conta-me Tudo” se começamos a peça com recurso a esta muleta linguística. Mas a verdade é que foi a vontade de ouvir e contar histórias que juntou, em 2015, João Dinis (autor no SAPO24) e David Cristina, e a eles, mais tarde, o ator Pedro Górgia e o faz-tudo Fernando Alvim.
Um microfone e uma história para contar. É este o formato do evento onde, todos os meses, quatro a cinco convidados, sobem a palco para partilhar algo que viveram e que os marcou. E as histórias não se ficam pelas salas onde são contadas. Todas as semanas, no podcast com o mesmo nome, é libertada uma diferente, contando-se em mais de cem as já disponíveis. Se a voz não lhe é suficiente, pode sempre ligar no Canal Q e, com sorte, estará a dar um episódio, de uma das duas temporadas, da versão televisiva do evento.
“Gostamos muito de ter pessoas a partilhar histórias reais em palco”, começa por dizer David Cristina. O apresentador do “Conta-me Tudo”, e também ele contador de histórias, acrescenta que “faz falta um meio de comunicação mais franco, mais sincero e aberto entre as pessoas”. Porque hoje “não paramos um bocadinho para ouvir aquilo que temos para dizer uns aos outros”. E a melhor maneira de nos comunicarmos, defende, “é através de histórias”. Elas “são importantes para tudo”.
E como é que se conta uma história, devemos fazê-lo com a expressão com que abrimos este artigo? David Cristina não se manifestou relutante com a ideia quando questionado, advertiu apenas para não as terminar-nos com um, "pronto, esta foi a minha história", porque quem está a ouvi-la já sabe isso.
“O ideal é começar a história no meio da ação. Isso cativa imediatamente. As histórias são truques de magia, nunca mostras tudo, mostras só o suficiente para a pessoa continuar a querer saber mais”, conta.
O detalhe também é importante. “Não vale a pena acomodarmo-nos nos factos. É através do detalhe que o público se vai ligar à história”, refere David Cristina. E o tema, claro. A história deve ser importante para quem a conta. "As histórias, para serem importantes para o público, têm de ser importantes para quem as conta”, defende.
Pedro Górgia dá mais pistas: a história deve ser contada em três atos. Sendo o primeiro a apresentação — da situação e dos personagens, “para que as pessoas se situem”; o segundo, o detalhe — pela mesma razão que David Cristina acrescentou; e, por fim, a conclusão. Para além disso, salienta, “ser verídica é essencial”.
“Claro que podemos, em algum momento, encaixar alguns factos em determinados sítios, mudar a ordem, para fazer com que a história tenha um interesse ainda maior para quem a ouve. Mas nunca alterar factos. Nunca. Sabermos que aquela história aconteceu torna a partilha muito mais interessante. É como quando vemos um filme e lemos, logo ao início, 'baseado em factos reais'. Acho que muda logo a nossa postura e a nossa forma de o ver”, refere o ator.
E o que não se deve fazer? Górgia é rápido no gatilho: “Achar que se tem de ter graça a todo o momento”.
“Essa é que é uma das maravilhas do storytelling: não temos obrigação de ser engraçados. Não é como no stand up comedy. Por vezes, as pessoas confundem storytelling com stand up comedy, mas isso é porque são partilhas que normalmente acontecem em palco. Mas a postura é completamente diferente e não tem de haver necessariamente humor. As pessoas não são obrigadas a fazer rir. É importante que as pessoas se livrem desses grilhões”, acrescenta.
Contar uma história é “como receber um abraço coletivo”
Contar histórias pode ser terapêutico, anui David Cristina que se dá como exemplo. “Contei duas histórias em palco que foram completamente terapêuticas para mim. Uma ajudou-me a lidar com a morte de um amigo e a outra ajudou-me a lidar com um diagnóstico de cancro que recebi há uns anos [e que se revelou falso]. São coisas que nunca ficam completamente resolvidas. Falar sobre elas em frente a outras pessoas não resolve, mas pelo menos alivia. Não te sentes sozinho. Contar uma coisa destas em frente a um grupo de pessoas é como receber um abraço coletivo”.
A par das suas, partilha duas outras que considera marcantes ao longo destes anos de evento. A da radialista Joana Gama, que “contou uma história sobre uma fase difícil que passou na adolescência”, ou a do comediante Miguel Neves, que “durante muitos anos lutou contra o [consumo de] álcool e que contou uma história muito forte sobre esse período”. Pedro Górgia recorda também a história do primeiro grande amor de Zezé Camarinha que, considera, cumpriu a razão de ser do “Conta-me Tudo”: “a partir das histórias, conhecer verdadeiramente as pessoas”.
E toda a gente tem histórias para contar, dizem. — até o leitor que nos lê, certamente. " A história é sempre o mais importante, depois vem o convidado”, afirma David Cristina.
“Quando sabemos de boas histórias, vamos buscar a pessoa, seja ela quem for, quando não sabemos vamos buscar pessoas que achamos que são interessantes e que vão ter uma boa presença em palco. Porque toda a gente tem uma boa história. Nós queremos é histórias porreiras, independentemente das pessoas”, acrescenta.
“Criamos um banco de histórias e criamos memória”
Os organizadores do “Conta-me Tudo” são ambiciosos e querem expandir o seu conceito. “O nosso grande objetivo é ser o maior repositório de histórias em português, disponíveis gratuitamente para quem as quiser ouvir”, conta David Cristina.
“Queremos digitalizar as histórias orais e disponibilizá-las online para quem as quiser ouvir. Gostava que o nosso projeto se expandisse, que tivéssemos uma equipa maior e que pudéssemos correr todas as terrinhas de Portugal a recolher histórias através dos espetáculos. Apesar de termos um espetáculo muito centrado em Lisboa, isso acontece mais por uma questão de conveniência. Acho que há histórias lindas por todo o país”, conta.
Sobre a perpetuação das histórias, Pedro Górgia destaca o podcast com o nome do evento. “[Nele] criamos um banco de histórias e criamos memória. As histórias não se perdem, estamos a guardá-las para a posterioridade”, diz.
“Estamos a perder aquilo que é a tradição oral das histórias passadas da pessoa mais velha às pessoas mais novas. Mas isso é resultado da evolução da sociedade e nós temos de conseguir, com as novas tecnologias e ferramentas, pegar na tradição e adaptá-la a esta realidade. Para as próximas gerações, que não terão a possibilidade de ouvi-las da boca dos contadores”, conclui David Cristina.
As histórias de amor vão chegar ao Porto e Lisboa
Depois de esgotarem, em 2018, o São Jorge, o “Conta-me Tudo” regressa outra vez à sala emblemática situada no coração de Lisboa. Mas não se fica pela capital e, pela primeira vez, ruma à Invicta e ao Teatro Sá da Bandeira.
Nas duas sessões, a 13 e 14 de fevereiro, vai-se falar sobre amor. “Decidimos cumprir um sonho especial que tínhamos desde o primeiro ano: fazer um evento no Dia dos Namorados. Todas as histórias são de e sobre amor”, conta David Cristina.
A cantora Sara Tavares, o humorista Daniel Carapeto, o ator Ângelo Rodrigues e a apresentadora Isabel Silva são os convidados transversais às duas datas. A atriz Alexandra Lencastre será a convidada especial da edição de Lisboa, a 14 de fevereiro, e o chef Rui Paula da edição do Porto, um dia antes.
Se ficou com vontade, não só de assistir, mas também de contar “a” sua história, os organizadores convidam-no a enviar um e-mail para contatudoaqui@gmail.com.
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