O pesadelo do comboio
É um pesadelo que há cerca de meio ano o “persegue”, no sentido de que de longe a longe se repete, e embora de vez em quando variem nele os detalhes ou a situação, o sentimento final que em sobressalto o faz acordar é sempre o de um perigo iminente. Não a ameaça de alguém ou um desastre, mas a certeza de que quando o comboio parar na estação – sempre uma de fim de linha – o inevitável acontecerá.
Sente-se então a contar os minutos que ainda faltam, treme ao ouvir os altifalantes anunciar a proximidade da chegada. É esse o momento em que, embora dê conta que o comboio está quase a parar, não consegue suprimir um grito de terror, porque de súbito, como se se tivessem desfeito no ar, os outros passageiros desapareceram e tudo se transforma. Faz-se um silêncio irreal, o que era a carruagem como que se vai desfazendo, está sem vidraças, sem portas, encolhe lentamente, quando o movimento pára fica transformada num compartimento menor do que uma cela, tornou-se um cubículo de metal em que, embora com dificuldade, consegue respirar, mas ignora por quanto tempo ainda.
Não grita, tem consciência de que a hora da sua morte ainda não chegou, mas é algo inconcebível, de tal maneira temeroso que desafia a imaginação, ultrapassa o que possa fantasiar sobre os martírios do Inferno.
Então, como o afogado que lentamente consegue vir à tona da água, respira fundo, acorda tresmalhado e senta-se, surpreendido de que o candeeiro na mesinha de cabeceira esteja aceso, a Judite a sorrir e a encará-lo com uma expressão que desde há uns meses nota, mas não consegue deslindar o que significa.
Nos últimos tempos qualquer coisa mudou nos dezoito anos de casamento, embora nenhum deles seja capaz, queira, ou se arrisque a pôr o dedo na ferida. Se ferida se pode chamar à sucessão de pequenas diferenças, pequenos desentimentos, quezílias, queixas, aborrecimentos, distrações, enganos, a súbita urgência que ambos sentem em discordar, esquecer uma promessa, ou não perder a oportunidade de passar uma rasteira, mesmo pequena.
Têm a certeza que na sua relação, aliás nunca sem percalços, qualquer coisa lentamente vai mudando, mas é assunto a que nem com rodeios aludem, combates virtuais em guerra não declarada.
Dias atrás, no fim do jantar, como se por acaso aquilo lhe ocorresse, perguntou-lhe se também às vezes sofria de pesadelos. A reacção da Judite foi estranha, desatinada, a do malfeitor apanhado em flagrante.
Não tem provas, só a forte suspeita de que ela o quer envenenar.
O que conta é a fé
Ninguém brinque com a devoção da Amélia, ou julgue que é caso para rir o ela às tardes estender um tapete na sala, ajoelhar-se, e com dificuldade, devido não só à gordura, mas também porque aos sessenta o corpo já não é o que era, curva a cabeça e tenta beijar o chão. Tenta, não consegue, repete umas quantas vezes, até que a bufar, o corpo dorido do exercício, se arrasta para o sofá e deixa-se cair nele, resistindo a cerrar os olhos um segundo que seja, pois sabe que deixando-se adormecer ali depois do “exercício”, talvez só se a casa começasse a arder seria capaz de acordar.
Aquele ritual de estender um tapete, ajoelhar-se e depois esforçar-se por beijar o chão, começou-o ela faz tempo, uma noite em que um sujeito qualquer apareceu na televisão a explicar o que era o islamismo e por que razão os árabes rezavam cinco vezes ao dia.
O que ouviu deu-lhe que pensar, e a ideia não a deixava de que a fé católica em que tinha sido criada, talvez não fosse bem aquilo que lhe tinham ensinado e se dizia. Se os árabes rezavam doutra maneira, como é que ela ia saber se só havia o Deus dos cristãos?
E se houvesse dois, o nosso e o deles? Teríamos de rezar a ambos? Ainda por cima punha-se a questão da língua, porque pelo que tinha ouvido a reza deles era muito diferente, não tinha nada que se parecesse com padre-nossos nem avé-marias.
Andara meses a remoer, mas embora não lhe faltassem amigas havia assuntos que achava demasiado íntimos para discutir com elas, como também não ia arriscar que começassem com falatórios ou lhes parecesse que estava a ficar fraca da tola.
Enviuvara cedo, no casamento tinha sido infeliz, mas agora em certas ocasiões sentia a falta de alguém com quem se pudesse aconselhar, embora se fosse vivo, trombudo como era, só interessado se o dia estava bom para ir com os amigos à pesca, o Adalberto nem sequer seria hipótese. A falar verdade, mas isso a ninguém o confessaria, tinha fingido bem as lágrimas de viúva, mas perdê-lo fora um alívio.
Porém agora, como aquilo das cinco orações dos árabes não lhe saía da cabeça, nem queria ter com ninguém esse tipo de intimidade, resolvera experimentar, mas à sua maneira. Não cinco, só uma vez ao dia. Desdobrava o tapete, ajoelhava-se, e curvada até onde o corpo lho permitia tentava levar a cabeça ao chão, mas o resultado era sempre o mesmo. Depois erguia-se a custo, arrastava-se até ao sofá, e sinceramente preocupada com a hipótese de haver um Deus cristão e outro dos árabes, rezava dois padre-nossos.
A fome da fama
Há visitas assim, a porta da rua ainda mal se abriu e quase nos empurram com a urgência de entrar, no mesmo instante estão na sala, e sem intróito começam a desfiar queixas, lamentações, perdas, tudo num acelerado que nos perguntamos se a pessoa consegue respirar ao mesmo tempo que fala. Consegue, até dá a impressão de que não se cansa, por certo tem pulmões que excedem de longe os de capacidade corrente, pois doutra maneira não se explica a bizarra intensidade do seu comportamento.
Num longínquo passado, quando a idade já alguma coisa me ensinara do trato com o semelhante, e das ratoeiras que vamos encontrando, a Lídia, então adolescente, entrou na minha vida de mansinho, fingindo pedir que lhe ensinasse como desenvolver a arte da escrita, pois só os livros contavam na sua vida, e nos horóscopos lia muitas vezes que viria a ser uma escritora de renome.
Era trinta e um de boca, o que ela de facto procurava era alguém que, ao contrário dos pais, tivesse paciência e bondade para lhe ouvir os sonhos e os desvarios que são as “doenças” da juventude. Essa fase durou pouco, sucedeu-lhe outra em que ora aparecia de repente, ora passavam-se meses sem novas nem mandados, e perguntar não adiantava, pois nem a família sabia das suas andanças.
De súbito, num espanto comparável ao que causam as explosões, apareceu-nos a Lídia em tudo quanto é dessas revistas em que se acompanha a vida dos ricos e dos famosos, casada com um Mendoza, madrileno, milionário, pelos jeitos dono e senhor de mais farmácias do que dias tem o ano, e lojas de óculos outras tantas.
Veio depois a fase da televisão, a Lídia em tudo quanto era júri e concurso, ora sobre canções e cozinhados, ora cuidados da pele, miss isto miss aquilo, o aquecimento do planeta, a sujidade dos oceanos, a protecção dos órfãos na Somália.
Se sou franco, devo confessar que a páginas tantas, a ubiquidade da Lídia alcançara um ponto em que a reacção imediata à sua presença era desligar a TV, atirar com a revista e conter o ímpeto de rogar pragas a tanta vaidade.
Foi então que uma tarde oiço à porta pancadas autoritárias, vou abrir e a Lídia entra em pé– de-vento, ao mesmo tempo que me põe nas mãos um calhamaço com a aparência de uma resma de papel e desata aos gritos num ataque de histeria:
– El hijo de puta deixou-me! Mas vai pagar, ó se vai! Leia isso! Já ouviu falar dos livros da Elena Ferrante? Nem aos calcanhares me chega! Leia isso e depois falamos.
Saiu como tinha entrado e não voltou a aparecer, mas tremo quando agora batem à porta.
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