III

Um míssil nuclear de médio alcance havia sido lançado sobre a região de Opochka, onde existia um silo de ICBM, os temíveis mísseis inter- continentais. Era a resposta da França a um míssil russo recebido meia

hora antes e que atingira a zona industrial de Metz. Cerca de uma hora depois, o Reino Unido disparava também um míssil nuclear que explodiria sobre a região de Smolensk. Iniciava-se assim a guerra mais receada de sempre, aquela que poderia acabar com a espécie humana.

Nenhum destes mísseis caiu sobre cidades, mas o impacto de qualquer deles varreu tudo num raio de cinco quilómetros, tendo as ondas de choque atingido zonas povoadas, como foi o caso de Opochka. A radiação engoliu toda a região num ápice, enquanto uma chuva de cinza começava a cair suavemente sobre a zona leste da cidade. As águas do Velikaya galgaram as margens com enorme violência, causando a diminuição do caudal, por força da evaporação, e enchendo as ruas de peixes mortos, as duas imagens que mais impressionaram quem assistiu e teve a sorte de ficar vivo. O silo do ICBM, porém, permanecera intacto.

No «retiro dos heróis», totalmente às escuras, procurava-se entender o que acontecera. A primeira reação foi um silêncio sepulcral, pelo sucedido e pela expetativa de voltar a suceder, assim à moda dos fogos de artifício, em que um foguete precede sempre outro e a seguir a este um outro virá. Quando se percebeu que não havia mais, ouviu-se um curto comentário, em forma de pergunta:

— O que foi isto?

Quem assim falou foi Anna, a primeira a intervir, talvez porque, no recôndito da sua feminilidade, acreditasse que os rapazes percebem mais de explosões do que as raparigas.

Sabia-se o que tinha sido, ou suspeitava-se do que tinha sido, só que era uma realidade tão difícil de aceitar que até soava a disparate mencioná-la sem ser por brincadeira. As explosões nucleares faziam parte do imaginário dos jovens, desta e de outras gerações, mas apenas através de filmes de ficção cien- tífica, a mesma ficção científica que lhes dava a conhecer o Jurassic Park e o Godzilla. Ninguém acreditava, por certo, que alguma vez o mundo viesse a ser palco efetivo de ataques nucleares, da mesma forma que ninguém esperava ver a passear pelas ruas o Godzilla ou um Tyrannosaurus rex.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

— Estão todos bem? Digam alguma coisa.

Mikhail, o anfitrião, achou que devia fazer as honras da casa e, nessa medida, ser ele a inteirar-se do estado de cada um, como se se sentisse responsável pelo que acontecia em sua casa.

— Eu acho que estou inteiro — murmurou Ivan, apalpando-se rapidamente por todo o corpo, no meio de total escuridão. Fora projetado ao solo e levara atrás de si a bateria, que se desconjuntou. Sergey confirmou que também estava inteiro, embora tivesse batido com a cabeça em qualquer lado e, sem o saber, estivesse a sangrar. Mikhail e Anna levantaram-se do chão, atordoados, mas sem quaisquer ferimentos. Alex, por sua vez, continuava no mesmo sítio, sentado numa caixa de madeira e de guitarra nas mãos, feito estátua.

Quando perceberam que não havia problema de maior, lançaram-se em busca dos telemóveis, o seu bem mais precioso naquele momento. Sergey tinha-o no bolso, não foi preciso procurar muito, e, ligando a aplicação da lanterna, apontou-o aos colegas, que andavam a vasculhar por entre a traquitana amontoada no chão, como quem joga à cabra-cega.

Alex era a exceção. Permanecia sentado. De guitarra ainda nas mãos e entregue a si próprio, ausente. Anna estranhou e foi até junto dele.

— Alex! Estás bem?

Não parecia ferido, pelo menos por fora. Ela passou-lhe a mão pelo rosto e cofiou-lhe aquela barba rala com que costumava meter-se consigo. («Isso não é barba, é penugem», usava gracejar, enquanto ele a coçava como se tivesse uma barba à Charles Darwin). Notou que o namorado tremia, um tremer intenso e em todo o corpo, parecia que um frio de rachar se tinha apossado dele. Estava-se em pleno verão, frio não podia ser (desmistifique-se desde já a ideia de que na Rússia há frio durante todo o ano e em toda a parte, a Rússia é tão grande que, quando está frio num lado, está calor no outro, pelo menos é o que diz o povo).

— O que foi, amor? Estás ferido?

Ele negou com a cabeça e suspirou. Olhou para ela e, quase num sussurro, murmurou:

— Não quero acreditar que aconteceu, mesmo...

Pousou a guitarra e abraçou a sua amada. Alex acabara de constatar que estava errado, que a sua teoria sobre o palavreado da boca para fora por parte dos políticos tinha ido por água abaixo. Aquilo que nunca iria acontecer aconteceu mesmo, e no sítio onde ele se encontrava. Era uma inversão total das suas convicções, da sua forma de entender os homens, o que lhe fez uma confusão enorme, pois raramente o que acontecia por esse mundo fora o surpreendia. Enganara-se e logo naquilo em que não se podia ter enganado. Pela primeira vez sentiu-se reduzido à ínfima espécie, um ser amorfo, ignorante, que não contava para nada.

— Isto foi uma bomba que explodiu, não foi? — perguntou Ivan, sempre o menos lesto a perceber o que todos julgavam perceber primeiro.

Olharam-no, os outros. Ivan era como que a mascote do grupo, não havia forma de não gostar dele, mas às vezes faltava a paciência para aturar tanta ingenuidade.

— Foi uma bomba, sim, mas das fortes — respondeu Mikhail.

— Caramba! Vejam bem como isto ficou — Ivan apontava o dedo para os instrumentos da banda, espalhados pelo chão, exceção feita à guitarra acústica de Alex. Todas as partes da sua bateria pareciam intactas, já o mesmo não se podia dizer do órgão, cujo teclado caíra sobre a mesa de mistura e perdera algumas teclas. Mikhail ficou sem palavras, o seu órgão ainda nem pago estava...

Livro: "De Putin com amor"

Autor: José Sequeira Gonçalves

Editora: Saída de Emergência

Data de Lançamento: 12 de outubro de 2023

Preço: € 16,60

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Passados os primeiros instantes de confusão, era tempo de organizar as ideias.

— Temos de poupar a bateria dos telemóveis, não sabemos quanto tempo vamos ter de ficar aqui — disse Sergey, levantando o seu Samsung 3.0 no ar em busca de rede.

Ivan arrebitou a orelha e olhou-o, sem perceber. Iriam ter de ficar naquele buraco? Porquê?

— Alguém tem rede? — Anna imitava Sergey, de braço no ar e olhos no ecrã do telefone. Nada. Ninguém tinha rede.

Mikhail pôs-se a rebuscar numa gaveta onde havia todo o tipo de bugi- gangas, há sempre uma gaveta destas nas caves. Procurava uma lanterna. A gaveta só tinha pregos, parafusos e ferramentas diversas. Poderiam vir a dar jeito, é certo, mas a lanterna era mais importante. A um canto da cave havia uma espécie de baú, no qual, surpreendentemente, nunca tinham reparado, talvez por estar coberto por roupas. Era agora, no meio da escuridão e com a luz do telemóvel, que se apercebiam dele, dando razão ao dito popular de que a necessidade aguça o engenho.

Mikhail abriu o baú, com grande dose de curiosidade à mistura, e viu que estava cheio de coisas antigas, quase tudo papel: jornais, revistas, faturas, cadernos da escola. Havia também um pequeno embrulho de plástico, atado, ao qual Mikhail não ligou, pois percebeu que devia conter mais papéis. O que ele queria era a lanterna, e, milagre dos milagres, daqueles que só acontecem nos filmes, no fundo do baú lá estava uma lanterna, com uma caixa de pilhas ao lado. Antes que se comece a especular que é um pouco despropositado en- contrar uma lanterna com pilhas dentro de um baú numa cave, pense-se que, algures no tempo, poderá ter acontecido o que Mikhail aventou:

— Alguém já deve ter ficado sem luz nesta cave, e lembrou-se de deixar aqui uma lanterna para uma emergência futura.

Concordaram, era uma explicação aceitável. Mikhail acendeu-a, ouvindo-se uns «ah» de alívio quando a apontou à sua volta, como se tivesse, de facto, mudado alguma coisa na situação deles.

— Temos luz, companheiros, já podemos ficar por aqui o tempo que for preciso.

Ivan começou a ficar irritado, não entendia o que se passava.

— Porque é que temos de ficar aqui, afinal? — perguntou. Mikhail apontou-lhe a lanterna, tentando perceber se o miúdo falava a sério. Alex decidiu então retomar o seu papel de líder, deixando para trás o que, poucos minutos antes, lhe havia ensombrado o espírito a respeito das suas certezas. Chegou-se junto de Ivan e disse-lhe, muito devagarinho, tal como diria a uma criança:

— A bomba que acabou de cair foi das fortes, Vanya, porque foi uma bomba nuclear. É a razão por que vamos ter de ficar aqui.

— Mas... mas... como podemos ficar aqui? E a comida? E os nossos pais?

Ninguém respondeu. Talvez devido à sua idade, Ivan era o único que ainda pensava nos pais quando se via em apuros. Não que fosse um menino da mamã, mas era o que sentia maior necessidade da asa protetora da família. Andava ainda a navegar nas águas da pré-adolescência.

Logo surgiram as primeiras conjeturas sobre os cenários que dominariam o mundo exterior nesse momento, desde os mais brandos aos completamente apocalíticos. Teria sido uma simples bomba ou estaria já o mundo em plena guerra? Teria alguma cidade sido já destruída, como acontecera a Hiroxima em 1945? Teriam os familiares deles ficado feridos? Estariam mortos? Mikhail pousou os olhos no bombo da bateria, onde aparecia inscrito o nome da banda, Apokalipsis, e esboçou um sorriso irónico. Pela primeira vez, aquele nome parecia-lhe um perfeito disparate. Alex havia sido o autor, inventara-o no meio de uma discussão sobre a Bíblia, em que ele, Alex, se metera com Sergey e com as suas convicções religiosas. Haviam estado a brincar com o fogo, era o que era, agora aí tinham o prémio.

Anna dobrou-se e apanhou uma lata de conserva do chão. Havia imensas por ali espalhadas, tantas que o solo parecia forrado a conservas.

— Acho que comida não vai ser o nosso maior problema — disse, mostrando a conserva aos amigos. A marca era Ramirez, de conserva portuguesa. A família Ligatchev adorava conservas portuguesas, quase todos os dias co- miam atum, sardinha e cavala. Mikhail confirmou-o:

— Sim, esta é a principal despensa da casa, há por aqui muita coisa. Conservas, quase tudo.

Havia conservas, havia bolachas salgadas, havia também latas de fruta aos bocados e frascos com feijão. Era uma despensa rica, de fome não iriam padecer tão cedo.

— E água? Terá sobrado alguma?

De repente deu-lhes a sede a todos. Mas não tinham com que se preocupar: Mikhail apontou a lanterna para o local onde costumavam abastecer-se durante os ensaios. Lá estavam várias embalagens de garrafas e alguns garrafões.

Nesse instante, Anna ligou o interruptor das luzes, só para ter a certeza de que não andavam por ali a fazer figuras de urso, de lanterna na mão e afinal já haver luz. As luzes continuaram apagadas e o mesmo acontecia com a iluminação pública no exterior, pois pelo respirador da cave não passava uma nesga de luz. Opochka deveria estar completamente às escuras.

Ivan levou uma garrafa de água à boca, deu uns goles e, limpando a boca à manga da camisa, saiu-se com esta:

— Porque é que dizem que foi uma bomba nuclear? Pode ter sido uma bomba das outras. Se caiu aqui perto, o impacto teria de ser algo parecido a isto.

Ficaram em silêncio. No primeiro instante, para considerar que o rebenok não ganhava juízo, continuava a raciocinar como uma criança; no segundo instante, para pensar que o rebenok poderia afinal ter razão; no último instante, para reconhecer que, razão, o rebenok a tinha toda. Qualquer bomba que caísse ali perto, fosse nuclear ou convencional, ou se calhar até caseira, teria causado o impacto que esta causou. Perceberam que haviam empolado a sua análise devido às notícias da televisão, que todos os dias atormentavam o povo com o nuclear, as bombas nucleares, a guerra nuclear. Não surpreendia, por isso, que uma qualquer explosão com impacto fosse logo tomada por um ataque nuclear.

— Não deixas de ter razão, Vanya. Pode não ter sido uma explosão nuclear — comentou Alex, ainda espantado com o facto de não ter sequer pensado nisso.

— Então, como é que vamos saber? — perguntou Anna, fixando o namorado.

Por cima da cave, em casa dos Ligatchev, não havia ninguém, o que obrigava a ter de se sair do buraco para comunicar com quem quer que fosse. Não tinham muito por onde escolher.

— Não sei, se calhar teremos de ir lá acima espreitar — respondeu Alex.

Nenhum se mostrou interessado em arriscar, o ditado «a curiosidade matou o gato» nunca parecera tão apropriado. Mas a verdade é que, saindo ou não do buraco, todos acabariam por ser afetados se a explosão tivesse sido nuclear. Alex compreendeu-o e decidiu avançar:

— Eu vou.

Despiu o pulôver e envolveu com ele a cabeça, deixando apenas os olhos de fora. Fê-lo porque o tinha visto em filmes, não porque acreditasse que serviria para alguma coisa.

— Desejem-me sorte — pediu ele, meio a sério meio a brincar.

Pegou na lanterna de Mikhail e subiu lentamente os degraus que conduziam ao exterior. Nessa curta viagem, que pareceu durar uma eternidade, Alex viu passar diante de si grande parte da sua vida, não percebeu porquê. Foi como um álbum de memórias que se foi abrindo à medida que atacava cada degrau. Ele foi o momento em que entrou pela primeira vez naquela cave, ele foi o momento fantástico em que conheceu Anna, ele foi o primeiro beijo, a primeira guitarra, a primeira canção. Ele foi, também, a notícia da morte do irmão na guerra da Ucrânia e a raiva que então o tomou, para sempre, em relação a Vladimir Putin...

Quando chegou ao fim das escadas, agarrou a maçaneta e, com mão trémula, abriu a porta que dava para o piso superior. O corredor não parecia muito desarrumado, apenas alguns quadros e vidros espalhados pelo chão. Vários dos quadros eram fotografias de Vladimir Putin, os pais de Mikhail adoravam-no. Quando chegou à sala, porém, Alex arregalou os olhos: não havia um único objeto intacto, sendo que o chão constituía um caótico amontoado de destroços. Mesas e cadeiras partidas, livros ao deus-dará, um móvel de pernas para o ar e sem gavetas, que se haviam espalhado por todo o lado, vidros partidos. A parede do fundo dava a impressão de ter sido golpeada por facas e outros objetos de metal, de picada que estava, enquanto ao centro surgia um quase buraco que mais não era do que o resultado do impacto do samovar projetado contra a parede. A janela desaparecera.

Pelo ar percebia-se um pó difuso cuja origem Alex não conseguiu descortinar. Podia ser pó, podia ser fumo, podia ser a mistura dos dois. Aproximou-se da janela, a medo. O coração batia mais rápido no momento em que pôs a cabeça de fora.

O cenário era dantesco. Umas casas ardiam, outras ficaram sem telhado, as bétulas que ornamentavam os passeios estavam nuas ou derrubadas no chão, havia carros virados ao contrário e outros atirados contra o casario. Não se via uma pessoa. Mas foi quando se voltou para observar a parte norte da rua que Alex entendeu finalmente o que tinha acontecido: por entre as cinzas que caíam suavemente sobre a cidade, distinguia-se no horizonte um vulto gigantesco e inconfundível, a apontar ao céu, que só podia ser o que restava de um cogumelo nuclear, já em fase de resolução.