Entra-se em Ponte de Lima e a primeira impressão é aquela que é deixada pelo ruído. Carros e carros, muitas matrículas francesas, passam pelas ruas, o querido mês de Agosto a matar as saudades de quem emigrou. Há o ruído das máquinas que vão alisando o areal, hoje de estacionamento interdito, outrora guardado – a troco de uma moedinha – pelo esforço incansável de Zé Leão, lamentavelmente falecido em 2022. Passa um grupo de crianças, em excursão. Tilintam copos nas esplanadas. Ouve-se música, nos bares, em altifalantes dispersos. A vila mais antiga de Portugal mexe sempre durante o verão, mas este é um verão diferente: este ano, Ponte de Lima juntou-se ao mapa festivaleiro.

Este nem sequer é o primeiro dia. Hoje, o mote é receber da melhor forma quem teve a coragem de acampar – e haviam uns quantos, tendas montadas ao longo de um pequeno corredor reservado para o efeito, junto à ExpoLima. Durante a tarde, damos uma volta pela vila e acabamos no Chusso Bar, situado numa antiga fábrica de guarda-chuvas (“chuço” significa isso mesmo, no norte do país). À porta, o Festival Ponte d'Lima faz-se representar por uma mão cheia de panfletos, onde se lê, à frente: “Juntos vamos pôr Ponte de Lima na rota dos grandes festivais nacionais!” e, do avesso: “Pedimos desde já tolerância e compreensão pelo ruído, mas contamos com o teu apoio para juntos criarmos história em Ponte de Lima!”.

Não é que Ponte de Lima precise de história, já a tendo em barda. As Feiras Novas, romaria que leva até à vila milhares e milhares de pessoas todos os anos, são disso exemplo. É daqui um dos maiores atletas nacionais, o canoísta Fernando Pimenta. Foi aqui que, reza a lenda – e há uma estátua a tentar prová-lo –, Decius Junius Brutus comandou uma tropa romana atemorizada por julgar ter diante de si o Lethes, famoso rio do esquecimento na mitologia antiga. Que lhe faltava, então? Uma outra história, uma outra cultura alternativa.

“Não há dinamismo musical em Ponte de Lima”, conta-nos Francisco, também conhecido como Big Dipper Downer, músico que foi encarregue de abrir a primeira ediçao do festival. Perguntamos-lhe se este evento poderá ajudar músicos locais, como ele, e a resposta é peremptória: “Muito. Porque, para já, não há nada”. O Ponte d'Lima, diz-nos, “pode trazer pessoas, criar talvez uma rede que possibilite fazer mais, se não melhor. Vem ajudar, vem impulsionar a cultura jovem e alternativa limiana”.

Das romarias ao festival

Homem das eletrónicas, que começou em combustão lenta e acabou a enveredar pelos caminhos da batida mais forte, Big Dipper Downer foi um de dois projetos autóctones a fazer parte do cardápio deste primeiro dia. O outro, New Error, techno sem receios nem rodeios, foi encarregue de fechar o dia com um 4/4 hipnótico, perante dezenas de bravos resistentes (eram 2h45 da madrugada quando começaram o seu set). Vítor Araújo, uma das metades da dupla, descreve o Ponte d'Lima como “uma porta de abertura” para “as nossas ideias, os nossos conceitos, as nossas músicas propriamente ditas”. “Estamos a estrear algo que é nosso. Somos daqui, somos da casa, estamos a tentar criar uma base para uma estrutura maior”, explica.

Basta andar pelo recinto e constatar que, de dois em dois passos, há alguém que se cumprimenta, alguém que se abraça, alguém que pede ou promete finos – e por “alguém” referimo-nos a limianos – para tomar essa ideia como uma certeza: este é um festival que é nosso, de Ponte de Lima. Mesmo que, afiançou a organização durante a apresentação do evento, há duas semanas, 57% dos bilhetes vendidos tenham sido para gente que nem sequer reside no Minho. Neste dia de entrada gratuita, o que mais se testemunhou foi gente local, que aproveitou para tomar o pulso daquilo que estava a acontecer e que irá durar mais dois dias. Paira no ar a confiança de quem sente que isto é, verdadeiramente, história.

Uma celebração do futuro

“Ponte de Lima é uma vila que sempre honrou o seu passado enquanto vila milenar, e achamos que este festival pode vir a ser uma celebração do futuro”, conta-nos Jorge Dias, um dos responsáveis pela organização do festival. “Acreditamos que estamos a dar aqui um passo bastante importante para o território e para o Minho, no fundo”. O Ponte d'Lima começou a ser “sonhado” em 2022, mas só este ano conseguiu tomar de facto forma. “Juntar toda esta logística, toda esta qualidade musical, todas estas equipas de trabalho” foi algo que foi feito “no limite”, afiança, “mas fazemo-lo com um objetivo muito claro, de promover o território, de promover a vila, e com o coração também de quem ama o Minho”, quer estejamos a falar de música ou de papas de sarrabulho.

Não é fácil montar um festival, muito menos quando se trata de uma primeira edição. “Como qualquer filho, quando nasce, acabamos sempre por ter um esforço redobrado para que tudo corra bem”, disse. “Há sempre um esforço de adaptação ao terreno, logístico e técnico. Mas sabemos que também estamos a semear para colher. A verdade é que também beneficiámos deste grande, grande espaço que é a ExpoLima, que nos garante todo o tipo de infraestruturas, de apoio técnico e logístico, e que no fundo também facilita o nosso trabalho. Estamos confiantes de que numa segunda, terceira ou quarta [edições] será bastante mais simples”.

Normalmente utilizada como espaço para outro tipo de feiras e, até, para desporto equestre, a ExpoLima tem capacidade para receber “até 10 mil pessoas”, diz-nos Jorge, mas para o festival são esperadas cerca de 5 mil pessoas por dia. “Somos cautelosos”, garante. De facto, o concerto dos lisboetas Máquina não teria tido, muito provavelmente, metade da piada caso o público ali estivesse, como sardinhas em lata, a dançar ao som de um rock bojudo e psicadélico (que muito devia à motorika alemã), onde as canções se arrastavam o tempo suficiente até à morte do ego, completas por uma voz oriunda de um além ácido.

Este é um festival onde dá para circular sem andar aos encontrões, onde até é possível, se se estiver virado para isso, alugar um caiaque e passear pelo rio. Há outro igual? De maneira nenhuma.

Pelo “dia zero” passaram ainda os Quadra (guitarras e ritmos dançáveis, uma espécie de Sensible Soccers mais hedonistas) e os Zebra Libra (rock apunkalhado com referências a 'London Calling' e à 9ª sinfonia de Beethoven). O Ponte d'Lima propriamente dito arranca esta sexta-feira, com José Pinhal Port-Mortem Experience, Capitão Fausto, Aron, Throes + The Shine  ou Legendary Tigerman. Para já, está-se como o norte-americano, nascido no Minnesota mas criado no Colorado, que veio para Ponte de Lima com uma intenção muito simples: mudar-se permanentemente.