As gerações mais novas podem pensar que só os Måneskin conseguiram fazer da música feita em Itália um sucesso de vendas. As mais velhas lembrar-se-ão dos anos 90, quando “Tutte Storie” andou pelos lugares cimeiros dos top europeus, vendendo mais de 4 milhões de cópias e levando Eros Ramazzotti a assinar um contrato com a BMG International. Numa era em que o grunge dominava a cultura juvenil e alternativa, foi 'Cose Della Vita' a dar música aos verões da Europa mediterrânica, aquele sto pensando a te... a provocar faísca nos momentos mais românticos do calor estrelado, aquela guitarra elétrica melodiosa a permitir o enlace de mãos e o cruzar de lábios. Pop/rock de toada suave, que para uma geração alimentada a Nirvana e Pearl Jam seria tudo menos cool. Mas depois lembramo-nos de que o seu videoclip foi realizado por um tal de Spike Lee...

O rótulo de “cantor romântico” (esse epíteto que provoca uma aversão imensa na esmagadora maioria dos melómanos) que colaram a Ramazzotti pode impedir essa coolness, mas não nega o seu sucesso. Nascido nos subúrbios de Roma, oriundo de família operária, cedo o italiano descobriu uma propensão para a música, começando a tocar guitarra com apenas 7 anos.

Em 1981, participou num concurso de talentos, o Festival de Castrocaro (que existe desde 1957), chegando à final e merecendo os elogios de Roberto Galanti e Lando Lanni, que à altura representavam a editora italiana DDD. Foram eles os responsáveis pelo primeiro contrato discográfico de Ramazzotti, que ainda teve que penar um pouco: o seu primeiro single, 'Ad Un Amico', não foi bem recebido, e só num outro festival, o mítico Sanremo, em 1984, é que o jovem músico tocou a fama, vencendo na categoria de Melhor Artista Novo. No ano seguinte, voltou ao evento com 'Una Storia Importante', que se tornou num sucesso europeu. E, em 1986, foi lá apresentar 'Adesso Tu', que lhe valeu o primeiro prémio.

Daí, Ramazzotti partiu à conquista do continente. Chegou a disco de ouro na Alemanha e a disco de platina na Suíça, atuou perante milhares de pessoas, cantou ao lado da britânica Patsy Kensit. “In Ogni Senso”, álbum editado em 1990, levou 200 jornalistas de todo o mundo a cobrir a festa de lançamento, numa altura em que as editoras ainda tinham grana suficiente para esse tipo de brincadeiras. E fez com que o mercado norte-americano começasse a prestar-lhe atenção. Nesse mesmo ano, o músico atuou em Nova Iorque, perante uma plateia esgotada e sobretudo composta por italo-americanos, e marcou presença no programa de televisão do comediante Jay Leno e no icónico “Good Morning America”.

A América é, grosso modo, uma barreira quase intransponível para um artista que não seja anglo-saxónico (nos últimos anos, só o reggaeton e a k-pop têm conseguido quebrar essa hegemonia), mas “Tutte Storie” andou lá perto, vendendo mais de 200 mil cópias nos Estados Unidos. Ramazzotti atuou nos prémios europeus da MTV, andou pelos mesmos palcos que Rod Stewart, Elton John ou Joe Cocker, fez duetos com Tina Turner, Cher ou Santana. De lá para cá, vendeu mais de 55 milhões de discos por todo o mundo e continua, quase 40 anos depois do início da sua carreira, a encher salas de espetáculos por onde quer que passe. Portugal não foi exceção, com duas datas na Altice Arena, naquela que foi a apresentação ao vivo do seu novo álbum, “Battito Infinito”.

O tempo não lhe passou pela laringe

O título significa algo como “batimento infinito”, e foi com o som desse mesmo batimento cardíaco, misturado com um estranho pós-rock, que Eros Ramazzotti subiu ao palco. Situado ao centro, mais envelhecido do que quando partia corações adolescentes, mas não com menos pinta. Bota e calça preta, camisa impecável, mosca no queixo, pose roqueira assim que se escuta um solo de guitarra a puxar para o épico. E, o que é mais importante, a sua voz, poderosa, inalterada. O tempo não lhe passou pela laringe. O concerto, esgotadíssimo, abriu com a canção que dá nome ao disco, e que terminou com o italiano de joelhos, numa prece em honra do Deus música. Aplaudiu-se o sentimento, e o final caótico, as suas vocalistas de apoio (Monica Hill e Roberta Gentili) em uníssono: in volo liberi.

Um obrigado e um Lisboa num português com sotaque deram então o mote para um espetáculo que se fez com muito italiano à mistura, terrível para quem não sabe falar a língua più bella. 'Gli Ultimi Romantici', outra das canções do novo álbum, pareceu troçar dessa ideia de Ramazzotti enquanto cantor romântico, ou então foi apenas uma demonstração de ego à la hip-hop. Um piano como só os italianos sabem tocar (basta procurar por uma coisa chamada italo disco), um coro no final que não destoaria num tema dos Coldplay. Não seria o melhor de um concerto que foi tudo o que a pop deve ser: efusiva, celebratória, espetacular. E que teve no público o seu pior. Tirando três dúzias de fãs mais estarrecidos, boa parte das filas da frente preferiu pagar bilhete para se sentar com ar carrancudo e conferir as notificações do seu telemóvel, erguendo-se apenas nos maiores êxitos ou quando, depois do concerto, Ramazzotti puxou pelo nome Portugal. Talvez não sejamos um país de cantores, mas de patriotas a horas certas somos de certeza.

Imune a isso, Ramazzotti foi desfilando canção atrás de canção, entoando um dueto virtual com Alejandro Sanz, cuja voz marcou presença na Altice Arena através dos ecrãs, em 'Sono'. «Obrigado por estarem aqui. Bom concerto e um beijinho», diria depois. As três supracitadas dúzias ouviram-no e correram das suas cadeiras, acercando-se do palco para estarem mais próximos do seu ídolo: um bando de Eros num mar de Tânatos. Alguém lhe entregou uma bandeira de Inglaterra para as mãos, à qual o músico fez questão de limpar o rosto; a dona da bandeira recolheu-a e voltou rapidamente ao seu lugar, agarrando-se jubilante ao inesperado prémio.

'Quanto Amore Sei', de 1997, teve a ajuda de um outro fã, ao qual Ramazzotti passou o microfone. E 'Un'Emozione Per Sempre', de 2003, levou ainda outra a tirar uma selfie com o músico, antes de lhe espetar um chocho no cocuruto. Isto para dizer o seguinte: o mundo pertence aos que não têm vergonha de ser felizes.

Claro que essa felicidade por vezes pareceu resvalar para o caos, com o italiano a ameaçar, bem-humorado, com uma palmada um fã que se aproximava de Roberta. Uma outra, em 'Un'Altra Te', acabaria expulsa, descalça e a dançar, por um dos seguranças. Mas se Iggy Pop pôde fazer carreira com o caos, porque não Eros Ramazzotti? Ao longo da noite, também ele soube resvalar para campos rock n' roll, como quando atiçou a sua guitarra em 'Stella Gemella', ou quando encheu de ruído o final de 'Se Bastasse' (mais heavy metal que o concerto que ocorria à mesma hora, a poucos passos dali, na Sala Tejo), que contou com luzes de lanternas de telemóvel a pairar sobre a Arena. 'Ritornare A Ballare', disco com direito a néons e bola de espelhos projetados no ecrã, foi um dos momentos mais divertidos da noite (mesmo com muita gente sentada), e 'Magia' foi o mais pessoal, tendo sido dedicada pelo músico aos seus filhos.

Marcado ainda por um momento acústico, em que 'L'Uragano Meri' – depois de uma travagem inicial – misturou americana com italiano e terminou em modo rockabilly, o espetáculo de Eros Ramazzotti atingiu o seu apogeu a partir de 'Terra Promessa' quando, acompanhado pelo seu saxofonista (que durante a apresentação da banda mereceu a maior ovação da noite), saiu do palco para dar cor à frente deste, num diálogo musical entre voz e sopros.

'Fuoco Nel Fuoco' contou com uma espécie de demonstração das suas qualidades futebolísticas (apesar de romano, Eros é doente pela Juventus), e a inevitável 'Cose Della Vita', em que finalmente poucos permaneceram sentados, deu-nos finalmente um motivo para ali estarmos. Naquele momento, encontrámos as nossas férias passadas. E foi mágico, como elas foram. Saída de palco para as palmas obrigatórias antes do encore, feito com 'Musica È', uma declaração de amor àquilo que o sustenta, e 'Più Bella Cosa', já de boina na cabeça.

Eros Ramazzotti foi gigante na noite fria lisboeta, e foi provavelmente das coisas mais cool que veremos nos próximos tempos. A “fixeza” não se mede pelo que as pessoas dizem, mede-se por aquilo que nos entusiasma. Parafraseando Dani Rojas, o extravagante ponta-de-lança de “Ted Lasso”: música é vida.

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