“A literatura imperial russa falhou na concretização desse objetivo, caso contrário, a guerra em curso não poderia ter acontecido”, defende Eugenia Kuznetsova, questionada sobre o contributo da ficção para a paz, a cooperação entre diferentes povos e culturas, a tolerância, a democracia e a promoção dos direitos humanos.

Um ano depois da invasão da Ucrânia por forças da Federação Russa, em 24 de fevereiro de 2022, Kuznetsova entende que “nenhum diálogo é possível enquanto a guerra estiver a decorrer”.

“No meu país, dizemos que a cultura russa devia estar agora em quarentena. Fico feliz por ver que o mundo deixou de ver a cultura ucraniana pelas lentes pós-coloniais”, afirma a romancista, que está a terminar um livro sobre políticas linguísticas na antiga União Soviética, da qual a Ucrânia se tornou independente em 1991.

A leitura de obras literárias, na sua opinião, ajuda as pessoas a “desenvolver empatia”, sendo também “a única maneira de entender, ou tentar entender, os sentimentos de outras pessoas”, de povos e culturas diferentes.

Nascida na aldeia de Khomutyntsi, centro da Ucrânia, em 1987, Eugenia Kuznetsova licenciou-se na Universidade Nacional de Kiev, chegou a residir na Alemanha e reparte atualmente a vida entre o seu país e Espanha, após ter obtido o doutoramento em Análise Literária pela Universidade de Deusto, em Bilbau, no País Basco.

“A Rússia tenta difundir narrativas falsas, como, por exemplo, que a Ucrânia está a vender armas ocidentais noutros lugares, mas a cobertura mediática da guerra é tão extensa que as pessoas deixaram de ser ingénuas. Finalmente, o mundo viu a verdadeira natureza da máquina do estado russo”, critica a também tradutora e investigadora na área dos meios de comunicação social, que neste trabalho dá especial atenção ao combate à desinformação.

Em 2014, quando a Rússia invadiu o leste da Ucrânia e anexou a Crimeia, “foi extremamente difícil combater a desinformação russa, com os seus enormes orçamentos e agências estatais”.

Hoje, porém, “é muito mais complicado para a Rússia fazer a opinião pública global acreditar nas falsas narrativas”, considera a escritora, que aos 35 anos tem vários livros publicados, entre os quais “Cook in Sorrow” (2020) e “Ask Miechka” (2021), este selecionado pela iniciativa Livro do Ano da BBC News Ukraine.

Em 2022, foi contemplada com uma menção especial no âmbito do Prémio da Literatura da União Europeia, pela obra “Ask Miechka”, que está agora a ser traduzida em seis países europeus.

“Na Ucrânia, apesar da lei marcial em vigor, a liberdade de expressão não tem sido afetada, a menos que alguém publique imagens dos resultados dos ataques aéreos ou divulgue os movimentos das unidades do Exército ou os locais onde a defesa aérea está instalada”, assegura à Lusa.

Jornalistas, escritores e artistas que “queiram criticar o governo” de Volodymyr Zelensky ou outras autoridades “não sofrem nenhum tipo de censura”, segundo Eugenia Kuznetsova.

Desde o início da invasão, “alguns autores deixaram de poder escrever” em ambiente de guerra, enquanto outros, como a própria Kuznetsova, prosseguiram o labor criativo.

“Escrevi um novo romance, 'The Ladder', sobre refugiados ucranianos, que acaba de ser publicado na Ucrânia”, revela, para admitir que o conflito desencadeado por Moscovo “é um fardo enorme" para a economia nacional.

Na sua opinião, “a ajuda internacional não consegue cobrir os danos que a Rússia está a causar à Ucrânia”, designadamente com a destruição de infraestruturas civis.

“Os ucranianos ainda vão às livrarias e compram obras, mas é claro que a indústria do livro enfrenta dificuldades. Fico feliz pelo facto de os editores estrangeiros estarem agora interessados em comprar os direitos dos textos ucranianos. Esta é uma forma de ajudar a nossa indústria do livro e a literatura é uma ótima maneira de conhecer o país e o povo”, preconiza.

Eugenia Kuznetsova já esteve várias vezes em Portugal, que elogia pela beleza das suas paisagens e por ser, na sua ótica, “um bom exemplo de como um antigo império pode aceitar a nova ordem mundial, deixando para trás as ambições imperiais”.

Conhece alguma da literatura portuguesa. Além dos clássicos, leu recentemente “O Vale da Paixão” (1998), de Lídia Jorge, que define como “prosa encantadora”.

A sua próxima visita a Portugal será para participar no VI Festival Literário Internacional do Interior – Palavras de Fogo, de 15 a 18 de junho, em diversos municípios da região Centro.

Eugenia Kuznetsova falou com a agência Lusa a partir da Ucrânia, numa entrevista que decorreu ao longo de vários dias, através de chamadas telefónicas, 'chat' e correio eletrónico, conforme a disponibilidade de energia e comunicações, naquele país.