CAPÍTULO 1 — Vencedores e perdedores

A democracia está a atravessar tempos perigosos. O perigo é visível na crescente xenofobia e no apoio público a figuras autocráticas que testam os limites das normas democráticas. Estas tendências são preocupantes em si mesmas. Mas igualmente alarmante é o facto de os principais partidos e políticos parecerem não compreender o descontentamento que está a agitar a arena política por todo o mundo.

Alguns denunciam o recrudescimento do populismo como pouco mais do que uma reação racista e xenófoba contra os imigrantes e o multiculturalismo. Outros encaram-no principalmente em termos económicos, como um protesto contra a perda de empregos provocada pelo comércio global e pelas novas tecnologias.

No entanto, é um erro considerar os protestos populistas exclusivamente como intolerância ou vê-los apenas como uma queixa económica. Tal como o triunfo do Brexit no Reino Unido, a eleição de Donald Trump em 2016 foi um irado veredito contra décadas de crescente desigualdade e uma versão da globalização que beneficia apenas aqueles que estão no topo, mas que deixa os cidadãos comuns com uma sensação de impotência. Foi também a rejeição de uma abordagem tecnocrática da política que é surda ao descontentamento das pessoas que acreditam ter sido abandonadas pelo progresso da economia e da cultura.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

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Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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A dura realidade é que Trump foi eleito porque soube explorar um manancial de medos, frustrações e queixas legítimas para as quais os partidos dominantes não tinham respostas convincentes. Um mal-estar semelhante está a afetar as democracias europeias. Qualquer esperança que estes partidos tenham em recuperar o apoio popular passa por repensarem a sua missão e o seu propósito. Para tal, devem aprender com os protestos populistas que os alienaram, não reproduzindo a sua xenofobia e o seu nacionalismo estridente, mas levando a sério as queixas legítimas entrelaçadas nestes sentimentos tão feios.

Esta reflexão deveria começar pelo reconhecimento de que estas queixas não são apenas económicas, mas também morais e culturais; não se trata só de salários e empregos, mas também de estima social.

Os partidos dominantes e as elites governantes que se encontram agora sob a mira dos protestos populistas têm dificuldade em compreender estes acontecimentos. Normalmente, diagnosticam este descontentamento de uma das seguintes formas: como hostilidade contra os imigrantes e as minorias raciais e étnicas ou como angústia face à globalização e às mudanças tecnológicas. Ambos os diagnósticos descuram algo crucial.

Diagnóstico do descontentamento populista

O primeiro diagnóstico identifica a raiva populista contra as elites como sendo sobretudo uma reação adversa contra a crescente diversidade racial, étnica e de género. Habituado a dominar a hierarquia social, o eleitorado branco e masculino da classe trabalhadora que apoiou Trump sente-se ameaçado pela perspetiva de se tornar uma minoria no «seu» país, isto é, «estrangeiros no seu próprio país». Veem-se a si próprios como sendo mais vítimas da discriminação do que as mulheres ou as minorias étnicas e sentem-se oprimidos pelas exigências de um discurso público «politicamente correto». Este diagnóstico de um estatuto social ferido traz à tona os feios traços do sentimento populista: o nativismo, a misoginia e o racismo expressos por Trump e outras figuras populistas e nacionalistas.

O segundo diagnóstico atribui o ressentimento da classe trabalhadora à desorientação e deslocação resultantes das rápidas mudanças na era da globalização e da tecnologia. Na nova ordem económica, a noção de trabalho vinculada a uma carreira laboral para toda a vida já não é válida; agora, o que importa é inovação, flexibilidade, empreendedorismo e uma vontade constante de aprender novas competências. No entanto, de acordo com esta explicação, muitos trabalhadores resistem à exigência de se reinventarem enquanto os empregos que outrora tiveram estão a ser externalizados para países de salários baixos ou desempenhados por robôs. Anseiam, quase nostalgicamente, pelas estáveis comunidades e carreiras do passado. Sentindo-se desalojados face às forças imparáveis da globalização e da tecnologia, estes trabalhadores atacam os imigrantes, o comércio livre e as elites governantes. Mas a sua raiva é dirigida para as pessoas erradas, pois estão a insurgir-se contra forças inexoráveis. A melhor forma de sanar os seus medos é através de programas de requalificação laboral e de outras medidas que os ajudem a adaptarem-se aos imperativos da mudança global e tecnológica.

Ambos os diagnósticos contêm um elemento de verdade. Mas nenhum deles chega ao âmago do problema do populismo. Interpretar o protesto populista como malévolo ou mal orientado absolve as elites dirigentes da responsabilidade de terem criado as condições que erodiram a dignidade do trabalho e deixaram muitos sentindo-se desrespeitados e impotentes. A corrosão do estatuto económico e cultural dos trabalhadores nas últimas décadas não é o resultado de forças inexoráveis, mas deve-se à forma como os partidos políticos e as elites estabelecidas têm governado.

Estas elites estão agora alarmadas, e com razão, por causa da ameaça que Trump e outros autocratas populistas representam para as normas democráticas. Mas não querem admitir o seu papel na criação do descontentamento que levou a esta reação populista. Não conseguem ver que a agitação que estamos a viver é uma resposta a um fracasso político de proporções históricas.

A tecnocracia e a globalização favorável ao mercado

No cerne deste fracasso está a forma como os partidos políticos dominantes conceberam e desenvolveram o projeto de globalização ao longo das últimas quatro décadas. Dois aspetos deste projeto deram origem às condições que mantêm o protesto populista vivo. Um é a forma tecnocrática de formular o bem comum; a outra é a forma meritocrática de definir vencedores e perdedores.

O conceito tecnocrático da política está intimamente ligado à fé nos mercados: não necessariamente um desenfreado capitalismo do laissez-faire, mas a crença mais ampla de que os mecanismos de mercado são os principais instrumentos para a realização do bem comum. Este processo de pensamento político é tecnocrático na medida em que remove o debate moral do debate público e trata questões ideologicamente controversas como se fossem questões de eficiência económica, uma matéria reservada aos peritos.

Não é difícil ver como a crença tecnocrática nos mercados preparou o caminho para o descontentamento populista. A versão da globalização impulsionada pelo mercado trouxe consigo uma crescente desigualdade. Também desvalorizou as identidades e as lealdades nacionais. À medida que bens e capital transitavam livremente através de fronteiras nacionais, aqueles que souberam tirar proveito da economia global valorizavam as identidades cosmopolitas como uma alternativa progressista e esclarecida às formas estreitas e provincianas de protecionismo, tribalismo e conflito. A verdadeira divisão política, argumentavam eles, já não era entre a esquerda e a direita, mas entre aberto e fechado. Isto implicava que os críticos da externalização, dos acordos de comércio livre e do fluxo irrestrito de capitais não tinham uma mente aberta, mas uma mente fechada, mais tribal do que global.

Entretanto, a abordagem tecnocrática da liderança tratou muitas questões públicas como matérias de especialização técnica, fora do alcance dos cidadãos comuns. Isto reduziu o âmbito do debate democrático, corroeu os termos do debate público e gerou um crescente sentimento de impotência.

O conceito da globalização como sendo tecnocrática e favorável ao mercado foi adotado pelos partidos dominantes, tanto da esquerda como da direita. Mas seria a adoção do pensamento e dos valores do mercado pelos partidos de centro-esquerda que se revelaria mais significativa, quer para o projeto da globalização em si como para o protesto populista que se seguiria. Na altura em que Trump foi eleito, o Partido Democrata tornara-se num partido de liberalismo tecnocrático, intelectualmente mais próximo das classes profissionais do que do eleitorado da classe trabalhadora e da classe média que outrora haviam constituído a sua base. O mesmo se aplicava ao Partido Trabalhista britânico na altura do Brexit, bem como aos partidos sociais-democratas da Europa.

Esta mudança começara na década de 1980. Ronald Reagan e Margaret Thatcher acreditavam que o problema era o Estado e que a solução estava nos mercados. Quando se retiraram da cena política, sucederam-lhes os políticos de centro-esquerda: Bill Clinton nos Estados Unidos, Tony Blair na Grã-Bretanha e Gerhard Schröder na Alemanha — e que moderaram, mas também consolidaram, a fé nos mercados. Suavizaram as arestas mais ásperas dos mercados sem restrições, mas deixaram intacta a premissa central da era Reagan-Thatcher: que os mecanismos de mercado são a principal ferramenta para a realização do bem comum. Em consonância com esta crença, adotaram uma versão da globalização orientada para o mercado e abraçaram a crescente financeirização da economia.

Na década de 1990, a administração Clinton, juntamente com os republicanos, promoveu acordos comerciais globais e a desregulamentação da indústria financeira. Os lucros destas políticas fluíram esmagadoramente para aqueles que estavam no topo, mas os democratas pouco fizeram para solucionar o agravamento da desigualdade e o poder crescente do dinheiro na política. Tendo abandonado a sua missão tradicional de domar o capitalismo e sujeitar o poder económico ao controlo democrático, o liberalismo progressista perdeu a sua capacidade de inspirar as pessoas.

Tudo isso pareceu mudar quando Barack Obama entrou na cena política. Na sua campanha para as eleições presidenciais de 2008, ofereceu uma alternativa estimulante à linguagem empresarial e tecnocrática que se tinha tornado a marca registada do debate público liberal. Mostrou que a política progressista era capaz de falar uma linguagem com propósito moral e espiritual.

Contudo, não conseguiu transpor para a sua presidência a energia moral e o idealismo cívico que manifestara como candidato. Tomou posse no meio de uma crise financeira e nomeou assessores económicos que haviam promovido a desregulamentação financeira durante a administração Clinton. Instigado por esses assessores, resgatou os bancos segundo condições que não os obrigavam a prestar contas pelo comportamento que conduziu à crise e pouca ajuda ofereceu àqueles que tinham perdido as suas casas.

Depois de silenciada a sua voz moral, Obama tratou sobretudo de aplacar o furor contra Wall Street em vez de lhe dar expressão. A raiva persistente causada pelo resgate da banca deslustrou a presidência de Obama e acabou por alimentar um clima de protesto populista que abrangia todo o espectro político: à esquerda, o movimento Occupy e a candidatura de Bernie Sanders; à direita, o movimento Tea Party e a eleição de Donald Trump.

A revolta populista nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Europa é uma reação negativa geralmente dirigida contra as elites, mas os alvos mais evidentes têm sido os partidos liberais e de centro-esquerda: o Partido Democrata nos Estados Unidos, o Partido Trabalhista na Grã-Bretanha, o Partido Social-Democrata (SPD) na Alemanha (cuja percentagem de votos nas eleições federais de 2017 atingiu um mínimo histórico), o Partido Democrático na Itália (cuja percentagem de votos caiu para menos de 20%), e o Partido Socialista francês (cujo candidato presidencial recebeu apenas 6% dos votos na primeira volta de 2017).

Para poderem ter alguma esperança em recuperar o apoio público, estes partidos devem repensar o seu estilo de governo tecnocrático e orientado para o mercado. Também precisam de confrontar algo mais subtil, mas não menos importante: as atitudes em relação ao sucesso e ao fracasso que têm acompanhado o aumento da desigualdade nas últimas décadas. Devem perguntar-se porque é que aqueles que não prosperaram na nova economia ficaram com a impressão de que os vencedores os olham com desprezo.

A retórica da ascensão social

O que desencadeou então o ressentimento de muitos eleitores da classe trabalhadora e da classe média contra as elites? A resposta começa com a desigualdade das últimas décadas, mas não acaba aí. Pois, em última análise, tem que ver com a mudança das noções de reconhecimento e de estima social.

A era da globalização distribuiu as suas recompensas de forma desigual, para não dizer mais. Nos Estados Unidos, a maior parte do crescimento dos rendimentos desde a década de 1970 foi parar aos bolsos dos 10% mais ricos, enquanto a metade mais pobre da população não beneficiou praticamente nada. Em termos reais, o rendimento mediano de homens em idade ativa, cerca de 36 mil dólares, é menor do que há quatro décadas. O 1% da população norte-americana mais rica ganha hoje mais do que a metade mais pobre da população no seu conjunto.

Todavia, tão-pouco esta explosão de desigualdade é a fonte principal da raiva populista. Há muito que os norte-americanos toleram desigualdades de rendimentos e de riqueza, convencidos de que, independentemente do ponto de partida na vida de cada um, é possível enriquecer do dia para a noite. Esta crença na possibilidade da mobilidade ascendente é o cerne do sonho americano.

De acordo com esta crença, os partidos e os políticos tradicionais responderam ao aumento da desigualdade apelando a uma maior igualdade de oportunidades: requalificação de trabalhadores cujos empregos desapareceram devido à globalização e à tecnologia; melhoria do acesso ao ensino superior; e remoção de barreiras raciais, étnicas e de género. Esta retórica das oportunidades encontra a sua expressão clássica na máxima de que aqueles que trabalham arduamente e cumprem as regras podem progredir «até onde os seus talentos os levarem».

Nos últimos anos, políticos de ambos os partidos têm repetido esta máxima até à saciedade. Ronald Reagan, George W. Bush e Marco Rubio entre os republicanos, e Bill Clinton, Barack Obama e Hillary Clinton entre os democratas. Obama era adepto de uma variação deste tema, tirada de uma canção pop: «You can make it if you try» (Podes conseguir se tentares). Durante a sua presidência, usou esta frase em discursos e declarações públicas mais de cento e quarenta vezes.

No entanto, hoje, a retórica da ascensão social já soa vazia. Na economia atual, a mobilidade ascendente é tudo menos fácil. Os norte-americanos que nascem no seio de famílias pobres tendem a permanecer pobres. Daqueles que nascem no quintil inferior da escala de rendimentos (os 20% mais pobres), apenas cerca de um em cada vinte chega a fazer parte do quintil superior da escala (os 20% mais ricos); a maioria nem sequer ascende ao patamar da classe média. É mais fácil ascender da pobreza no Canadá, na Alemanha, na Dinamarca e noutros países europeus do que nos Estados Unidos.

Isto contradiz a crença há muito defendida de que a mobilidade social é a resposta dos Estados Unidos à desigualdade. Dizemos a nós próprios que os Estados Unidos podem dar-se ao luxo de se preocuparem menos com a desigualdade do que as sociedades europeias determinadas pelas classes, porque aqui a mobilidade ascendente é possível. Nos Estados Unidos, 70% da população acredita que os pobres conseguem sair da pobreza pelos seus esforços, enquanto apenas 35% dos europeus pensam assim. Esta crença na mobilidade social pode ajudar a explicar porque é que os Estados Unidos têm um estado-providência menos generoso do que os principais países europeus.

Contudo, atualmente, os países com maior mobilidade social tendem a ser aqueles que gozam de maior igualdade. A capacidade de mobilidade ascendente parece depender menos do incentivo da pobreza do que do acesso à educação, a cuidados de saúde e a outros recursos que preparam as pessoas para terem sucesso no mundo laboral.

A explosão da desigualdade nas últimas décadas não acelerou a mobilidade ascendente, mas, pelo contrário, permitiu que aqueles que se encontravam no topo consolidassem as suas vantagens e as transmitissem aos seus filhos. Durante a última metade do século xx, as faculdades e as universidades de elite desmantelaram as barreiras raciais, religiosas, étnicas e de identidade de género que outrora restringiam o acesso ao ensino superior unicamente aos filhos dos privilegiados. O Teste de Aptidão Escolar (SAT) surgiu da promessa de admitir estudantes com base no mérito académico e não na sua classe e linhagem familiar. Mas a meritocracia de hoje endureceu até se converter numa aristocracia hereditária.

Dois terços dos estudantes de Harvard e Stanford provêm do quintil superior da escala de rendimentos. Apesar de generosas políticas de ajuda financeira, menos de 4% dos alunos das universidades da Ivy League provêm do quintil inferior. Em Harvard e noutras universidades da Ivy League há mais estudantes oriundos de famílias do segmento do 1% mais rico da população (rendimentos superiores a 630 mil dólares anuais) do que estudantes do conjunto das famílias da metade inferior da distribuição dos rendimentos.

A crença norte-americana de que, com muito trabalho e talento, qualquer um pode ascender socialmente já não é consistente com os factos observados no terreno. Isto talvez explique por que razão a retórica relativa às oportunidades já não funciona tão bem como outrora. A mobilidade social já não pode compensar a desigualdade. Qualquer resposta séria ao fosso existente entre ricos e pobres deve olhar para as desigualdades de poder e riqueza em vez de se contentar com o projeto de ajudar as pessoas a subirem uma escada cujos degraus estão cada vez mais afastados uns dos outros.

A ética meritocrática

O problema da meritocracia não é apenas o facto de a sua prática não estar à altura do ideal. Se fosse esse o problema, a solução seria aperfeiçoar a igualdade de oportunidades e lutar por uma sociedade em que as pessoas, independentemente do seu ponto de partida na vida, pudessem realmente ascender até onde os seus esforços e talentos as levassem. É duvidoso, no entanto, que mesmo uma meritocracia perfeita seria moral ou politicamente gratificante.

Ao nível moral, não é claro por que razão os talentosos merecem as recompensas exageradas que as sociedades orientadas para o mercado reservam àqueles que são bem-sucedidos. O argumento decisivo a favor da ética meritocrática é a noção de que não merecemos ser recompensados, ou retidos, devido a fatores fora do nosso controlo. Contudo, é de facto um mérito da própria pessoa possuir (ou não) certos talentos? Se não for esse o caso, é difícil perceber por que razão aqueles que ascendem em virtude dos seus talentos merecem maiores recompensas do que aqueles que podem ser igualmente esforçados, mas menos munidos dos dons que uma sociedade de mercado valoriza por estes dias.

Aqueles que exaltam o ideal meritocrático e fazem disso o fulcro do seu projeto político descuram esta questão moral. Ademais, também ignoram algo que é politicamente mais poderoso: as atitudes moralmente pouco atrativas fomentadas pela ética meritocrática, tanto entre os vencedores como entre os perdedores. Entre os vencedores gera arrogância; entre os perdedores gera humilhação e ressentimento. Estes sentimentos morais estão no cerne da insurreição populista contra as elites. Mais do que um protesto contra os imigrantes e a externalização da economia, o queixume populista dirige-se contra a tirania do mérito. E esta queixa é justificada.

A ênfase incessante na necessidade de criar uma meritocracia justa, em que as posições sociais refletem o esforço e o talento, tem um efeito corrosivo na forma como interpretamos o nosso sucesso (ou a sua falta). A ideia de que o sistema recompensa o talento e o trabalho árduo encoraja os vencedores a verem o seu sucesso como uma façanha pessoal, uma espécie de indicador da sua própria virtude, e a olhar com desprezo os menos afortunados do que eles.

A arrogância meritocrática reflete a tendência de os vencedores se deixarem inebriar demasiado com o seu próprio sucesso e esquecerem a boa sorte e as circunstâncias favoráveis que os ajudaram ao longo do seu percurso. A convicção presunçosa daqueles que chegam ao topo é de que são merecedores do seu destino e que aqueles que estão no fundo da escala social também merecem o seu destino. Esta atitude é a companheira moral da política tecnocrática.

Uma consciência aguçada das contingências do nosso destino leva-nos a uma certa humildade: «Isto também me podia ter acontecido, não fosse pela graça de Deus ou por um acaso do destino.» No entanto, uma meritocracia perfeita exclui qualquer sentido de dom ou graça. Diminui a nossa capacidade de nos vermos como fazendo parte de um destino comum. Deixa pouco espaço para a solidariedade que pode advir da reflexão sobre a aleatoriedade dos nossos talentos e da nossa boa fortuna. É isto que faz com que o mérito seja uma espécie de tirania ou de regime injusto.

A política da humilhação

Vista de baixo, a arrogância das elites é mortificante. Ninguém gosta de ser olhado com desprezo. Mas a crença meritocrática agrava esse sentimento. A ideia de que cada um de nós controla o seu destino, de que «podes triunfar se te esforçares», é uma faca de dois gumes: inspiradora por um lado, mas maldosa por outro. Felicita os vencedores, mas denigre os perdedores, mesmo aos seus olhos. Para aqueles que não encontram trabalho ou não conseguem pagar as contas é difícil escapar ao pensamento desmoralizante de que eles próprios são responsáveis pelo seu fracasso e que simplesmente carecem do talento e da motivação para serem bem-sucedidos.

A Tirania do Mérito
créditos: Editorial Presença

Livro: A Tirania do Mérito

Autor: Michael J. Sandel

Editora: Editorial Presença

Preço: 18,81 €

A este respeito, a política da humilhação difere da política da injustiça. Os protestos contra a injustiça olham para fora: as pessoas queixam-se de que o sistema está deturpado e de que os vencedores burlaram ou manipularam o sistema para chegarem ao topo. Os protestos contra a humilhação têm uma carga psicológica mais marcada. Congregam em si o ressentimento contra os vencedores e uma dúvida irritante: talvez os ricos sejam ricos porque o merecem mais do que os pobres; talvez os perdedores tenham culpa do seu infortúnio, afinal.

Este aspeto da política de humilhação é mais facilmente inflamável do que outros sentimentos políticos. É um ingrediente poderoso na poção explosiva de raiva e ressentimento que alimenta os protestos populistas. Embora ele próprio fosse um multimilionário, Donald Trump compreendeu este ressentimento e soube explorá-lo. Ao contrário de Barack Obama e de Hillary Clinton, que falavam constantemente de «oportunidades», Trump raramente mencionou essa palavra. Em vez disso, falava descaradamente de vencedores e perdedores. (Curiosamente, Bernie Sanders, um populista social-democrata, também raramente fala de oportunidades e mobilidade, concentrando-se antes nas desigualdades de poder e de riqueza.)

As elites valorizaram de tal maneira os diplomas universitários — quer como um meio de progredir na vida quer como a base para o prestígio social —, que têm dificuldade em compreender a arrogância que uma meritocracia pode engendrar e os juízos severos que a tirania do mérito impõe àqueles que não frequentaram a universidade. Tais atitudes estão no cerne do contra-ataque populista e da vitória de Trump.

Uma das clivagens políticas mais profundas da atual política norte-americana é a que existe entre aqueles que possuem um diploma universitário e aqueles que não o possuem. Nas eleições presidenciais de 2016, Trump ganhou dois terços dos votos do eleitorado branco desprovido de diploma universitário, enquanto Hillary Clinton obteve ganhos decisivos entre eleitores com diplomas universitários avançados. Uma divisão semelhante ocorreu no referendo do Brexit no Reino Unido. Os eleitores sem educação universitária votaram esmagadoramente a favor do Brexit, ao passo que a grande maioria das pessoas com uma pós-graduação votou a favor de permanecer na União Europeia.

Um ano e meio depois, ao refletir sobre a sua campanha para as eleições presidenciais, Hillary Clinton exibiu a arrogância meritocrática que contribuiu para a sua derrota: «Ganhei nos lugares que representam dois terços do Produto Interno Bruto da América», declarou numa conferência em Mumbai, na Índia, em 2018. «Ou seja, ganhei nos lugares onde há otimismo, diversidade, dinamismo e progresso.» Por seu lado, Trump conseguiu o apoio daqueles que «não gostavam que os negros tivessem direitos civis» e que «não gostavam que as mulheres [...] conseguissem obter empregos». Hillary arrecadara os votos dos vencedores da globalização, enquanto Trump ganhara entre os perdedores.

Em tempos, o Partido Democrata esteve ao lado dos agricultores e dos trabalhadores contra os privilegiados. Hoje, numa era de meritocracia, a sua derrotada porta-estandarte vangloriava-se de que partes abastadas e esclarecidas do país tinham votado nela.

Donald Trump estava extremamente consciente da política da humilhação. Do ponto de vista da justiça económica, o seu populismo era falso, uma espécie de populismo plutocrático. Apresentou um plano que teria restringido os cuidados de saúde para muitos dos seus apoiantes da classe trabalhadora e aprovou uma lei fiscal que beneficiou os ricos com reduções de impostos. Mas se olharmos apenas para a hipocrisia, estaremos a perder de vista o que realmente importa.

Quando Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, declarou, de forma implausível, que estava a fazê-lo para proteger os postos de trabalho dos norte-americanos. Mas a verdadeira razão da sua decisão, a sua motivação política, revela-se num outro seu comentário, aparentemente discriminatório: «A partir de que momento é que a América começa a ser menosprezada? A partir de que momento é que começam a rir-se de nós como país? [...] Não queremos que outros líderes e outros países continuem a rir-se de nós.»

Aliviar os Estados Unidos dos supostos encargos imputados aos acordos sobre as alterações climáticas não tinha realmente que ver com empregos nem com o aquecimento global. Na imaginação política de Trump, tratava-se de evitar a humilhação. Isto fez eco nos seus eleitores, mesmo naqueles que se preocupavam com as alterações climáticas.

Mérito tecnocrático e juízo moral

Em si mesma, a ideia de que os meritórios devem governar não é uma característica exclusiva dos nossos tempos. Na China antiga, Confúcio ensinava que aqueles que se destacavam em termos de virtude e capacidade deveriam governar. Na Grécia Clássica, Platão imaginava uma sociedade governada por um rei-filósofo apoiado por uma classe de guardiães orientados para o bem comum. Aristóteles rejeitou o rei-filósofo de Platão, mas também ele acreditava que as pessoas de mérito deveriam ter a maior influência nos assuntos públicos. Para ele, o mérito relevante para governar não era a riqueza nem um nascimento nobre, mas a excelência nas virtudes civis e na phronesis, a sabedoria -prática de pensar acertadamente sobre o bem comum.

Os fundadores da república norte-americana autoproclamaram-se «Homens de Mérito» e esperavam que pessoas virtuosas e cultas como eles fossem eleitas para os cargos políticos. Embora se opusessem a uma aristocracia hereditária, não ansiavam pela democracia direta por temerem a ascensão de demagogos ao poder. Trataram de criar instituições, como o sistema de eleição indireta do Senado dos Estados Unidos e do presidente, possibilitando assim que fossem homens de mérito a governar. Thomas Jefferson preferia uma «aristocracia natural» baseada na «virtude e no talento», em vez de uma «aristocracia artificial fundada na riqueza e no nascimento». «Essa forma de governo é a melhor», escreveu ele, porque favorece «uma seleção não adulterada destes aristocratas naturais nos cargos do governo.»

Apesar das suas diferenças, estas versões tradicionais da meritocracia política — desde a confucionista, passando pela platónica até à republicana — têm em comum a noção de que os méritos relevantes para governar incluem virtudes morais e cívicas. Porque todos concordam que o bem comum depende, pelo menos em parte, da educação moral dos cidadãos.

A nossa versão tecnocrática da meritocracia rompe esta ligação entre mérito e juízo moral. No campo da economia, assume simplesmente que o bem comum é definido pelo Produto Interno Bruto (PIB) e que o valor dos contributos das pessoas consiste no valor de mercado dos bens ou serviços que vendem. No campo da governação, assume que o mérito significa especialização tecnocrática.

Isto é evidente no papel cada vez mais importante dos economistas como assessores políticos, na crescente dependência dos mecanismos de mercado para definir e alcançar o bem comum, e no fracasso do debate político em abordar as grandes questões morais e civis que devem estar no centro do debate político: o que devemos fazer em relação à crescente desigualdade? Qual é o significado moral das fronteiras nacionais? O que constitui a dignidade do trabalho? O que devemos uns aos outros como cidadãos?

Esta forma moralmente estreita de conceber o mérito e o bem comum enfraqueceu as sociedades democráticas em muitos aspetos. O primeiro é o mais fácil de ver: as elites meritocráticas não têm governado muito bem ao longo das últimas quatro décadas. As elites que governaram os Estados Unidos de 1940 a 1980 foram muito mais bem-sucedidas. Ganharam a Segunda Guerra Mundial, ajudaram a reconstruir a Europa e o Japão, reforçaram o estado-providência, puseram fim à segregação e presidiram a quatro décadas de crescimento económico que beneficiaram tanto os ricos como os pobres. Em contrapartida, as elites que governaram desde então deram-nos quatro décadas de salários estagnados para a maioria dos trabalhadores, desigualdades de rendimentos e de riqueza como não se via desde a década de 1920, a Guerra do Iraque, uma infrutífera guerra de dezanove anos no Afeganistão, a desregulamentação dos mercados financeiros, a crise financeira de 2008, a deterioração das infraestruturas públicas, a maior taxa de encarceramento do mundo e um sistema de financiamento de campanhas políticas e de manipulação das linhas de fronteira dos distritos eleitorais (com a intenção de beneficiar um determinado partido/candidato) que faz da democracia uma farsa.

O mérito tecnocrático não só falhou como um modo de governação, mas também erodiu o projeto da sociedade civil. Hoje, o bem comum é entendido principalmente em termos económicos. Não se trata tanto de uma questão de cultivar a solidariedade ou de aprofundar os laços cívicos, mas de satisfazer as preferências dos consumidores medidas pelo PIB. Tudo isto contribui para um debate político empobrecido.

O que atualmente passa por discussão política consiste em retórica tacanha, administrativa e tecnocrática que não inspira ninguém. Ou então é uma disputa de gritos, em que cada parte fala sem ouvir realmente a outra. Os cidadãos consideram este debate político vazio, frustrante e desmotivante em todo o espectro político. E pressentem corretamente que a ausência de um debate público vigoroso não significa que nenhuma decisão política está a ser tomada. Significa simplesmente que essas decisões estão a ser feitas noutro local, longe dos olhos do público — por organismos administrativos (frequentemente sequestrados pelas próprias indústrias que supostamente devem controlar), pelos bancos centrais e mercados de obrigações, pelos lobistas empresariais cujas contribuições de campanha compram influência junto dos agentes públicos.

Porém, isso não é tudo. Para além da erosão do debate público, o reinado do mérito tecnocrático redefiniu a noção de reconhecimento social de uma forma que reforça o prestígio das classes profissionais detentoras de altas credenciais e desvaloriza as contribuições da maioria dos trabalhadores, o que corrói o seu estatuto e prestígio social. É este aspeto do mérito tecnocrático que contribui mais diretamente para a política irada e polarizada do nosso tempo.

A revolta populista

Há seis décadas, o sociólogo britânico Michael Young previu a arrogância e o ressentimento engendrados pela meritocracia. Na verdade, foi ele quem cunhou o termo. Num livro editado em 1985, intitulado The Rise of the Meritocracy, perguntava-se o que aconteceria se, um dia, as barreiras de classe fossem ultrapassadas e todos desfrutassem de uma verdadeira igualdade de oportunidades para poderem progredir na vida com base exclusivamente no seu mérito.

Num certo sentido, isto seria motivo para celebração; os filhos da classe trabalhadora poderiam finalmente competir de forma justa, lado a lado com os filhos dos privilegiados. Mas Young apercebeu-se de que isto não seria uma vitória abrangente, uma vez que fomentaria arrogância entre os vencedores e humilhação entre os perdedores. Os vencedores veriam o seu sucesso como uma «justa recompensa pelas suas capacidades, pelos seus esforços, pelas suas façanhas inegáveis», e, portanto, olhariam com desprezo aqueles menos bem-sucedidos do que eles. Aqueles que não conseguissem progredir sentiriam que a culpa do seu fracasso se devia unicamente a si próprios.

Para Young, a meritocracia não era um ideal ao qual valesse a pena aspirar, mas uma receita para a discórdia social. Décadas atrás, soube vislumbrar a dura lógica meritocrática que hoje envenena a nossa política e instiga a fúria populista. Para aqueles que se sentem prejudicados pela tirania do mérito, o problema não é apenas a estagnação dos salários, mas também a perda de estima social.

A perda de empregos devido à tecnologia e à externalização tem sido acompanhada por uma sensação de que o tipo de trabalho realizado pela classe trabalhadora é menos respeitado pela sociedade. À medida que a atividade económica se deslocava da produção de coisas para a gestão de dinheiro, e que a sociedade distribuía recompensas exageradas aos gestores de fundos especulativos, aos banqueiros de Wall Street e às classes profissionais, a estima conferida ao trabalho no sentido tradicional tornou-se frágil e incerta.

Os partidos dominantes e as elites ignoram esta dimensão da política. Pensam que o problema da globalização impulsionada pelo mercado tem apenas que ver com uma questão de justiça distributiva: aqueles que beneficiaram com o comércio global, com as novas tecnologias e com a financeirização da economia não compensaram adequadamente aqueles que perderam com estas mudanças.

Porém, esta visão baseia-se numa interpretação errónea da queixa populista. Também revela uma falha na abordagem tecnocrática da governação. Conduzir o debate público como se fosse possível externalizar juízos morais e políticos para os mercados ou para os peritos e os tecnocratas esvaziou o debate democrático de sentido e de finalidade. Tais vazios de significado público são inevitavelmente preenchidos por formas autoritárias de identidade e de pertença — quer sob a forma de fundamentalismo religioso ou de nacionalismo estridente.

Isto é precisamente o que estamos a presenciar na atualidade. Quatro décadas de globalização orientada para o mercado corroeram o debate público, fragilizaram o cidadão comum e desencadearam uma reação populista que procura revestir a nossa esfera pública nua com um intolerante e vingativo manto de nacionalismo.

Para restaurar a democracia, temos de encontrar um caminho para um discurso público moralmente mais estável, que possa assumir de forma séria os efeitos corrosivos da competição meritocrática sobre os laços sociais que constituem a nossa vida comunitária.