O amor, conforme o nível ou plano em que seja considerado, tem sido perene na literatura, uma vez que os mais antigos textos literários conhecidos, ou as mais primitivas e arcaicas mitologias, reflectem alguma concepção do que por este termo se tem definido, ou o que ulteriores culturas interpretaram segundo as suas próprias concepções mais ou menos dominantes. Será um truísmo afirmar da perenidade do que é um dos impulsos elementares da natureza ou da condição humana, ou, se quisermos, a tensão emocional resultante do instinto sexual que a humanidade em comum possui com as outras espécies animais. Mas não é um truísmo sublinhar que o amor, ou o que por ele se entende ou pretende entender, sempre dependeu de prevalentes concepções sociais, e até o seu significado biológico tem dependido dos preconceitos religiosos ou sociais dos biólogos que têm observado as actividades sexuais dos seres vivos.
Amor é termo ambíguo que se aplica igualmente à vida sexual ou ao desejo puramente sexual (e o admitir-se que esse desejo possa existir, sem «amor», implica já certa concepção deste), como também à variedade de emoções e paixões eróticas ligadas ao sexo (e reguladas socialmente pela tradição, os costumes, a cultura, a religião, etc.), e ainda a uma vasta gama de progressivas abstracções ou sublimações do complexo sexual (amor do próximo, amor da humanidade, amor de Deus, o amor como ente epistemológico, etc.). De um ponto de vista erótico-social, o amor tem sido «puro» ou «impuro», «normal» ou «anormal», «santificado» ou «pecaminoso», admitido ou proibido por tabus sociais, etc. – e a coincidência entre o «sim» e o «não», como entre a teoria e a prática, tem variado muito com a história e os grupos sociais, desde a mais alta Antiguidade: o que a literatura tem espalhado, quer expressamente, quer indirectamente, quer criticamente, quer pelo que pode interpretar-se do que foi dito ou não dito. Quer se considere que o desejo sexual e as suas diversas sublimações estão na base de toda a actividade humana, quer se prefira supor que um impulso transcendente ou imanente ao Universo é o motor não só da vida como da própria existência do Mundo («O Amor que move o Sol e as mais estrelas», como Dante diz no último verso da sua Divina Comédia), o «amor» aparece-nos como um imenso denominador comum, em função do qual tudo pode ser interpretado – apenas variarão as interpretações de tudo e do próprio Amor. Do que resulta que não haverá, na literatura, conceito ao mesmo tempo mais vulgar e mais complexo, já que podemos vê-lo aonde ele pareça que está de todo ausente, e é possível suspeitar criticamente de épocas em que ele foi, em determinados termos, apresentado como o centro das preocupações humanas. Que ele, sob uma forma ou outra, o foi sempre – eis do que não é lícito duvidar. Mas é lícito interrogarmo-nos sobre se o foi realmente nos termos propostos, ou se estes correspondiam à «mistificação» social que a literatura era chamada a traduzir em termos estéticos. O que é da maior importância, quer de um ponto de vista de sociologia da literatura, quer do ponto de vista do entendimento estético, que não são necessariamente coincidentes. Aquela «mistificação», entendamo-nos, significa, neste contexto, não forçosamente uma maligna distorção da realidade social, mas uma intencionalidade em relação a esta, um desejo de «idealizá-la» (o que muitas vezes terá sido o suplementá-la com a delicadeza ou a elegância que ela efectivamente não possuía). Outro aspecto fundamental – e directamente conexo com aquela «idealização» – é o das relações entre o «amor» e a «beleza».
As concepções do amor ou da beleza suposta máxima têm variado muito (para as últimas, basta comparar a figuração humana do «belo» na arte das mais diversas culturas e períodos, através dos tempos); mas não menos variaram, e não só por aquelas haverem sofrido variações, as relações que sejam estabelecidas entre um conceito e o outro. Na verdade estas relações são relativamente independentes daqueles conceitos, ao contrário do que habitualmente se supõe, e são elas sobretudo o que permite, em literatura como na vida, as divergências individuais quanto ao comportamento ou ao modo de considerá-lo. Compreende-se que assim seja, uma vez que se note que o amor e a beleza são já abstracções reguladoras, em que o juízo estético se diferencia, e que, em consequência, o erótico-sexual, assim separado em sujeito que deseja e objecto que é desejável, mais individualmente se revelará nas relações entre aquelas abstracções, adentro de uma estrutura de comportamento pré-estabelecida. Isto, transposto para o plano estético-literário, explica, em parte, as divergências individuais de «estilo», ainda quando elas se processem dentro de esquemas e modelos formais que, em certas culturas ou épocas, foram peculiarmente rígidos. Se acima dissemos «erótico-sexual», foi para usar de um termo mais genérico e menos necessariamente correlato com a chamada propagação e conservação biológica da espécie, e podermos examinar o «amor» de um outro ângulo.
Tabus primitivos, que sobretudo o cristianismo incorporou à sua visão do mundo, correlacionam estritamente aquele chamado instinto de propagação (que, menos do que um «instinto», é inerência da estrutura fisiológica dos seres vivos mais desenvolvidos) com o instinto sexual, e, assim, um acto sexual só seria legítimo e normal, se dirigido conscientemente para aquela propagação. Uma outra ordem de tabus, correlacionada com a anterior mais elementar, é a que estabelece proibições quanto a relações sexuais entre indivíduos no mais estreito plano de consanguinidade: e releva de uma organização hierárquica – matriarcal ou patriarcal – da família como unidade social. Todavia, os incestos contínuos das gerações dos deuses da Antiguidade Oriental ou Clássica, como a prática das dinastias faraónicas do Egipto (e mesmo absorvida pelos Ptolomeus helenísticos) de os faraós casarem com as irmãs ou as filhas, mostra que o incesto era visto como um imperativo de não diluir-se o sangue «divino» e exclusivo, por acção de outros que o fossem menos, se bem que aos simples humanos tal prática fosse vedada (precisamente para que a diluição do «sangue», neles, mais eficazmente se desse, ampliando a distância hierárquica entre eles e os «divinos»). De resto, ao longo dos séculos cristãos, e apesar das proibições da Igreja, o imperativo de separar o sangue real e os outros sangues, à medida que se organizavam as monarquias absolutas, foi tal, que é absolutamente impossível estabelecer árvores genealógicas completas das Casas Reais, pela continuidade quase incestuosa das uniões convenientes aos interesses endogâmicos das dinastias (a portuguesa de Avis, com os Habsburgos de Espanha e Áustria, é disso exemplo conspícuo). E pode mesmo dizer-se que, desde o século ix ao século xviii, a Europa realenga e aristocrática é, da Escandinávia à Sicília, e da Inglaterra à Rússia, uma imensa gaticânea, em que a consanguinidade é de regra (e os historiadores ditos sociais que ignoram estas realidades enganam-se grandemente, quando imaginam que as amantes de reis e príncipes, das quais a História conservou os nomes, por delas descender grande parte da aristocracia, não eram, como eles, de sangue real, porque o eram na maior parte dos casos).
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