Este artigo tem detalhes do quarto episódio da última temporada da Guerra dos Tronos – os chamados “spoilers” –, pelo que se ainda não o viram, não continuem a ler. Ou continuem, se a vossa “cena” for ler bitaites sobre a série em vez de a ver. Aqui não julgamos ninguém.


Deixem-me já fazer um pequeno ponto prévio: a Guerra dos Tronos não é uma série histórica, de batalhas, de ação. Pelo menos para mim, não é. É certo que as batalhas inesquecíveis com que fomos presenteados ao longo destas oito temporadas são uma parte importante do enredo, funcionando como uma espécie de clímax para tudo o que aconteceu antes. E é precisamente desse “antes” que me apetece falar.

A Guerra dos Tronos é, acima de tudo, uma série sobre jogos de poder, sobre como o poder nos corrompe, a todos, enquanto seres humanos. O poder é, para a maioria das personagens, tudo. Seja o poder que se tem sobre a pessoa amada, sobre um exército ou sobre um povo, a Guerra dos Tronos vive, acima de tudo, das conversas que são tidas antes da ação. Do que é conspirado antes de ser realizado. Dos apertos de mão e dos olhares cínicos ou furiosos. A Guerra dos Tronos vive disso. E eu, como amante da série, vivo disso também.

E é por isso que a conversa entre Tyrion e Varys, já perto do final deste quarto episódio (já só faltam dois!), tem de encher as medidas a qualquer fã da Guerra dos Tronos. Porque ali, naquele diálogo, temos tudo aquilo que aproxima nos aproxima de uma série passada num universo imaginário onde de sete reinos, com gigantes, feiticeiras e dragões.

Varys: Servi tiranos a maior parte da vida. Todos falam de destino.
Tyrion: Ela é uma rapariga que entrou no fogo com três pedras e saiu com três dragões. Como pode não acreditar no destino?
Varys: Talvez seja esse o problema. Convenceu-se de que tinha de nos salvar.
Tyrion: E como sabeis que não tinha?

A conversa principia depois de uma reunião em que se decide qual o plano para atacar Cersei e o Porto Real. A reunião ocorre depois de Daenerys ver Euron Greyjoy matar-lhe um dragão e raptar a sua melhor amiga Missandei. Daenerys e Grey Worm querem invadir a cidade, Tyrion e Varys dizem-lhe que isso é um erro pois uma invasão poderá originar milhares de mortes inocentes. A certa altura, Daenerys pergunta a Varys se ele acredita que estamos neste mundo por alguma razão, afirmando que a dela é “libertar o mundo de tiranos”, uma vez que é esse o seu destino. E esse destino será cumprido “a todo o custo”.

Tal como em Westeros, é possível que muitos dos tiranos (e não só...) que já povoaram o nosso planeta achassem verdadeiramente que os fins justificam os meios no que toca a cumprir um destino para o qual sentem que foram fadados. Que o sofrimento causado para atingir esse destino será compensado no final. E que, muitas vezes, para se melhorar, é preciso piorar.

O eventual complexo de grandeza de Daenerys justifica-se pelas palavras de Tyrion, claro. E porque, mal ou bem, ela é uma rainha que libertou escravos e uniu povos. Mas a que custo? E até que ponto é que tudo aquilo por que passou – a morte dos seus “filhos” dragões e do seu fiel confidente Jorah, o rapto da sua melhor amiga Missandei, o conhecimento de que o amor da sua vida é, afinal, seu sobrinho! e o herdeiro legítimo do trono que persegue há várias temporadas – não tem influência na frieza com que contempla a possibilidade de milhares de mortes serem justificáveis para ocupar o lugar de Cersei no trono dos Sete Reinos?

Mas continuemos com os dois dedos de conversa entre Tyrion e Varys, talvez as duas das personagens da série que, em conjunto com o malogrado Mindinho, mais contribuíram para a tal “ação antes da (verdadeira) ação”.

Varys: Hum... Há o problema “Jon Snow”. Talvez seja uma solução. Conhecei-los a ambos. Quem seria um governante melhor?
Tyrion: Ele não quer o trono. Daí ter-se ajoelhado.
Varys: Já pensaste que o melhor governante talvez seja aquele que não quer governar?

Esta ideia de desapego do poder com que Tyrion e Varys caracterizam Jon Snow é, no fundo, a utopia que muitos de nós procuramos em quem nos dirige. Muitas das vezes, queremos que os nossos governantes sejam desapegados do poder que lhes demos, despidos de qualquer interesse individual. Mas querer um governante que nem quer assim tanto governar é viável? Não deveríamos antes procurar inspiração em alguém que quer inspirar (Daenerys), ao invés de alguém que nem está assim tão interessado nisso (Jon)?

Jon e Daenerys são muitas vezes vistos como os “escolhidos”. No caso da Rainha dos Dragões, essa designação vem por obra daquilo a que talvez possamos chamar “destino”, fruto de um certo misticismo associado a si e ao facto de conseguir fazer coisas que mais ninguém consegue (como sobreviver a um incêndio e “dar à luz” a três dragões). Mas Jon, não. O epíteto de “escolhido” que cai sobre Jon Snow não vem daí, apesar de ter sido ressuscitado há umas temporadas. Jon Snow é uma espécie de “cavaleiro andante”, a personificação do homem justo e fiel, que se sacrifica em prol do bem maior, que não pediu quase nada daquilo que lhe aconteceu. Que lidera pelo exemplo. Ao passo que Daenerys fez coisas boas, o medo que instiga existe e está lá. Jon não instiga medo – inspira confiança. E às vezes não queremos só depositar o nosso destino nas mãos de alguém com quem sabemos com o que podemos contar?

De volta a Tyrion e Varys.

Tyrion: Estamos a falar de traição.
Varys: Não fales como se nunca tivesses pensado nisso.
Tyrion: Claro que já. Pensamentos não são traição.
Varys: Ele é comedido e ponderado. Ele é um homem, o que o torna mais apelativo aos Lordes de Westeros, de cujo apoio vamos precisar.
Tyrion: Joffrey era um homem. Não sei se uma pila é uma qualificação, como decerto concordarás.
Varys: ... E ele é o herdeiro ao trono. Sim, porque é homem. As pilas importam.

A nova vida dos movimentos feministas atuais (com os defeitos e virtudes que possa ter) teve o condão de “obrigar” várias manifestações culturais (séries, filmes, livros, stand-up comedy) a endereçar o tema. Podemos discutir a pertinência desta afirmação, claro. Mas hoje a luta da igualdade de género é algo mais visível do que antes, mais representado do que antes. E apesar da Guerra dos Tronos sempre nos ter brindado com personagens femininas fortes (ainda que nem todos estejam contentes com o rumo que a série está a tomar), não deixa de ser relevante que esta conversa poderia ser transposta, nos dias de hoje, para qualquer empresa privado ou cargo público. No mundo, tal como em Westeros, o género continua a ser um fator de decisão na hora de seguir ou eleger alguém. No mundo, tal como em Westeros, ainda há um caminho a percorrer neste aspeto.

Tyrion e Varys, de novo.

Tyrion: A certa altura, escolhemos em quem acreditamos e lutamos por essa pessoa.
Varys: Mesmo sabendo que é um erro?
Tyrion: Acredito na nossa rainha. Ela tomará a decisão certa. Com a ajuda dos seus conselheiros leais.
Varys: Sabeis a quem eu sou leal. Nunca trairei o Domínio.
Tyrion: O que é o Domínio? Um continente com pessoas a quem não interessa quem está no trono.
Varys: Milhões de pessoas, algumas das quais morrerão se a pessoa errada estiver sentada nesse trono. Não sabemos como se chamam mas são tão reais como vós e eu. Merecem viver, merecem alimentar os filhos. Defenderei os seus interesses a todo o custo.
Tyrion: Então o que é que lhe acontece [a Daenerys]?
Varys: (...)
Tyrion: Por favor... Não.
Varys: Falei com toda a sinceridade. Todos temos uma escolha a fazer. Rezo para que escolhamos sabiamente.

As personagens que cumprem o papel de “conselheiros” na Guerra dos Tronos são, regra geral, pragmáticas. E muitos dos seus conselhos são, na maior parte dos casos, dados em nome de interesses pessoais (ou, pelo menos, retratados dessa forma). O final da conversa entre Tyrion e Varys é fascinante porque, de um lado, temos alguém que defende um ideal de um mundo melhor, ainda que já não confie totalmente na pessoa que supostamente iria liderar essa mudança de rumo; do outro lado, temos um pragmático que, apesar de servir a rainha, entende que o Domínio (ou o povo, se quisermos simplificar) é o seu verdadeiro “patrão” e que são os seus interesses que devem ser protegidos.

Ao longo da nossa história, o idealismo esbarrou (e continua a esbarrar) muitas vezes com o pragmatismo. E também na Guerra dos Tronos isso parece estar a acontecer.

É certo que este episódio teve muito mais que poderia ser abordado: o romance-que-afinal-já-não-foi entre Jaime e Brienne, o reaparecimento de Bronn, a recusa de Arya ao pedido de casamento de Gendry, o regresso da crueldade (que parecia ter sido abandonada no último episódio) à série, com a terrível e dolorosa morte de Missandei. Mas esta conversa entre Tyrion e Varys é o exemplo perfeito da razão pela qual a Guerra dos Tronos apaixonou meio mundo. Não tem nada a ver com gigantes, feiticeiras e dragões. Tem a ver com a forma como esse mundo espelha o nosso, e como aceitamos (ou não) o destino e as escolhas que fazemos.

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