Tempos houve em que comprar um bilhete para um concerto dos Guns N' Roses acarretava um grau de enorme risco. Será que Axl Rose vai fazer birra e não subir sequer ao palco? Será que haverá um tempo de espera de mais de duas horas desde a hora marcada até ao início do espetáculo? Será que algum fã, delirando de rock n' roll, atirará alguma coisa para cima do palco e aborrecerá de tal forma o vocalista que este decidirá dar imediatamente por terminado o espetáculo? Será que alguém irá fotografar, sem permissão, o grupo, sendo dessa forma expulso do recinto? Será que só vão tocar temas de “Chinese Democracy” e nem Slash nem Duff McKagan serão figuras presentes?

Excetuando esta última, acrescentada em tom hipotético, todas as outras situações aconteceram de facto ao longo dos quase 40 anos de vida dos Guns N' Roses. E, parecendo que não, foi exatamente isso o que lhes conferiu um certo estatuto mítico (mesmo que fosse incrivelmente chato, e foi-o por demasiadas vezes, pagar para se sair desapontado do recinto). Dos norte-americanos nunca se esperou nada, porque nunca se sabia o que esperar; o rótulo que por vezes lhes foi colado, de banda mais perigosa do mundo, não era uma mera brincadeira de jornal. Quando se juntam num só grupo a personalidade de Axl, a tendência para excessos de Slash e a bagagem punk de Duff, é normal que a coisa faça faísca – para não mencionar Steven Adler e Izzy Stradlin, que não fazem parte de uma reunião que não há muito tempo era comentada de forma peremptória: nunca irá acontecer.

Tanto aconteceu, que foi a mais bem sucedida de 2017 e 2018 (na história do rock, só está atrás, em termos de lucros obtidos, da digressão “360º” dos U2). Tanto aconteceu que se prolongou: quaisquer problemas que restassem do passado foram sanados, quaisquer palavras mais fortes que se tenham dito foram perdoadas e esquecidas. E ei-los uma vez mais em Portugal, três dos Guns N' Roses originais, quatro que se juntaram pelo caminho. Sem que exista o perigo de tudo se desmoronar, terminar, ir para o galheiro. Aqueles abraços que vimos Axl dar a Slash, em palco, não eram mero mediatismo. Eram um aviso: escusam de nos desejar cobras e lagartos, porque desta vez estamos aqui para ficar.

Quem estava à espera dos Guns N' Roses de antigamente pôde carpir as suas mágoas com a quase meia hora de atraso até subirem ao palco, já o sol se punha. Quem tinha pago, e bem, para estar presente no Passeio Marítimo de Algés não esperava mais que êxitos atrás de êxitos – e, nesse sentido, a coisa não lhes podia ter corrido melhor. Depois de uma espécie de filme de terror introdutório, em que Godzillas metálicos iam interagindo com figurantes d'”O Exorcista”, os Guns N' Roses arrancam com 'It's So Easy' e, para boa parte do público presente, é como se os anos 90, onde os excessos levaram à autodestruição do grupo, nunca tivessem acontecido.

créditos: Rita Sousa Vieira / MadreMedia

O tema é um dos que escutamos em “Appetite For Destruction”, provavelmente um dos melhores álbuns de estreia da história, e cuja capa ia adornando as t-shirts dos muitos que até ali se deslocaram. Velhos, graúdos, miúdos: três gerações distintas a acompanhar os Guns N' Roses. Distintas, também, as tribos: motoqueiros, metaleiros e punks em amena cavaqueira. Os meros curiosos iam abanando as suas cabeças com 'Mr. Brownstone', canção escrita quando era ainda a heroína a ditar a dieta de Slash. Quem olha para o guitarrista, e para a forma como os seus dedos vão serpenteando pelas cordas da sua guitarra, nem imagina que aquela cena de “Pulp Fiction” onde Uma Thurman leva com uma injeção de adrenalina no coração era para Slash aquilo a que se chamava “terça-feira”. Assim como não imagina que naquele lugar da injeção está agora um pacemaker. Slash envelheceu, sim; ao mesmo tempo, é como se nunca tivesse envelhecido. Estranho paradoxo este.

Se 'Double Talkin' Jive' foi arrastada até aos limites do quase impossível, rockalhada estratosférica ameaçando iniciar revoluções, o mesmo não se pode dizer daquele grande clássico que é 'Welcome To The Jungle', que mereceu a primeira grande ovação da noite apesar de ter sido apresentada num registo menos caótico (e por conseguinte menos perigoso). Os agudos de Axl, como é óbvio, já não funcionam como antigamente. Mas o que perdeu em alcance vocal parece ter ganho em simpatia. Algo interventivo, o vocalista nunca parou de sorrir, e ainda ofereceu uma prenda aos que nunca o abandonaram: 'Reckless Life', tema que não era tocado ao vivo desde 1993. «Eis uma velhinha, decidam vocês se é boa», ouvimo-lo.

À furiosa 'Shadow Of Your Love', versão dos Hollywood Rose, banda que acabaria por originar os Guns N' Roses, seguiu-se 'Walk All Over You', versão dos AC/DC, lembrando que Axl foi durante uma curta temporada o vocalista do conjunto australiano. A tríade de versões ficou completa com 'Live and Let Die', dos Wings, os ecrãs laterais transformados num filme a preto e branco. Até que chegámos ao momento que justificou a presença de duas bandeiras da Ucrânia em palco: 'Civil War', dedicada por Axl ao povo que neste momento combate o invasor russo. Se serviu para o público refletir sobre o facto de, a alguns milhares de quilómetros, haver gente a lutar pelas suas vidas enquanto 50 mil pessoas assistem tranquilamente a um concerto rock, é difícil dizer. Mas quem vai a um concerto dos Guns N' Roses não quer pensar em política: quer pensar na forma como Slash maneja, habilmente, uma guitarra de dois braços. Não foi por acaso que foi ele o mais aplaudido, assim que Axl apresentou a banda.

Depois de um solo do guitarrista, 'Sweet Child O' Mine' conseguiu transportar-nos para o mágico e inocente ano de 1988, onde uma canção de amor era por vezes a única filosofia que interessava. E nem sequer foi a única canção de amor a ser interpretada, já que pouco depois Duff McKagan tomaria o microfone para cantar 'I Wanna Be Your Dog', clássico dos Stooges. Claro que, em matérias do coração, e no que aos fãs dos Guns N' Roses diz respeito, nada bate 'November Rain': Axl ao piano, o solo de guitarra épico de Slash, a imaginação a levar-nos até casamentos passados (ou quiçá futuros). Tão doce como da primeira vez.

Até final, ainda se escutaria 'Knockin' On Heaven's Door', tema que já é mais dos Guns que do seu pai verdadeiro, Bob Dylan. “Escutaria”, isto é: houve quem abandonasse o recinto mesmo antes do encore, talvez para escapar às inevitáveis filas para transportes, talvez porque ainda mal recuperámos de uma pandemia e o hábito de ir a concertos, rodeado de gente, ainda não regressou na sua plenitude, talvez porque ficar em casa fez mal às pernas, que agora estão menos fortes. Esses perderam uma bonita versão instrumental de 'Blackbird', dos Beatles, a introdução acústica perfeita para 'Patience'. Perderam uma velocíssima 'You're Crazy'. E perderam 'Paradise City', à qual só faltou fogo de artifício para fechar – os riffs estavam lá todos. Mas talvez isso seja indicativo de que os Guns N' Roses continuam, no fim de contas, a ser perigosos: se piscarmos os olhos perdemos o que ainda têm de magnífico.

*Os Guns N' Roses não autorizaram a captação de imagens por parte da imprensa

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