“Há um grande nepotismo na literatura portuguesa. Algumas pessoas são quase levadas ao colo, são muito aduladas pelos colegas e pessoas do meio, enquanto outras são esquecidas”, afirmou João Reis em entrevista à Lusa, a propósito do seu mais recente livro, “Cadernos da Água”.
Tradutor de línguas escandinavas, João Reis já passou para o português obras de autores como Knut Hamsun, August Strindberg e Patrick White. Enquanto escritor, acaba de lançar o seu sétimo romance, se se incluir o que escreveu apenas em inglês, “Bedraggling Grandma with Russian Snow”, e que foi semifinalista do Dublin Literary Award 2022.
Em língua portuguesa lançou, em 2015, “A noiva do tradutor”, a que se seguiu, em 2017, “A avó e a neve russa”, em 2018, “A devastação do silêncio”, em 2019, “Quando servi Gil Vicente” e, em 2021, “Se com pétalas ou ossos”.
Alguns dos seus livros foram finalistas de prémios literários, como o Fernando Namora e o Oceanos, mas este reconhecimento não foi suficiente para ser considerado entre os seus pares, segundo conta.
Isto deve-se, em parte, ao facto de não ter “pedigree” para escrever, como já lhe disseram, porque as pessoas “têm mais vantagem se forem familiares de algum famoso”, o que reflete a “imagem provinciana que temos na socidade”.
“Dá-se muito valor ao que a pessoa é ou aparenta ser. Se formos recomendados, temos a vida mais facilitada porque à partida somos bons, mesmo que o trabalho em si depois não demonstre ser assim tão bom. Enquanto se não formos parte daquele clube, somos vistos como alguém de fora".
O escritor lamenta não ser “tido nem achado com os colegas em Portugal”, ao contrário do que se passa, por exemplo, com escritores americanos, com quem mantém uma boa relação profissional, de reconhecimento literário, de troca de opiniões e de livros.
“Com os meus colegas portugueses eu nunca consegui fazer isso e não foi por falta de boa vontade, mas porque fui sempre visto como alguém que está de fora”.
Acresce a isto que Portugal é um país “muito centralizado, e eu não estou em Lisboa, e quase tudo acontece em Lisboa, portanto não sou chamado, sou deixado de lado, embora seja a era da internet e da facilidade de deslocação”.
O reconhecimento dos autores reflete-se também nos prémios e nas bolsas de criação, que são atribuídos “às mesmas pessoas, e que muitas vezes não precisam”.
“É vender um produto continuamente, mesmo quando o produto já não precisa de ser vendido, porque já se vende a si próprio. Este é o problema da sociedade portuguesa: das recomendações (…), independentemente da qualidade do trabalho”.
Face a esta “grande sobranceria” e “visão provinciana do mundo”, o escritor acredita que nunca na vida terá, com certos livros, uma comunidade grande de leitores em Portugal.
“Era aqui que a imprensa especializada ou os prémios entrariam, para ajudar um pouco a promover estas obras, que não têm caráter tão comercial, dentro de certos círculos, para pessoas que estão mais interessadas na literatura pela literatura, ou na arte enquanto uma forma mais elevada, ou não tão associada a interesses comerciais, e é nisso que falha”.
O autor e tradutor sublinha que não se refere exclusivamente a si, mas a todos os seus colegas que são preteridos em relação a outros escritores que considera não terem “nada de apresentável para merecer essa propalação na imprensa ou dentro desses meios”.
Este ano vai ser publicado numa editora dos Estados Unidos um novo livro de João Reis escrito em inglês, o segundo escrito originalmente nessa língua.
Atendendo a esta facilidade, o autor não põe de parte a possibilidade de passar a escrever só em inglês ou até a aventurar-se a escrever em sueco.
Quanto ao seu primeiro romance em inglês, que foi nomeado para o prémio literário de Dublin, já há um acordo com a editora Minotauro, do grupo Almedina, para o traduzir e publicar em português.
A história em torno deste romance é um “pouco bizarra”, nas palavras do autor, que conta ter nascido de uma tentativa de tradução do seu romance “A avó e a neve russa”, que se transformou num romance completamente novo.
João Reis já tinha traduzido o seu primeiro romance para inglês e ia fazer o mesmo com o segundo, mas quando começou, apercebeu-se de que já não gostava do que escrevera, começou a alterar, a pegar em personagens principais e a torná-las secundárias, e acabou por mudar totalmente a história, deixando só “uma personagem ou outra”, razão por que manteve um título parecido, contou.
“É um dos problemas de traduzir os próprios livros, por isso é que tento, de futuro, não traduzir mais os meus livros, para não voltarem a acontecer estas coisas”.
"Cadernos da água" de João Reis é uma distopia climática que ressoa na realidade
O mais recente romance de João Reis, editado pela Quetzal e hoje lançado ao final da tarde, na Livraria Travessa, em Lisboa, foi escrito em 2020, mas antecipou alguns cenários que acabaram por se tornar realidade, como uma pandemia, que na altura ainda "só dava os primeiros sinais", a invasão da Ucrânia pela Rússia, quando o que havia de mais próximo era a invasão da Crimeia em 2014, e uma seca extrema, vivida também este ano em Portugal até meados de março.
“É quase tudo previsível se estivermos atentos a vários sinais políticos, económicos e sociais”, disse João Reis, em entrevista à Lusa, defendendo que a ficção não tem de dar “uma prédica” ao leitor sobre o que está mal e o que deve ser feito, mas “abordar com uma certa subtileza temas que de facto preocupam a humanidade ou que estão a ocorrer”.
Nesse sentido, considera que quase tudo o que escreveu no livro e “que as pessoas consideram premonitório, inclusive a invasão da Ucrânia”, já se podia antecipar.
“Um dos problemas que temos em Portugal, sobretudo na classe política, é que não há um pensamento de futuro para o país a longo prazo. Temos políticos que tentam vencer eleições e manter-se quatro anos e depois tentam mais quatro anos, portanto a visão deles é feita a quatro anos e às vezes nem isso”, afirmou.
“Cadernos da água” é uma das poucas distopias da literatura portuguesa e “talvez seja a primeira distopia climática”, como afirmou João Reis, porque este é um tema que lhe é caro e serviu de ponto de partida para toda a narrativa.
A seca extrema e a escassez da água provocaram as Guerras Meridionais da Água, que afetaram essencialmente os territórios ibéricos e mediterrânicos, as pessoas têm sede e por toda a parte é propalada a mensagem “Salve-se: poupe água”.
Uma pandemia de rex-vírus 3 espalhou-se pela Europa, pelo Médio Oriente e pelo Norte de África, e os países do Norte fecharam as fronteiras e interromperam o apoio financeiro que vinham dando aos países do Sul da Europa, a “taxa do deserto”.
Em consequência, o destino da Europa alterou-se, o Estado português dissolveu-se e o território ficou sem lei, obrigando a população ao êxodo em massa para um campo de refugiados na Suécia.
O clima de tensão entre países, a ascensão dos populismos, a chegada ao poder de partidos nacionalistas, e a invasão da Ucrânia pela Rússia são outros dos acontecimentos que enformam o ambiente vivido no romance.
“Como queria falar de um futuro alternativo com base nas alterações climáticas e todos os problemas que daí advêm surgiu a distopia quase por necessidade. Uma narrativa mais fragmentada do que é meu hábito, com vários narradores, que se adequa à ficção especulativa”, explicou.
“Cadernos da Água” é um romance polifónico, com uma voz feminina predominante, a de Sara, professora portuguesa que se encontra com a filha num campo de refugiados na Suécia, e que vai registando o dia a dia num caderno, como se escrevesse cartas ao marido, que não conseguiu fugir com elas e ficou no antigo território português.
As diversas narrativas são intercaladas com notícias de jornais e outros documentos, nomeadamente comunicados governamentais, que vão dando conta do desenvolvimento dos acontecimentos e localizando a ação no tempo.
A opção por este tipo de narrativa, nunca antes utilizada pelo escritor, é justificada pela sua necessidade de experimentar vários registos diferentes.
Neste caso, “dá outra consistência à história, porque transmite mais informação ao leitor, ainda que de forma fragmentada, e o leitor tem de construir uma narrativa - há várias lacunas de informação propositadas - e quis transmitir várias perspetivas diferentes”.
As descrições que Sara faz do campo de refugiados assemelham-se às de um campo de concentração, com relatos de racionamento de água e alimentos, de violência, de falta de higiene, de roupa e de privacidade.
O que se vai passando naquele espaço – onde a protagonista tenta introduzir alguma normalidade, dando aulas à filha e a outras crianças – é descrito no livro por outros refugiados, que dão ao leitor diversas perspetivas e olhares sobre o mesmo espaço.
Paulo é um oportunista sem grandes escrúpulos, que tenta reverter a situação a seu favor para lucrar e abusar de mulheres; Cecília, a sua mulher, é uma figura fraca e submissa; António é um homem doente dos rins, para quem a água é ainda mais fundamental e age quase só em função desta necessidade; Gabriela é a sua mulher que está disposta a praticamente tudo para salvar o marido; e Leonor é a intérprete, personagem medrosa que, por isso, demonstra falta de humanidade e uma tentativa de colagem aos poderosos.
“Interessa-me a apreensão da realidade através de uma psique. De que forma alguém vê o mundo, de uma forma muito diferente da que os outros veem”, alguns numa perspetiva muito negativa, outros com uma visão mais esperançosa da realidade, afirmou o escritor.
João Reis tentou ainda, “por deleite de escritor”, criar “diferenças em termos de linguagem com cada personagem”.
A linguagem de Paulo, que é dada ao leitor através dos seus pensamentos, denota uma brutalidade, por exemplo, que está ausente da linguagem usada por Sara nos escritos, por sua vez, também diferente da de Emanuel (seu marido), que ficou para trás e pensa numa forma de escapar ao seu raptor, “Jonas, o carniceiro”, um guerrilheiro que fez dele motorista de pesados.
Embora se perceba que algumas personagens são mais negativas do que outras, João Reis afirmou ter tido a preocupação de não criar a típica dicotomia maniqueísta, apostando numa “transição de cinzentos”, porque ninguém é totalmente bom ou totalmente mau.
O universo desta história “é quase um microcosmos da sociedade, podemos considerar, e não acho que seja depreciativo do meu trabalho ou obra, que cada personagem represente um personagem tipo, no sentido em que há uma metáfora subjacente”.
João Reis confessa que a criação desta história tem a ver com o seu fundo pessimista, sobretudo no que diz respeito ao ambiente e às alterações climáticas, e à cada vez menor esperança na humanidade e nas sociedades.
“No fundo a humanidade tem esse problema, consegue ver o comboio a vir na linha, lá ao fundo, […] e fica à espera que o comboio venha embater ou à espera que uma inovação técnica, científica, feita por uma minoria, salve o resto da humanidade”.
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