PRÓLOGO

«Sou apenas uma rapariga, à frente de um rapaz, a pedir-lhe que a ame.»
Notting Hill

Ainda antes de eu chegar ao segundo ano, a minha mãe ensinou-me a regra de ouro do namoro.

Com os meus maduros sete anos, tinha-me esgueirado para o quarto dela depois de ter um pesadelo. (Um grilo do tamanho de uma casa pode não parecer assustador, mas, quando fala com voz de robô e sabe o nosso nome do meio, é aterrador.) O Diário de Bridget Jones estava a passar na televisão cúbica em cima da cómoda e, quando ela deu por mim aos pés da cama, eu já tinha visto uma boa parte do filme. Por aquela altura, era demasiado tarde para me salvar do conteúdo não muito apropriado para o primeiro ano, portanto, enroscou-se ao meu lado e assistimos juntas ao final feliz.

Mas o meu cérebro de primeiro ano não conseguiu entender. Porque teria a Bridget trocado o mais giro — o charmoso — pela pessoa equivalente a um gigantesco bocejo? Como fazia isso sequer sentido?

Sim — falhara-me completamente o sentido do filme e eu tinha-me apaixonado como uma louca pelo playboy. E ainda hoje consigo ouvir a voz da minha mãe e sentir o cheiro a baunilha do seu perfume enquanto brincava com o meu cabelo e me esclarecia.

— O charme e o mistério só vão até certo ponto, Libby Loo. Essas coisas desaparecem sempre, e é por isso que nunca, mas nunca, deves escolher o bad boy.

Depois disso, partilhámos centenas de momentos semelhantes, explorando juntas a vida através dos filmes românticos. Era a nossa cena. Abastecíamo-nos de snacks, recostávamo-nos nas almofadas e devorávamos a sua coleção de finais felizes recheados de beijos como outras pessoas devoravam o lixo da reality TV.

Em retrospetiva, talvez seja por isso que espero pelo romance perfeito desde que tinha idade para soletrar a palavra «amor».

Quando morreu, a minha mãe legou-me a sua crença inabalável no «felizes para sempre». A minha herança foi o conhecimento de que o amor anda sempre no ar, é sempre uma possibilidade e vale sempre a pena.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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O Senhor Certo — a versão simpática e fiável — podia estar ao virar da esquina.

E era por isso que eu estava sempre a postos.

Era apenas uma questão de tempo até que isso finalmente me acontecesse.

CAPÍTULO UM

«Ninguém encontra a sua alma gémea aos dez anos. Que graça teria?»
A Diva da Moda

O dia começou como outro qualquer.

O Mr. Fitzpervert deixou uma bola de pelo no meu chinelo, eu queimei o lóbulo da orelha com o alisador e, quando abri a porta para ir para a escola, apanhei o arqui-inimigo da casa do lado esparramado de modo suspeito em cima do capô do meu carro.

— Ei! — Fiz deslizar os óculos escuros pelo nariz acima, fechei a porta da rua e caminhei muito empinada na direção dele, tendo o cuidado de não sujar as minhas novas sabrinas floridas enquanto basicamente corria para ele. — Sai de cima do meu carro. — O Wes saltou para o chão, com a pose universal do «sou inocente», embora o sorrisinho sugerisse tudo menos isso. Além do mais, eu conhecia-o desde o jardim de infância; aquele rapaz nunca foi inocente na vida. — O que é que tens na mão?

— Nada. — Pôs a mão em questão atrás das costas. Embora se tivesse tornado alto, viril e até um pouco giro desde a primária, o Wes continuava a ser o rapaz imaturo que tinha «acidentalmente» queimado a roseira da minha mãe com um foguete. — És mesmo paranoica — disse.

Detive-me à frente dele e estreitei os olhos para o seu rosto. O Wes tinha uma daquelas caras de maroto, o tipo de cara cujos olhos escuros — rodeados por pestanas quilométricas, porque a vida não era justa — diziam tudo, mesmo quando a boca não dizia nada.
O arquear de uma sobrancelha disse-me até que ponto ele me achava ridícula. Dos nossos muitos e nada agradáveis encontros, eu sabia que os olhos semi-cerrados significavam que ele estava a examinar-me e que estávamos prestes a ter uma discussão sobre o aborrecimento mais recente que ele me causara. E quando os olhos dele brilhavam, como agora, uns olhos praticamente a cintilar de travessura, eu sabia que estava lixada. Porque o Wes travesso ganhava sempre.

Espetei-lhe um dedo no peito.

— O que é que fizeste ao meu carro?

— Não fiz nada ao teu carro propriamente dito.

— Propriamente dito?

— Uau. Dito por ti parece um palavrão, Buxbaum. — Revirei os olhos, o que fez a boca dele abrir-se num sorriso maldoso antes de dizer: — Isto foi giro e, já agora, adoro os teus sapatos de avozinha, mas tenho de me ir embora.

— Wes...

Virou as costas e afastou-se como se eu não estivesse a falar. Limitou-se a caminhar para casa com aquele seu modo descontraído e superconfiante. Quando chegou ao alpendre, abriu a porta de rede e gritou para mim, por cima do ombro:

— Tem um bom dia, Liz!

Aquilo não podia ser bom.

Porque não era possível que ele quisesse legitimamente que eu tivesse um dia bom. Olhei para o meu carro, apreensiva até com o ato de abrir a porta.

Sabem, é que o Wes Bennett e eu éramos inimigos numa guerra sem tréguas nem quartel pelo único espaço de estacionamento disponível no fim da nossa rua. Normalmente ele ganhava, mas só porque era um batoteiro miserável. Pensava que tinha graça reservar o Lugar para si deixando no espaço coisas que eu não tinha força para desviar. Uma mesa de piquenique
feita de ferro, o motor de uma pickup, rodas de camião... Vocês percebem.

(Embora as suas tropelias chamassem a atenção da página de Facebook do bairro — da qual o meu pai era membro — e as velhas metediças espumassem de raiva para cima dos teclados por causa dos estragos na paisagem, nem uma pessoa lhe disse fosse o que fosse ou o fez parar. Tremendamente injusto.)

Mas por uma vez era eu quem cavalgava a onda da vitória, porque, no dia anterior, tive a brilhante ideia de ligar para a Câmara depois de ele decidir deixar o carro no Lugar durante três dias seguidos. Omaha tinha um limite legal de vinte e quatro horas, então, o bom velho Wesley levou uma bela multazinha de estacionamento.

Não vou mentir, fiz uma pequena dança de felicidade quando vi o agente meter o papel debaixo do limpa-para-brisas do Wes.
Verifiquei os quatro pneus antes de entrar no carro e ajustar o cinto de segurança. Ouvi o Wes rir-se e, quando me inclinei para o olhar pela janela do passageiro, a porta da frente dele fechou-se com estrondo.

Então, vi o motivo das suas gargalhadas.

A multa de estacionamento estava agora no meu carro, colada no meio do para-brisas com uma fita adesiva larga que impossibilitava a visão. Camadas e camadas do que parecia ser fita adesiva de uso comercial.

Saí do carro e tentei levantar um canto com a unha, mas as extremidades tinham sido todas solidamente pressionadas.

Que parvalhão.

Quando por fim cheguei à escola, depois de raspar o para-brisas com uma lâmina de barbear e de respirar profundamente para recuperar o meu zen, entrei no edifício com a banda sonora de O Diário de Bridget Jones a tocar nos auscultadores. Tinha visto o filme na noite anterior — pela milésima vez na vida —, mas desta vez a banda sonora tinha-me tocado. O Mark Darcy a dizer «ai isso é que beijam» enquanto beijava a Bridget era, claro, escaldante como tudo, mas não teria sido assim tão digno de «oh, meu Deus» sem «Someone Like You», de Van Morrison, a tocar em fundo.

Sim — eu tenho um fascínio de nerd por bandas sonoras de filmes.

A canção começou enquanto eu atravessava o pátio e abria caminho por entre os alunos que entupiam os corredores. A minha caraterística preferida da música — quando tocava suficientemente alto em bons auscultadores (e eu tinha os melhores) — era que amaciava as arestas do mundo. A voz de Van Morrison fazia com que nadar em contracorrente pelo corredor acima parecesse uma cena de filme e não a grande chatice que realmente era.

Dirigi-me para a casa de banho do segundo andar, onde todas as manhãs me encontrava com a Jocelyn. A minha melhor amiga era uma dorminhoca incorrigível, portanto raro era o dia em que não estava a aplicar o eyeliner à pressa antes do toque.

— Liz, adoro esse vestido. — A Joss olhou-me de lado enquanto limpava os olhos com uma cotonete e entrávamos na casa de banho. Sacou de um tubo de rímel e começou a passar o aplicador nas pestanas. — As flores são a tua cara.

— Obrigada! — Fui até ao espelho e dei uma volta para me certificar de que o meu vestido vintage em corte de sino não estava preso nas cuecas ou com qualquer outro problema constrangedor. Duas chefes de claque rodeadas por uma nuvem branca vapeavam atrás de nós e dirigi-lhes um sorriso fechado.

— Tentas vestir-te como as protagonistas dos teus filmes ou é coincidência? — perguntou a Joss.

— Não digas «os teus filmes» como se eu fosse viciada em pornografia ou assim.

— Sabes o que quero dizer — disse a Joss, enquanto separava as pestanas com um alfinete de ama.

Eu sabia exatamente o que ela queria dizer. Todas as noites, via as amadas comédias românticas da minha mãe, usando a coleção de DVD que herdei aquando da sua morte. Sentia-me mais próxima dela quando as via; parecia que um pequeno pedaço da minha mãe estava ali, a vê-los ao meu lado. Provavelmente porque as tínhamos visto juntas. Muitas. Vezes.

Mas a Jocelyn não sabia nada disso. Crescemos na mesma rua, mas só nos tornámos mesmo boas amigas no décimo primeiro ano. Portanto, embora ela soubesse que a minha mãe tinha morrido quando eu estava no quinto ano, nunca falámos muito sobre isso. Ela tinha sempre presumido que eu era obcecada pelo amor por ser uma romântica incorrigível. Nunca a corrigi.

— Ei, perguntaste ao teu pai sobre o piquenique dos finalistas?

A Joss olhou-me pelo espelho e percebi que se ia irritar. Honestamente, admirava-me por não ter sido a primeira coisa que ela me perguntou quando entrei.

— Ele ontem só chegou a casa depois de eu ir para a cama. — Era verdade, mas podia ter pedido à Helena, se quisesse mesmo discutir o assunto. — Falo com ele hoje.

— Claro que falas.

Fechou o tubo de rímel e enfiou-o no saco de maquilhagem.

— Falo. Prometo.

— Vamos. — A Jocelyn meteu o saco de maquilhagem na mochila e pegou no café. — Não posso voltar a chegar atrasada a Literatura, ou sou castigada, e disse à Kate que, de caminho, deixava pastilha elástica no cacifo dela.

Ajustei o saco a tiracolo no ombro e lancei um olhar ao meu rosto no espelho.

— Espera. Esqueci-me do batom.

— Não temos tempo para batom.

— Há sempre tempo para batom. — Abri a bolsa lateral e retirei o meu novo favorito, Retrograde Red. Na hipótese improvável (tão improvável) de o meu McBrasa estar no edifício, queria uma boca boa. — Vai andando.

Ela saiu e eu passei a cor pelos lábios. Muito melhor. Voltei a guardar o batom no saco e a pôr os auscultadores, saí da casa de banho e carreguei no «play», deixando que o resto da banda sonora de Bridget Jones me envolvesse a psique.

Quando cheguei a Literatura Inglesa, dirigi-me para o fundo da sala e sentei-me na mesa entre a Joss e a Laney Morgan, fazendo deslizar os auscultadores para o pescoço.

— O que é que escreveste na número oito? — A Jocelyn escrevia rapidamente enquanto falava comigo, terminando o trabalho de casa. — Esqueci-me da leitura, portanto não faço ideia de porque é que as camisas do Gatsby faziam chorar a Daisy.

Eu retirei a minha ficha e deixei que a Joss copiasse a minha resposta, mas o meu olhar deslocou-se para a Laney. Se houvesse uma sondagem, toda a gente no planeta seria unânime em concordar que a miúda era linda; o facto era indiscutível. Tinha um daqueles narizes adoráveis cuja existência dera decerto origem à palavra «arrebitado». Os olhos eram enormes, como os de uma princesa da Disney, e o cabelo louro, sempre brilhante e macio, parecia saído de um anúncio de champô. Era pena que a sua alma fosse exatamente o oposto do aspeto físico.

Livro: "Isto não acontece nos filmes"

Autor: Lynn Painter

Editora: Marcador

Data de Lançamento: 5 de julho de 2023

Preço: € 16,90

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E detestava-a imensamente.

No primeiro dia do jardim de infância, ela gritou «uf!» ao ver-me de nariz a sangrar, e apontou para a minha cara até toda a sala ficar a observar-me, enojada. No terceiro ano, disse ao Dave Addleman que o meu caderno estava cheio de frases de amor por ele. (Era verdade, mas a questão não era essa.) A Laney chibou-se e, em vez de ser querido ou charmoso como os filmes me tinham levado a crer que seria, o David chamou-me anormal. E, no quinto ano, pouco depois de a minha mãe ter morrido, fui obrigada a sentar- -me ao lado da Laney no refeitório, porque havia lugares marcados. Todos os dias, enquanto eu picava o meu almoço de cantina, quase incomestível, ela abria a sua lancheira de cor pastel e deslumbrava a mesa inteira com as delícias que a mãe lhe preparava.

Sandes cortadas em formas adoráveis, bolachas caseiras, brownies com pepitas; era uma arca do tesouro de obras-primas da culinária para crianças, cada uma preparada com mais amor do que a anterior.

Mas o que me destruía eram os bilhetes.

Não havia um único dia em que o almoço dela não incluísse um bilhetinho da mãe, escrito à mão. Eram cartinhas engraçadas que a Laney costumava ler em voz alta para as amigas, com desenhos tolos nas margens; e se eu permitisse ao meu olhar vaguear até ao final, onde se lia «Com amor, Mãe» em letras encaracoladas rodeadas de corações, ficava tão triste que nem conseguia comer.

Até hoje, todos achavam que a Laney era bestial, linda e inteligente, mas eu sabia a verdade. Ela podia fingir-se simpática, mas, desde que eu me lem- brava, lançava-me olhares antipáticos e esquisitos. Todas as vezes que a miúda olhava para mim, era como se eu tivesse alguma coisa na cara e ela não conseguisse decidir se isso a enojava ou divertia. Estava a apodrecer sob toda aquela beleza, e um dia o resto do mundo vê-la-ia como eu a via.

— Pastilha?

A Laney estendeu-me uma embalagem de Doublemint, arqueando as sobrancelhas perfeitamente desenhadas.

— Não, obrigada — grunhi, e a minha atenção voltou-se para a frente da sala quando a Sra. Adams entrou e pediu os trabalhos de casa.

Passámos as nossas fichas para a frente e ela começou a falar de coisas literárias. Todos se puseram a tirar notas nos portáteis distribuídos pela escola, e o Colton Sparks acenou-me com o queixo da sua mesa, ao canto. Eu sorri e baixei o olhar para o meu computador. O Colton era simpático. Falámos bastante durante duas semanas no início do ano, mas isso acabou por não dar em nada. Basicamente, o resumo da minha vida amorosa era «meh».

Duas semanas — eis a duração média das minhas relações, se é que se lhes podia chamar tal coisa.

Eis como corria normalmente: eu via um rapaz giro, sonhava acordada com ele durante semanas e idealizava-o totalmente como a minha única alma gémea possível. A cena pré-relação da escola começava sempre com esperanças altíssimas. Mas, ao fim de duas semanas, antes mesmo de nos aproximar-mos de uma cena oficial, eu era quase sempre atingida pelo Urgh! A sentença de morte de todas as relações nascentes. Definição do Urgh!: termo de namoro que se refere a um sentimento súbito de desconforto que sentimos ao ter um contacto romântico com alguém e esse alguém passa quase imediatamente a repugnar-nos.

A Joss dizia que eu olhava muito, mas nunca comprava nada. E tinha sempre razão. Mas a minha propensão para minirrelações de duas semanas dava cabo do meu potencial para o baile de finalistas. Queria ir com alguém que me tirasse o fôlego e acelerasse o coração, mas quem havia sequer na escola que eu não tivesse já considerado?

Isto é, tecnicamente, eu tinha um par para o baile: ia com a Joss. É só que... ir ao baile de finalistas com a minha melhor amiga parecia um fracasso muito grande. Sabia que nos divertiríamos — iríamos jantar antes com a Kate e a Cassidy, as mais divertidas do nosso pequeno grupo de amigas —, mas supostamente o baile de finalistas era o pináculo do romance no secundário. Havia a tradição dos convites públicos, das flores a condizer, do assombro mudo perante a nossa visão de vestido e dos beijos doces sob a pirosa bola de espelhos.

O tipo de merda do Andrew McCarthy e da Molly Ringwald em A Rapariga do Vestido Cor-de-Rosa.

Não era amigas a jantar na Cheesecake Factory antes de irem para a escola e terem conversas constrangedoras enquanto os acasalados se dirigiam para a famosa parede dos amassos.

Eu sabia que a Jocelyn não ia compreender. Ela achava que o baile de finalistas não era nada de especial, só uma festa na escola para onde íamos bem vestidas, e chamar-me-ia ridícula se lhe confessasse a minha deceção. Já estava aborrecida por eu estar sempre a adiar a compra do vestido, mas nunca me apetecia ir.

De todo.

O meu telefone vibrou.Joss: Tenho uma BOMBA.

Olhei na direção dela, mas ela parecia estar a ouvir a Sra. Adams. Lancei um olhar à professora antes de responder:

Chuta.

Joss: Atenção, veio por mensagem da Kate.

Eu: Então pode não ser verdade. Certo.

A campainha tocou, pelo que peguei nas coisas e enfiei-as no saco.

A Jocelyn e eu começámos a andar para os nossos cacifos, e ela disse:

— Vou dizer-te, mas antes tens de prometer que não ficas toda passada até ouvires tudo.

— Oh, meu Deus. — O meu estômago deu uma volta e eu perguntei: — O que é que se passa?

Virámos para a ala oeste e, antes que eu pudesse sequer olhar para ela, vi-o a caminhar na minha direção.

O Michael Young?

Paralisei ali mesmo.

— Eeee... eis a bomba — disse a Joss, mas eu não a ouvi.

As pessoas chocavam comigo e contornavam-me, e eu ali parada a olhar. Ele estava igual, apenas mais velho, mais robusto e mais atraente (se isso era sequer possível). A minha paixão de infância deslocava-se em câmara lenta, com passarinhos azuis e chilreantes a esvoaçar-lhe em redor da cabeça cujo cabelo dourado ondeava sob uma brisa cintilante.

Acho que o meu coração é capaz de ter parado.

O Michael viveu na minha rua quando éramos pequenos, e foi tudo para mim. Eu amava-o desde que me lembrava. Ele sempre tinha sido ultraespantoso. Inteligente, sofisticado e... não sei... mais de sonho do que qualquer outro rapaz. Tinha brincado com os miúdos do bairro (eu, o Wes, os irmãos Potter da esquina e a Jocelyn), fazendo as típicas coisas de bairro — jogar às escondidas, à apanhada, futebol, toca-e-foge, etc. Mas enquanto o Wes e os Potter gostavam de coisas como atirar-me lama para o cabelo porque me faziam gritar, o Michael fazia coisas como identificar folhas, ler livros grossos e não participar na tortura deles.
O meu cérebro selecionou «Someone Like You» e a canção recomeçou a tocar.

I’ve been searching for a long time,
For someone exactly like you.

O Michael usava calças de caqui e uma bela camisola preta, o tipo de roupa que mostrava que ele sabia o que ficava bem, mas que também não perdia muito tempo com a moda. Tinha o cabelo espesso, louro e penteado como as roupas — intencionalmente casual. Gostava de saber a que cheiraria.

O cabelo, não a roupa.

Devia ter sentido uma stalker por perto, porque a câmara lenta parou, os pássaros desapareceram e ele olhou-me nos olhos.

— Liz?

Fiquei mesmo contente por me ter dado ao trabalho de aplicar o Retrograde Red. Era óbvio que o Universo soube que o Michael ia aparecer à minha frente naquele dia e fez tudo para me pôr apresentável.

— Miúda, tem calma — disse a Joss entre dentes, mas não fui capaz de reprimir o sorriso aberto quando disse:

— Michael Young?

Ouvi a Joss resmungar «lá vamos nós», mas não liguei.

O Michael aproximou-se e envolveu-me num abraço, e eu deixei que as minhas mãos lhe rodeassem os ombros. Oh, meu Deus, oh, meu Deus! O meu estômago enlouqueceu quando senti os dedos dele nas minhas costas e percebi que podíamos bem estar a ter um daqueles reencontros dos filmes.

Oh. Meu. Deus.

Eu estava vestida para isso; ele era lindo. O momento podia ser mais perfeito? Fiz contacto visual com a Joss, que abanou lentamente a cabeça, mas isso não me importou.

O Michael tinha voltado.

Cheirava bem — tão, tão bem — e eu queria catalogar todos os pormenores do momento. A sensação suave e usada da sua camisola sob as minhas mãos, a largura dos seus ombros, a pele dourada do seu pescoço, a meros centímetros do meu rosto enquanto eu o abraçava.

Seria mau fechar os olhos e inspirar profunda?...

Uff.

Alguém chocou connosco, com força, e destruiu o abraço. Fui atirada contra e depois para longe do Michael. Quando me virei, vi quem tinha sido.

— Wes! — exclamei, irritada por ele ter estragado o nosso momento, mas ainda inacreditavelmente feliz que até lhe sorri. Estava incapaz de não sorrir. — Devias mesmo ver por onde vais.

As sobrancelhas dele uniram-se.

— Ai sim?...

Ele observava-me, provavelmente a perguntar lá com os botões dele porque estaria eu a sorrir em vez de me passar por causa do incidente da fita-cola. Parecia alguém à espera da piada e a sua confusão elevou a minha felicidade para um nível ainda mais alto. Com um risinho, disse-lhe:

— Sim, meu grande patudo. Ainda podias magoar alguém. Fofo.

Ele estreitou os olhos e falou mais devagar.

— Desculpa. Estava a falar com o Carson e a fazer a coisa extremamente difícil de andar para trás. Mas basta de falar de mim. Como foi a tua viagem para a escola?

Eu sabia que ele queria ouvir todos os pormenores, como quanto tempo levei a tirar a fita-cola ou o facto de ter partido duas unhas recém-arranjadas, mas eu não estava disposta a dar tal satisfação ao ofensor.

— Mesmo, mesmo boa. Obrigada por perguntares.

— Wesley. — O Michael deu-lhe um aperto de mão à bro; quanto tempo tinham eles tido para coreografar aquele pequeno toque adorável? Disse: — Acertaste mesmo na professora de Biologia.

— Foi porque te sentaste ao meu lado. Ela odeeeeia-me.

O Wes sorriu e começou a falar, mas eu ignorei o idiota e observei o Michael a falar, a rir, e a ser tão querido e charmoso como eu o recordava.

Só que agora tinha uma ligeira pronúncia arrastada do Sul.

O Michael Young tinha um sotaque suave que me fazia querer escrever pessoalmente uma nota manuscrita de agradecimento ao grande estado do Texas por o ter tornado ainda mais atraente do que já era. Cruzei os braços e basicamente desfiz-me numa poça a gozar a vista.

A Jocelyn, de cuja existência possivelmente me esqueci na presença de uma michaelescência tão adorável, deu-me uma cotovelada e segredou:

— Vê se te acalmas. Estás a babar-te toda.

Revirei os olhos e ignorei-a.

— Ouve lá. — O Wes içou a mochila e apontou para o Michael. — Lembras-te do Ryan Clark?

— Claro. — O Michael sorriu, parecendo um estagiário do Congresso.

— Primeira base, não era?

— Exatamente. — O Wes baixou a voz. — O Ryno vai dar uma festa amanhã em casa do pai. Devias mesmo ir.

Tentei manter uma expressão neutra ao ouvir o Wes convidar o meu Michael para a festa dele. Quero dizer, o Wes dava-se com os tipos que o Michael conhecia, mas, caramba... De repente, eram melhores amigos ou coisa assim?

Isso não seria bom para mim. Não podia ser.

Mas o Wes Bennett gostava de se meter comigo — sempre tinha gostado. Na escola primária, o Wes era o tipo que metia uma rã na minha Casa de Sonho da Barbie e um gnomo de jardim decapitado na minha Minibiblioteca Gratuita. No segundo ciclo, era o tipo que achava hilariante fingir que não me via quando eu estava estendida ao sol, e regava os arbustos da mãe sacudindo «acidentalmente» a mangueira para cima de mim até eu gritar.

E agora, no secundário, era o tipo que fazia questão de me assediar diariamente por causa do Lugar. Pelo meio, desenvolvi o meu orgulho. Portanto, tecnicamente, era a miúda que gritava por cima da vedação quando os parvos dos amigos dele estavam lá e eram tão barulhentos que eu conseguia ouvi-los por cima da minha música. Ainda assim...

— Parece-me bem — assentiu o Michael, e eu pus-me a matutar em como ele ficaria com um chapéu de cowboy e uma camisa de flanela. E talvez um par de botas cardadas, embora, tecnicamente, não soubesse a diferença entre uma bota cardada e uma bota normal de cowboy.

Teria de ver isso depois no Google.

— Mando-te os pormenores por mensagem. Tenho de ir. Se me atrasar para a próxima aula, fico de castigo de certeza. — Virou-se e começou a correr na direção oposta, gritando: — Até logo, malta!

O Michael ficou a vê-lo desaparecer; depois baixou o olhar para mim e disse, naquele sotaque arrastado:

— Ele bazou tão depressa que nem consegui perguntar: é de roupa casual?

— O quê? Hum, a festa? — Como se eu fizesse ideia de como eles se vestiam para aquelas festas de matulões. — Provavelmente?

— Eu pergunto ao Wesley.

— Boa. — Esforcei-me para lhe dirigir o meu melhor sorriso, embora estivesse a morrer pelo facto de o Wes ter estragado o meu reencontro de filme. — Também tenho de ir — disse ele, mas acrescentou: — Mas estou mortinho por pôr a conversa em dia.

«Então leva-me contigo à festa!», gritei por dentro.

— Joss? — O Michael olhou para trás de mim e ficou de boca aberta.

— És tu?

Ela revirou os olhos.

— Estava a ver que não.

A Jocelyn sempre tinha sido mais chegada aos rapazes do bairro: jogava futebol americano com o Wes e o Michael enquanto eu fazia rodas horríveis pelo parque e inventava canções. Desde então, tinha-se transformado num ser humano alto e anormalmente bem-parecido. Hoje, tinha as tranças todas apanhadas num rabo de cavalo, mas, em vez de parecer descuidada como eu quando fazia um rabo de cavalo, punha em destaque as suas maçãs do rosto.

A campainha tocou e ele apontou para o altifalante. — Tenho de ir. Até loguinho.

Loguinho.

Foi no sentido oposto, e a Jocelyn e eu começámos a andar. Eu disse: — Não acredito que o Wesley não nos convidou para a festa. Ela olhou-me de lado.

— Sabes sequer quem é o Ryno?

— Não, mas a questão não é essa. Ele convidou o Michael mesmo à nossa frente. Por cortesia, devia ter-nos convidado também.

— Mas tu detestas o Wes.

— E então?

— Então, porque havias de querer que ele te convidasse para alguma coisa? Suspirei.

— A má educação dele irritou-me.

— Pois eu fico contente por não me ter convidado. Não quero ir a festas onde estejam aqueles tipos. Já estive em casa do Ryno, e é só cerveja, uísque e aqueles jogos imaturos de verdade ou consequência.

Até deixar o voleibol, a Joss costumava conviver com a malta popular, portanto, tinha ido a algumas festas antes de nos tornarmos amigas.

— Mas...

— Ouve. — A Jocelyn parou de andar e agarrou-me no braço para me fazer parar também. — Era isto que te ia dizer. A Kate diz que ele mora ao lado da Laney e que eles andam a falar há umas duas semanas.

— A Laney? A Laney Morgan? — Nããão. Não podia ser verdade. Não, não, não, não, por favor, Deus, não. — Mas ele chegou agora...

— Pelos vistos, voltou há um mês, mas acabou online o ano letivo na outra escola. Diz-se que ele e a Laney são quase oficiais.

A Laney não. Visualizei o seu narizinho perfeito e o estômago apertou-se-me. Sabia que era irracional, mas a ideia da Laney e do Michael era-me quase insuportável. Aquela miúda conseguia sempre o que eu queria. Não podia ficar com ele, caramba.

A ideia deles, juntos, apertava-me a garganta. Magoava-me o coração.

Esmagar-me-ia.

Porque, além de ele ser tudo com que eu sonhava, tinha um passado comigo. Um passado maravilhoso e importante que incluía beber por mangueiras e apanhar pirilampos. A minha mente recuou até à última vez que eu vi o Michael. Foi em casa dele. A sua família tinha organizado um churrasco para se despedir de todos os vizinhos, e eu fui com os meus pais. A minha mãe fez as suas famosas barras de cheesecake e o Michael recebeu-nos à porta, oferecendo-nos bebidas, como se fosse um adulto.

A minha mãe disse que era a coisa mais adorável que tinha visto.

Naquela noite, os miúdos do bairro jogaram à bola na rua durante horas e os adultos até se juntaram a nós para uma partida. A certa altura, a minha mãe, de vestido florido e sandálias de cunha, deu um «mais cinco» ao Michael depois de marcar. Aquele momento estava impresso nas minhas recordações como uma fotografia amarelada num álbum antigo.

Acho que o Michael nunca desconfiou da paixão louca que eu sentia por ele. Eles partiram um mês antes de a minha mãe morrer, quebrando a ponta do meu coração que em breve havia de ficar despedaçado.

A Jocelyn olhou para mim como se soubesse exatamente o que eu estava a pensar.

— O Michael Young não é o teu «tipo de ir a correr para a estação». Percebeste?

Mas podia ser.

— Bem, tecnicamente, eles ainda não são oficiais, portanto... Recomeçámos a andar, driblando corpos a caminho do cacifo dela. Provavelmente íamos chegar atrasadas devido ao nosso encontro inesperado com o Michael no corredor, mas tinha valido bem a pena.

— A sério. Não sejas assim. — Ela lançou-me o seu olhar de repreensão maternal. — Não penses que o Michael foi o teu reencontro de filme.

— Mas... — Eu nem queria dizê-lo porque não queria que ela deitasse a ideia abaixo. Ainda assim, quase guinchei quando perguntei: — E se foi?

— Oh, meu Deus. Eu sabia. Assim que soube que ele tinha voltado, percebi que te ias passar. — As sobrancelhas dela desceram, bem como os cantos dos lábios, enquanto parava em frente do cacifo e o abria. — Tu já nem sequer conheces o tipo, Liz.

A voz grave do Michael ainda soava a dizer «loguinho», e o estômago apertou-se-me.

— Sei tudo o que preciso de saber.

Ela suspirou a retirou a mochila.

— Há alguma coisa que eu possa dizer para te arrancar a isso?

Inclinei a cabeça de lado.

— Hum... Ele detesta gatos, talvez?

Ela ergueu um dedo.

— É isso. Já me esquecia. Ele detesta gatos.

— Não detesta. — Sorri e suspirei, recordando: — Tinha dois gatos rabugentos que adorava. Devias ver como ele tratava aqueles bebés.

— Uf!

— Pois é, hater de gatos. — Sentia-me viva, a vibrar de excitação e pos- sibilidades românticas. Encostei-me ao cacifo fechado contíguo ao dela. — O Michael Young está no mercado até eu ouvir uma proclamação oficial.

— Não consigo falar contigo quando estás assim.

— Feliz? Entusiasmada? Esperançosa? — Apetecia-me dançar pelo cor- redor fora a cantar «Paper Rings» aos gritos.

— Alucinada. — A Jocelyn olhou por um momento para o telefone e depois de novo para mim. — Olha, a minha mãe diz que pode levar-nos às compras para o baile amanhã à noite, se tu quiseres.

A minha mente ficou em branco. Tinha de dizer alguma coisa.

— Acho que tenho de trabalhar.

Ela estreitou os olhos.

— Sempre que falo nisto, tens de trabalhar. Não queres comprar o vestido?

— Claro. Quero. — Obriguei os meus cantos da boca a subir. — Com certeza.

Mas a verdade é que não queria de todo.

O que me entusiasmava no vestido era a sua capacidade de inspirar romance, de tirar a fala ao nosso acompanhante. Se esse fator não estivesse em jogo, o vestido do baile de finalistas não passava de um desperdício dispendioso de tecido.

Além disso, havia o facto gritante de que ir comprar vestidos com a mãe da Jocelyn era um doloroso lembrete de que a minha mãe não se podia juntar a nós, o que tornava a saída muito pouco apetecível. A minha mãe não estaria presente para tirar fotografias e lacrimejar ao ver a sua bebé ir para o último baile da infância, e nada tornava isso mais pungente do que ver a mãe da Joss fazer essas coisas por ela. Para ser honesta, eu não estava emocional- mente preparada para o vazio que parecia acompanhar o meu ano de finalista, as muitas marcas da ausência da minha mãe. Fotografias oficiais, receção aos antigos alunos, candidaturas às universidades, baile de finalistas, entrega de diplomas... Enquanto todos os meus conhecidos se entusiasmavam com estas etapas do secundário, eu tinha dores de cabeça devido ao stress de nada ser como eu planeara que fosse.

Parecia tudo... solitário.

Porque, embora as atividades do último ano fossem divertidas, eram desprovidas de sentimento sem a minha mãe. O meu pai tentava envolver-se, tentava mesmo, mas não era um tipo emotivo, portanto parecia sempre que era o fotógrafo oficial enquanto eu atravessava os marcos sozinha.

A Jocelyn, por sua vez, não compreendia porque eu não me entusiasmava como ela com cada etapa do ano de finalistas. Zangou-se comigo durante três dias quando faltei à viagem à praia, nas férias da Páscoa; pareceu-me mais um exame que me apavorava do que uma diversão, e não fui capaz de ir.

Mas... encontrar um final feliz de comédia romântica como a minha mãe teria gostado — isso podia transformar todos os maus sentimentos em bons, não podia?

Sorri à Jocelyn.

— Vou ver a minha agenda e mando-te mensagem.